Quinta-feira , 31 de Julho DE 2008

A Terra Rasgada ao Meio

 

Giuliano Bugiardini: Martírio de Santa Catarina (Retirado da Wikipedia)

 

Força!

Atira-me contra a parede.

Amolga-me a alegria com o martelo da fúria!

Arrasta-me pelo silvado cerrado,

Agora que me subtraíste a razão,

Agora que me guias a decisão.

Empurra-me para o buraco,

Que para ti abres copioso,

E enches de funesta companhia.

 

Força!

Envolve-me em caixão de pedra.

Retira-me os lábios para que jamais sorria!

Estica a corda que forma garrote

Em volta da garganta da minha revolta,

Já que me espremes os poros da consciência,

Já que vulgarizas o meu cuidado.

Aperta-me esmigalhado no torno

Do teu constante retorno

Á compulsiva prisão da lembrança.

 

Queda-te!

Despe a dor com que te trajaram,

Descalça os fardos com que te sufocaram.

Despede-te do burel do martírio

E apazigua a tua cruzada interna;

Dá tréguas ao flagelo e à tortura…

Atenta!

Acredito que sempre gostei de ti,

Mesmo quando ainda o não sabia,

Mesmo quando ainda te não conhecia…

Exorta, atende ao rogo deste profeta sem dogma!

 

Aquieta!

Estende os braços, recebe o meu afago.

Atravessa a raia desta terra rasgada ao meio,

Colhe as flores que por ti amanho e inspira

O incenso que inflamo a teus pés, venerada.

Percorre os meus braços de prado verde,

Alcança o regaço do meu peito de jasmim,

Para repousares na sombra fresca da conciliação…

Deixa que te lave as feridas nas lágrimas ebúrneas

Que por ti exarei nos códices de longa oração,

Enquanto te estimo o cabelo e o pensamento

Com doces acordes de meus dedos

E sibiladas melodias de embalar…

 

Alenta!

Rasga a dor que já não trajas,

Desmancha os fardos que já não sufocam.

Tritura o burel do martírio,

Queima as crónicas secretas da tua cruzada;

Enterra os corpos do flagelo e da tortura…

Crê!

Eu sei que sempre de ti gostei,

E ainda o não sabia

E ainda te não conhecia…

Sorri, caminha com este profeta sem dogma,

Seja qual for o destino…

 

Andarilhus “(º0º)”

XXXI : VII : MMVIII

música: Bauhaus: Stigmata Martyr
publicado por ANDARILHUS às 17:32
Sexta-feira , 25 de Julho DE 2008

Saída

http://byfiles.storage.live.com/y1p0jUQI_901b3b4OiwUklbM45DkjEjuufE64Z6j7xcI8SteJOU1obNG21L5-3lV3fDuPcZ8c7h7jw

  

Recordas-te do primeiro beijo?

Momento alvo,

Coroado entre pétalas de sol,

Tecelão do traje rubro do dia,

Mestre da manta afoita da noite.

Feitiço de onda de mar petrificada,

Estacada em praia consumada

Por fugaz e sereno vento suspiro,

Saboreado em travos de saliva doce,

Em dose de libertação de confusas

Pelejas morais, perdidas pela areia.

 

Recordas-te do que te disse?

Foi a revelação do discreto,

Sobre o rumo do errante,

Na última braçada do náufrago

Em busca da margem do renovo.

Falei-te como o demónio tentado

Na obra de deus, no termo da sede,

Algoz e incendiária da paz,

No remendo da bandeira branca

Da alma agastada, por tanto tempo

Longe de casa, apátrida do lar.

Foi a derradeira saída franca

Para o condenado do labirinto,

Da rotunda, da encruzilhada…

 

Lembro-me do primeiro beijo,

Lembro-me do que te disse!

 

E jamais me esquecerei

Ou perderei este juízo:

 

Na mais lúgubre condição,

No momento mais amargo,

Há sempre um indício

De cintilação prateada:

A saída!

 

Saí… J

 

Andarilhus “(º0º)”

XXV : VII : MMVIII

 

música: U2: Exit
publicado por ANDARILHUS às 17:28
Terça-feira , 22 de Julho DE 2008

Obra-prima

 

http://img206.imageshack.us/img206/7425/leonardomonalizanr8.jpg

 

 
Senhora,
Queria ser pintor
E vos capturar
Despida de defesas, nua,
Para sempre, autêntica e formosa.
Usar o feliz tom, da cor
Com que me pintais
A existência tão íris.
Usar a tela crua
Para anunciar a luz
Com que me alimentais
As emoções viris
Da aguarela do amor
Que tanto me seduz.
Senhora…
Quero ser idealista
E desejar desenhar
Todos os contornos
Das horas em que posais
Autêntica e formosa
Na minha vida de artista.
Pelo pastel de contemplar
E os vermelhos mornos,
Em paisagens estivais
Ou em singular rosa,
Denunciar a minha fraqueza:
Senhora,
Mesmo que exímio na arte
Jamais conseguiria reter
Todo o vosso imenso encanto.
Mas, para mim,
Pintor de sonhos,
Sereis
Para sempre, autêntica e formosa.
 
