Por Ti Seguirei... (36º episódio)

 

http://www.claudiocrow.com.br/imagens/banquet.jpg

 

Nessa noite, Talamo e os seus convidados festejavam a véspera do início dos jogos. Á imagem dos jantares anteriores, desde a chegada das comitivas, cada chefe de clã fazia-se acompanhar de um pequeno séquito de indivíduos da maior confiança e fidelidade, ilustres entre os seus.

Á mesa suprema dos vetões reuniam-se assim as elites de uma alargada amostra dos povos da Ibéria. Destacavam-se pelas mais nobres artes: a chefia, a índole guerreira, a sabedoria ou a religião; todas elas, tantas vezes, manifestadas numa só pessoa.

O anfitrião começou por dar as boas vindas aos convivas e exortando aos deuses a dádiva de uma boa reunião entre pares. Indicou para que se servissem as iguarias e ordenou a execução musical e de entretenimento. Acenou graciosamente para que todos tomassem os seus lugares e iniciassem o repasto.

O salão era amplo em espaço e prumo, embora singelo na decoração. Ostentava colunas despidas e tecto unicolor. As paredes mostravam a sua natureza granítica e, por adereços, apenas sustinham os suportes dos archotes de mecha ensebada que iluminavam, eficazmente, o perímetro.

Uma só mesa em forma desenhada de U, tosca mas robusta, de secções longas, complementada por bancos paralelos, com iguais características, apresentava-se como o mobiliário central. Na verdade, para além deste singular conjunto, por tamanho recinto só se viam mais alguns escabelos singulares, sobretudo na área dos músicos.

No topo da mesa, sentaram-se os vetões e os povos mais próximos por natureza afectiva e geográfica. Pelos braços laterais daquela, sucediam-se as tribos, de acordo com os mesmos critérios e afinidades. Os vacceus estavam no extremo direito de Talamo e os arévacos imediatamente a seguir, no início do segmento perpendicular.

Começaram a distribuir o pão e os manjares. Pequenos pipos de cerveja faziam um corrupio constante, aos ombros de gentes que já transpiravam na azáfama de manter os copos de barro ou os chifres de touro atestados. Travessas de madeira foram dispostas entre os comensais com as mais variadas carnes assadas em espeto: dezenas de frangos e melros; caprinos e bovinos, coelhos, veados e a grande especialidade, onagro.

As mulheres iam e vinham, mantendo a fartura e provendo para que nada faltasse entre todas as comitivas. O jantar decorria normalmente, entre conversas e gestos elucidativos, com risadas e mesmo gargalhadas à mistura. A concórdia dominava os espíritos.

Já havia largas passadas na noite quando, repentinamente, se ouviu uma voz alterada a emergir do burburinho da sala e da própria sonoridade musical. Fez-se silêncio em busca de quem assim vociferava. Era Corveio, dos arévacos, o qual protestava, mostrando grande desagrado: - “Temos as travessas vazias há já muito tempo! Vejo que não nos servem como servem os outros convidados desta mesa. Tratam-nos como menores, injuriam-nos e humilham-nos! Por onde andam essas vis mulheres que repartem a comida? Estava melhor no acampamento: pelo menos por lá não passo fome.” A intervenção foi aclamada e reiterada pelos restantes do seu clã.

As diferentes comitivas entreolhavam-se interrogativas. Não percebiam qual a razão de queixa. Julgaram ser um arrufo de um grupo já com muita cerveja passada pela goela. Continuaram o jantar, mas sem a descontracção anterior e mais atentos aos acontecimentos. A música retomou.

Os do grupo de Rubínia, conhecedores de outros factos sobre os arévacos, ficaram bem mais preocupados. Tongídio fez sinal a Gurri, o qual, junto dos seus vacceus, era o mais próximo dos excitados.

Talauto, diligenciando a vontade do pai, chamou o governante dos serviçais e procurou saber o que se passava. O subordinado, periclitante e algo engasgado foi dizendo: -“As mulheres recusam-se servir os arévacos, senhor… Começaram por fazê-lo normalmente, como com todos os restantes, contudo aqueles… hum… digamos, tiveram atitudes incorrectas com elas, nomeando-as de ordinarices e, furtivamente, tocando-as com malícia e abuso… Agora, as raparigas negam-se a passar por eles e há já noivos e maridos só contidos pela força, na sala adjacente. Não sei mais o que fazer. Isto está a descontrolar-se.”

- “Loivo diz às mulheres que os sirvam. É a minha ordem, bem como que os respectivos homens se acalmem. Não me apercebi da situação, mas agora serei eu a tratar do assunto.”

