Por Ti Seguirei... (35º episódio)

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Talauto ordenou o acompanhamento permanente dos arévacos e relatórios periódicos das suas movimentações. Só entrariam em Obila com escolta local.

Entretanto, intensificavam-se os trabalhos de finalização do recinto dos jogos, fora do espaço amuralhado, tal como previsto.

Aproveitando um conjunto paisagístico definido por uma prolongada depressão do terreno entre duas suaves elevações, reunindo a disposição ideal para o enquadramento do foco da acção com a assistência, limitou-se o campo dos jogos, construíram-se estruturas em madeira e dispuseram-se os materiais necessários às várias modalidades em disputa, limpou-se o terreno para a presença dos espectadores e criou-se a área do júri e registo das classificações.

A Poente e adjacente a esta área central, num prado pouco irregular, regularizou-se o solo - retirando as pedras mais expostas e cortando a vegetação - para palco das corridas, apeadas e em montada. No limite mais afastado, ergueu-se a imagem de um berrão monolítico, que servia de ponto de retorno e dividia a pista em dois sentidos.

Uma vez em visita a todos estes preparativos, para garantir que tudo estaria pronto no dia seguinte, Talauto, sempre acompanhado pelos seus hóspedes amigos, sugeriu que fossem um pouco mais além e visitassem o espaço sagrado. Por lá também se desenvolviam trabalhos de limpeza e adorno.

Enquanto se aproximavam, passaram por uma coluna de animais, guiados para os currais do santuário, onde aguardariam o momento excelso em que seriam consagrados aos deuses, servindo como instrumento de manifestação dos sinais divinos sobre os desígnios que estavam reservados aos Homens. Um par de bois jovens e robustos seguiam, conduzidos, cada qual, por 4 sacerdotes possantes, cada um destes a firmar, de forma bem retesada, uma corda, de modo a não permitirem a marrada dos bichos, para qualquer um dos lados. Seguiam também, vacas, porcos, bodes, cabras, ovelhas e uma parafernália de aves num carro-gaiola.

O recinto abria-se após um amplo vestíbulo ladeado por berrões de grande volume, figurando touros e porcos, dispostos na formalidade de uma imponente guarda de admissão e de vigilância da passagem do mundo ímpio para o sacro.

O complexo do santuário estava organizado como um circuito de jornadas de metamorfose do peregrino para alcançar a respeitável comunhão com os deuses: a purificação, a reverência, a devoção, a sujeição, a oferenda, o rogo.

Rubínia maravilhou-se e praticamente imaterializou-se para o exterior. Viajava no seu íntimo, buscava as recordações e o conhecimento do seu mundo experimentado. Entrara num lugar que a obrigava a redimensionar a sua concepção da escala de grandiosidade atribuída ao labor humano, inspirado pelos deuses: o santuário de Obila impunha-se como a multiplicação indescritível, em tamanho e monumentalidade, do saudoso santuário de Panoia, onde conhecera Tongídio. Tantas lembranças, tantas quimeras. Soltaram-se as lágrimas por motivo da memória e também pelo forte sentimento da presença divina.

Os altares sucediam-se, esculpidos nas dádivas graníticas da deusa Atégina, tão abundantes naquelas paragens. Uns mais verticais, outros mais achatados e amplos, cada qual concebido para determinada função dos rituais. Escadas, fossas e canais rasgados na rocha estavam limpos das ofertas dos ventos e das oferendas dos devotos. Os templos de cada deus aí venerado, que regiam a utilização dos altares, haviam recebido novas mantas de linho e lã e o enfeite com as mais belas flores da região. Estavam engalanados.

Talauto deu-se conta da alienação emocional de Rubínia e notou uma forte – mas muito bem camuflada – impressão em Tongídio. Os restantes amigos estavam igualmente impregnados pelo ambiente etéreo. Lembrou-se de um pequeno altar, colocado discretamente num dos limites do recinto e decidiu promover uma pequena cerimónia, em honra dos companheiros.

Meus dilectos amigos! Sinto que estais encantados neste lugar sacro. Temos aqui o ensejo para pedir a bonança, para vós e vosso destino e, já agora, para os jogos e futuro de concórdia na Ibéria. Vamos ao altar do panteão universal, onde cada qual poderá exortar a protecção do seu deus e realizar a respectiva oferenda. Sigam-me.”

Como não haviam trazido dádiva para a cerimónia, Talauto convocou o Sacerdote Maior e solicitou 5 pombas, das mais dóceis e imaculadas, para o sacrifício. O próprio líder religioso executou os ritos, prenunciando o aproximar de tempos de amargura e de provação, que se dissipariam após um acontecimento decisivo, dando lugar a um longo período de paz e de fortuna. A tranquilidade assomou-se aos acólitos.

O regresso ao povoado pautou-se pelo silêncio e a introspecção, porém com um brilho especial em cada rosto. Após os sussurros divinos, os gritos e a maledicência mundanos já não sortiam efeitos tão desanimadores e de tamanha preocupação.

A crua realidade humana não concede tréguas aos que respiram a paz, na sua maturação mais íntima. A razão não consegue abster-se incondicional e intemporalmente aos estímulos constantes e diversos da sôfrega vida, como o faz a loucura. Assim que chegados às portas de Obila, o senhor vetão foi requerido com urgência para a praça central: os arévacos, em visita ao povoado, tinham provocado uma altercação na taberna onde assentaram, descarregando grande fúria pelos elementos da escolta e pelos restantes clientes do estabelecimento. Por lá se mantinham entrincheirados, a comer, beber e destruir, não obedecendo às ordens para regressarem ao acampamento.