Andarilhus “(º0º)”
XXII : VII : MMVIII

 

publicado por ANDARILHUS às 18:33
Sexta-feira , 18 de Julho DE 2008

Crónicas do Deus Vilão II

 

http://www.lydiacristina.com/gallery1/00004-Caminho%20na%20floresta.JPG

 

(no seguimento de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/25688.html)

 

E foram…

A luz ao longe era tão nítida como a dilatada distância que teriam de anular para lá chegar. Um saltitava, o outro rebolava. A conversa contínua serrava os limbos silenciosos da noite, enquanto os aproximava em empatia. Quem diria que há poucas horas nem se conheciam?!

-“A propósito, o meu nome é Pyrus, e o teu?” –“O meu é Gré. Sou do clã dos Granitos. E como é que vieste aqui parar, Pyrus?”.

O rapaz fez um gesto com os ombros que lhe encolhia o pescoço. Nascera e crescera numa zona de planícies, sem bosques densos nas imediações. Desconhecia as forças que o haviam ali colocado. -“Não sei, Gré. É um grande mistério. Não sei como aqui vim parar e muito menos os desígnios que os deuses me têm destinado nesta façanha.” Parou, em contemplação das copas das árvores.

-“Eu nasci nas terras de Aluvion, ricas pelas suas preciosas minas. Órfão desde muito pequeno, fui recolhido por Mestre Vulcame que me ensinou as artes do explorar e trabalhar os minerais…. Espera, eu… eu agora estou a entender: via o meu Mestre retirar à Terra a sua matéria-prima, extraía os metais e, estranhamente, preocupava-se em acumular delicadamente pequenas porções dos diferentes minerais na nossa gruta armazém. Afinal ele sabia que todos aqueles fragmentos – que pareciam inorgânicos – tinham vida! Mas nunca o divulgou… E depois dizia-me que as tinha vendido, quando eu dava pela falta colectiva de cada remessa! “.

- “Já ouvi falar do teu Mestre. Ele não é mais do que o deus Vulcano, enviado à Terra pelo concílio dos deuses, para minimizar o impacto da chegada do Homem. Os deuses aperceberam-se do seu erro: quando expulsaram os Homens do Olimpo não anteciparam o flagelo que iriam impor a outros seres. Vulcano está cá para nos ajudar a recuperar a vigília. Substitui-nos na continuação da espécie mineral com a gestação de novas gerações, que nos permitem preparar a revolta contra os humanos.”

Pyrus teve uma vertigem e viu-se necessitado do amparo da árvore corpulenta que o flanqueava. Grandes mistérios o envolviam e a ignorância sobre tudo quanto ouvira, sobre a sua presença nesta inusitada situação. Quais seriam as suas verdadeiras origens, a razão de ter sido acolhido por um deus e a sua missão nesta história intrincada?! Respirou fundo e disse em surdina: -“Continuemos. Continuemos pelo trilho e pelas inesperadas revelações que certamente se seguirão…”

Já se movimentavam há muito tempo e a manhã começava a corar o horizonte que escapava ao biombo do denso carvalhal. A alvorada ofuscava a luz que seguiam, porém o fumo marcava claramente o destino. Pyrus emudecera desde a última conversa e Gré respeitou o silêncio do companheiro. Deslocavam-se céleres e sem demonstrar cansaço. A azinhaga que atravessavam acabou por desembocar numa ampla clareira, onde desaguavam outros trilhos. Com olhares cúmplices, acordaram repousar por alguns momentos.

Após breves minutos ouviram alguns ruídos distantes que convergiam para a clareira. Como molas, esqueceram o relaxamento e ficaram atentos, em escuta e busca de sinais. Os sons eram cada vez mais nítidos e próximos.

Gré, que gostava de brincar mesmo nas ocasiões mais difíceis, sem olhar para Pyrus, disse entre dentes: -“Livra-te de me usares como arma de arremesso…”. O gracejo funcionou como unguento para a melancolia do companheiro, arrancando-o da modorra. –“Rápido Gré, ocultemo-nos naqueles arbustos!”. Assim o fizeram, pedindo cobertura a uma giesteira. Com todos os sentidos alerta, aguardaram pelo desenrolar dos acontecimentos.

E foi com grande admiração que os dois companheiros presenciaram a chagada quase simultânea de 4 estranhos, em pares, de caminhos diferentes. Da sua direito, entraram na clareira, uma jovem humana, alta e esguia, de farto cabelo ruivo, seguida por um gato – pasme-se! – que se deslocava apenas sobre os membros posteriores, elegantemente protegidos por botas altas. Usava chapéu e vinha a tagarelar com a parceira. Logo de seguida, igualmente em amena cavaqueira, surgiu de uma passagem (para a clareira) frontal à anterior, outro humano, rapaz de tez muito clara e de mediana estatura e - pasme-se novamente! – acompanhado por um azevinho estreito mas pujante, que usava as raízes como pés! Os dois grupos estacaram quando se viram e o ar calou-se.

