A Carta

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Muitos dias passaram desde que te vi partir e desaparecer no horizonte, ofuscado pelo sol raso do ocidente.

Mil noites passaram que não durmo, desperto compulsivo pela falta dos teus dias.

 

Foram malas-artes que te levaram. Sou agnóstico nesta superstição e não entendi ainda porque abalaste. Apenas sei que só e abalado, fiquei eu.

Na catástrofe agasalhei-me, instintivamente e em defeso, na ventura de naufrago à vista de porto seguro. Efémera condescendência… Depressa fui arrastado para a deriva no oceano profundo, sem vista para qualquer talhão de terra acolhedora.

Contei os botões, vezes sem conta. Algum saltava ou escondia-se, em maliciosa ousadia, para exacerbar o meu sentir ermo…

 

Lembro-me. Prometi-te ser carinho, ser dedicado, ser tolerante. Falhei. Este génio irreverente que não me deixa ser coerente ou cumpridor com quem mais me amnistia dos pecados.

Se me ouvisses agora…

Escrevo-o! E suspiro a crença de que os ventos te levem esta carta na redoma de vidro, em boa maré. Maré de sorte, maré de acerto.

Quero segredar-te os pensamentos das mil noites despertas. O que contigo aprendi, o que contigo afago ainda alcançar.

 

Não é tarde.

O Sol pode reerguer-se no horizonte e conduzir-te de regresso a este lar que reservaste no meu peito.

Não tenho jeito para justificações. Não tenho insondáveis habilidades para pedir desculpa. Tenho apenas o que sou. Não é muito de edificado, contudo abundam as grandes planícies selvagens onde tudo se pode erguer, tudo se pode semear e colher, tudo pode ser novidade pelos trilhos do tempo!

Aí longe, aperto-te com mais proximidade, com mais cuidado e ternura. Não há espaço vazio onde não te descubra… em visão, em desejo. Brincas às escondidas comigo e, não raramente, quando me distraio dos estados banais, deixo-me levar por este catraio que se apaixonou e contigo renasceu. Saudade!!!!!!!!

 

Querida Fuego, se este trapo encontrares a bolinar contra ventos e borrascas, atenta e resgata-o ao mensageiro: são meus pensamentos arruaceiros, diletantes por tua atenção. Não o rasgues em impetuosidade. Antes o queimes de alegria e com ele faças sinais de fumo anunciando o teu regresso!

 

A casa está na mesma, o lugar sem desabrochar rebento floral. Desde que saíste já nada sorri. As pedras ficaram mudas, as árvores fazem o pino. Que fazer com o riacho que reverteu a marcha e corre agora para a nascente? Está triste, encolhe-se e chora. Forma um lago de lágrimas lá alto nas montanhas… onde eu te conheci.

 

Todos os dias te vejo irremediavelmente partir e, em almejado olhar, chegar.

Tu, em passos que até mim te trazem, por aquela azinhaga aformoseada pelos sinais da cerimónia do reencontro: a passadeira de urze-branca e trovisco, salpicada de níscaros, aqui e acolá; o balcão arborizado de aves orquestradas; os odores primaveris da transpiração alegre das flores; os colossais guardas de granito em formatura sorridente… Os majestosos castanheiros, mordomos que recebem em vénia a sua Senhora.

 

O orgulho aprisionou a humildade e nos apartou. Todavia, fraqueja a arrogância e expõem-se a simplicidade novamente à vida.

Temos que entender que as diferenças são saudáveis, as diferenças inseminam os brotos do amor…. Estou pronto!

 

Volta e traz este salvo-conduto, testemunho da minha devoção.

 

Do teu,

 

Andarilhus “(ºvº)”

XIII : VII : MMVII

 

música: Heroes del Silêncio: La Carta
publicado por ANDARILHUS às 00:58