Talauto acudiu ao local, secundado pelos celtas amigos e por uns quantos homens-de-armas. Encontraram muitos despojos do recheio da taberna espalhados pelo espaço exterior. Projectados, certamente, pela porta e janela, agora arrombadas. A multidão concentrava-se como bagos maduros de um grande cacho de uvas, mas mantinha-se afastada, respeitando as instruções das autoridades.

O responsável pela escolta do grupo tumultuoso, com a devida reverência, dirigiu-se ao chefe e procurou explicar a situação, assumindo a sua falha de controlo.

- “Sou Sélvio. Peço que me castigues, pois não consegui dominar estes tratantes arévacos. É muito estranho, ficamos com a impressão de que se comportam propositadamente para causar problemas. São cerca de 25 guerreiros. Pediram educadamente permissão para entrar em Obila. Porém, assim que atravessaram as muralhas, começaram a insultar e gracejar com os nossos compatriotas e todos os indivíduos de outras tribos com quem se iam cruzando. Foram rudes com as mulheres e os velhos. Pretendíamos retirá-los de imediato, contudo surpreenderam-nos, desatando a correr indiscriminadamente em direcção ao centro. Concentraram-se nesta taberna e, desde então, desataram a partir tudo no interior, a expulsar todas as pessoas cá para fora e vão-se servindo do que bem entendem. Já tentamos persuadi-los a sair mas, a cada nossa manifestação ou movimento, atiram com mais alguma coisa lá de dentro. Se forçarmos a entrada, receio que haverá sangue, muito. Entrego-me nas tuas mãos, meu senhor.

- “Acalma-te Sélvio. Tenho a certeza que fizeste o teu melhor ou aquilo que qualquer um faria no teu lugar. Sempre desconfiei deste contingente. Eu trato disto agora. Preparem as armas e as redes, para o caso de serem necessárias”. Talauto sorriu para o subordinado, transmitindo-lhe confiança. De seguida, fez um ténue sinal a Tongídio, Alépio e Gurri. Perceberam, de imediato, que gostaria que o acompanhassem.

Os 4 aproximaram-se da entrada do negócio, cuja porta estava tombada pelo chão. O vetão encheu os pulmões e gritou grosso para o interior: - “Sou Talauto, filho de Talamo, chefe supremo dos vetões. Vou atravessar esta passagem para conferenciar convosco. Se não terminarem com esta agressividade desnecessária, dou ordens para que sejam todos passados à espada!” Sem mais palavras, entrou na taberna, seguido pelos 3 amigos.

Os arévacos estavam reunidos no extremo contrário à porta, alguns de pé, outros sentados pelas cadeiras e mesas que ainda permaneciam no interior do estabelecimento. Pipos esventrados, a cerveja a correr pelas lajes, ensopando o tapete irregular de palha, louças partidas e o mobiliário completamente arrancado às suas posições originais, marcavam o ambiente que rodeava o grupo de arruaceiros, que ostentava um sorriso colectivo irónico, enquanto elevavam as vasilha das bebidas em brinde aos recém-chegados.

- “Quem é o chefe desta horda insana?!”

Levantou-se um guerreiro que se demarcava pelo contraste das suas negras vestes com o cabelo longo e ondulado, de tom vincadamente ruivo, e de tez carmim claro: - “Sou eu, Tanino, estou indigitado por Areatavo, líder do grupo que o meu povo enviou para os jogos.

- “Tanino, a que se deve esta vossa insurreição e comportamento marginal? Será que procurais “trabalhos” extra? Fostes recebidos com cordialidade e hospitalidade, na exacta medida conferida aos outros povos. No entanto, esqueceis o respeito por quem vos acolhe e distribuis destruição e violência. Exijo que vos retireis ordeiramente e sem mais contratempos, sereis escoltados ao vosso acampamento e não voltareis a por os pés em Obila, até que termine o torneio. Logo mais, falarei com Areatavo.”

- “Nós só queríamos um pouco de diversão. É grande a monotonia e a espera. Tudo se precipitou: estes rapazes estão ansiosos por acção! Hehehehhe!” Respondeu o arévaco e continuou: –“Tal como pediste, vamos regressar à nossa base calmamente. Sobre voltar, ou não, a pôr os pés na cividade… logo veremos. Temos necessidades…” Piscou o olho ao interlocutor e acentuou o sorriso sarcástico. Colocou-se em marcha, atirando a cadeira contra a parede e fez sinal para que o seguissem.

A nova menção a “pôr os pés” levou a que Alépio, inconscientemente, desviasse o olhar para os pés dos arévacos e o que viu fez com que se abeirasse discretamente de Tongídio e lhe segredasse, sem o encarar: -“Examina os pés daqueles 3 que estão encostados ao balcão…

- “Romanos!!”, Tongídio soltou um grito surdo, sem que os outros percebessem.

Apesar dos longos mantos de lã, as Caligae viam-se de forma esclarecedora. Ou eram realmente Romanos ou haviam sido roubadas àqueles. Só os do Lácio produziam e utilizavam aquele tipo de calçado.

Ponderado, Alépio controlou o ímpeto de Tongídio, sem atrair atenções, deixando a continuação da farsa, evitando a denúncia imediata.

Tanino e os seus, desta vez, cumpriram com a observância da ordem e saíram de Obila pacificamente, apesar das risadas de escárnio.

Talauto tomou conhecimento da descoberta de Alépio e, por sua vez, comunicou a situação a seu pai. Talamo, fonte de sabedoria e experiência, pediu que todos se contivessem e entrassem no jogo do inimigo. Era importante obter o máximo de conhecimento, enquanto aqueles ignoravam que já haviam sido descobertos. Por outro lado, com tacto e argúcia, perscrutariam quais os povos que estavam pela sua causa e quais os que estavam envolvidos na trama urdida pelos romanos. O jantar dessa noite poderia revelar as respostas.

 

Andarilhus

V : IV : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 08:43