 

(continua)

 

Andarilhus “(º0º)”

XVIII : VII : MMVIII

música: Radiohead: Creep
publicado por ANDARILHUS às 17:09
Segunda-feira , 14 de Julho DE 2008

Corpo e Alma

 http://www.microcaos.net/wp-content/astrologia-karmica.jpg

 

No princípio ela quis o corpo.
Toda ela era volúpia,
Calor e movimento.
Ele acompanhava-a, inebriado,
Transpirado.
 
Entre os risos dos afectos,
Ela foi-lhe descobrindo a alma.
E logo se encontrou,
Enraizada no interior do homem,
Nos redutos da pessoa.
Porque ele já a tinha absorvido
Bem para além da matéria.
Deixou-se então acompanhar,
Enamorado de coração,
Seduzido.
 
E ela, quanto mais o sabia,
Mais o amava. Porém,
Perdia-se em escola de Platão
Em contemplação de céu e paraíso,
E já não conjugava a sedução.
Só lhe queria a alma…
Ele procurava-a em paixão,
Desacompanhado, triste,
Sangrado.
 
Entregara-se completo:
O integral e não a soma das partes.
E ela tinha-o apenas por anjo.
Matara o corpo, matara o homem…
 
Andarilhus “(º0º)”
XIV : VII : MMVIII

 

música: La Musgaña: El Rondador Desperado
publicado por ANDARILHUS às 18:02
Sexta-feira , 11 de Julho DE 2008

A Ferros

Batalha de Navas de Tolosa.
Pintura a óleo do século XIX,
de F. P. Van Halen (Wikipédia)

 

 

Lábios secos, boca cerrada em sorriso de dente rangido, corria-lhe sangue espesso pelo pó quente do terreiro ao longo das têmporas e sobretudo dos braços.
Tinha-o feito. Colhera as flores da raiva e da ira, triturara-as em almofariz de adrenalina. Entregara o comando ao instinto. Nem necessitara de acordar os reforços da coragem.
Logo ali, na vista turva do energúmeno, transpirara olhares feros de afiada vontade, como gritos roucos dos processo e dos actos que lhe afloravam em ondas as veias do mar alvo da sua pele eriçada.
Saltou a saliva como um bando de pardais espantados, que lhe espumou a barba rala e áspera, de tez de campina longamente queimada pelo sol. Dissera-lhe: “Não passas de hoje, cão infiel! Não terás a alegria de ver outro amanhecer.”
Tinha finalmente alcançado aquele diabo humano que lhe arrombara a casa, esventrara a família e cuspira na sua fé. Chegara enfim ao rosto da turba que lhe tomara o país, violado a terra e feito de si um animal fugido por serranias sem pé e por tempos sem dias ou noites.
Estavam ali, quedos por segundos esquecidos da História, quedos por 10 palmos e à mão dos punhais de ambos. O ódio levantara cortina de ocultação do agigantado campo da batalha, criara um espaço de funesta intimidade para a cruz e para o turbante. Na verdade, estimava-o só por ele estar ali presente. Só assim o podia abominar e crivá-lo de toda a maldade que lhe ocorresse…
O franquisque uivou no ar e embateu com estrondo na retesa cimitarra. As imagens do exílio, a perseguição, a fuga, os invernos frios, os antepassados mortos e cativos, os entes queridos perdidos para a cova, para os trabalhos e para as luxúrias dos palácios, para o deserto, tudo passava por aquele braço que brandia a fúria do pensamento.
O outro braço, o da cimitarra, não foi suficiente. Não estava com tamanho espírito. Talvez, o olhar terrível do oponente lhe tivesse enfraquecido a determinação. Não susteve o golpe, facilitando a força predadora do franquisque. A frágil armadura abriu brecha profunda e a carne não foi suficiente para abraçar a lâmina esfomeada: a dentada só abrandou no úmero, mas despedaçou-o. Estava sentenciado.
O atacante fez um sorriso de esmola na demanda de uma palavra de clemência. Não a ouviu, mas também não se importou. Rodou sobre si num círculo perfeito de 180º e a arma, mais uma vez, atiçou os pífaros do ar, soando brevemente numa surdina opaca, para sair do corpo em estridente vibrante agudo. O corpo caiu por terra em duas metades. O carrasco tombara no cepo que erguera.
E ele saiu dali com os lábios secos, boca cerrada em sorriso de dente rangido.
 
Quem com ferros mata, com ferros beija o pó que lhe servirá de mortalha...
 
Andarilhus “(º0º)”
X : VII : MMVIII 
música: The Smiths: A Rush and a Push and the Land is Ours
publicado por ANDARILHUS às 08:50

BI

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