Assim que abastecidos de alimento, os arévacos contiveram-se de outras manifestações enquanto se iam empanturrando. Porém, satisfeita a gula, não demorou muito a que começassem a prestar atenção a outros motivos de voracidade. O próprio Corveio - a voz que antes se erguera para reclamar -, instigado pelos outros, puxou uma mulher que passava com um tabuleiro de pão – o qual vazou pelo chão – obrigando-a a sentar-se no seu colo e apertando-a contra si, enquanto a criatura barafustava e esperneava, procurando liberta-se do abraço insolente. Os outros arévacos riam-se desmedidamente, incluindo o seu chefe Areatavo, e começavam a olhar em redor na busca de presas semelhantes.

Ciente da possibilidade de alastramento do agravo e perante o espanto de toda a sala com tais insólitos acontecimentos numa cerimónia que se entendia, a todos os títulos, formal e de grande esforço diplomático, Gurri - antecipando-se a Talauto -, num salto, deixou o seu lugar, deu dois passos por cima da mesa e atirou-se sobre Corveio, que teve assim de largar a rapariga vetã.

Rolaram pelo chão. Corveio levantou-se primeiro, sacou da adaga e investiu sobre Gurri, que ainda se erguia. O vacceu, guerreiro muito experimentado, desviou o braço atacante e projectou o corpo, pleno de energia, na direcção do arévaco, aplicando-lhe uma formidável cabeçada no rosto, obrigando-o a tombar pelas lajes de ardósia e à inconsciência.

Areatavo e os seus, observando o companheiro sem sentidos e a sangrar profusamente pela boca e nariz, puxaram das armas e cercaram Gurri, de rompante. Porém, já os vacceus acorriam em socorro do seu chefe, assim como Alépio e Tongídio. Formaram-se dois grupos, prontos para se desossarem ali mesmo, no salão nobre dos vetões.

A maioria das outras comitivas ficou expectante, enquanto astures e cantábricos acusavam os arévacos de provocadores, e os túrdulos imputavam as culpas a Gurri por excesso de zelo.

-“Alto! Guardem-se as armas e cada qual regresse ao seu lugar. Sou vosso anfitrião e também, enquanto aqui estiverem, a autoridade deste local e dos seus hóspedes!” Interveio Talamo.

– “Tragam água e ajudem esse homem a recompor-se.” Ordenou.

Não foi imediato, mas pelo menos as armas desapareceram nos cinturões e os grupos deslocaram-se para as suas posições na mesa, embora permanecendo de pé.

-“Areatavo, o teu contingente tem demonstrado falta de respeito pelo meu povo, que vos acolhe. Os comportamentos grosseiros de hoje, primeiro na taberna da praça central de Obila, e agora estes excessos durante o jantar, são intoleráveis!

Se quereis actividade e exercício deveis guardar-vos para amanhã, para o torneio. Estamos reunidos para disputar jogos de amizade e procurarmos os consensos possíveis face aos acontecimentos recentes na Ibéria.”

- “Talamo, os arévacos são senhores do seu destino, em qualquer lugar que seja. Estamos nos teus domínios para mostrar as nossas capacidades nos jogos e não para ser teus vassalos. A partir de hoje, não entraremos mais em Obila.

Quanto a esse tão badalado concílio que procuras, sabemos bem dos teus planos para juntar forças contra os nossos amigos romanos. Não os julgais bem: eles buscam apenas a aliança diplomática e o trato comercial. Andam agora mais alvoroçados militarmente porque foram atacados por grupos celtas, cujos líderes estão aqui nesta sala. Os mesmos que tanto mal têm propagado sobre os arévacos, com armadilhas e acções cobardes, as quais pagarão futuramente.” Respondeu Areatavo, procurando subverter a realidade dos factos, enaltecendo o seu povo e aliados e deixando Tongídio e companheiros com o sangue a ferver.

Por consideração com os vetões, não responderam ao arévaco.

Talamo apontou o dedo a Areatava e foi duro nas palavras: -“Por honra de anfitrião, estou obrigado a ouvir as tuas ilusões ou mentiras. Sabemos bem onde procurar a verdade. Talvez os próximos dias nos esclareçam sobre quem terá razão. Entretanto, dispenso quem quiser abandonar este jantar e faço votos para que se esqueçam estes infelizes episódios e haja justiça e mérito nos jogos que começam amanhã.”

Os arévacos seguiram o seu líder, que mostrou bem o rancor antes de sair: pegou numa travessa e arremessou-a para o meio dos músicos, que só tiveram tempo para se desviar e saltar umas quantas notas da melodia.

Corveio, ainda aturdido, e a jogar na mão com dois dentes - como se fossem dados -, arrancados pelo golpe de Gurri, deixou um praguejo, que saiu “assobiado” pelas novas aberturas da dentadura: - “Esspero-te noss jogoss,vacceu! Vou-te arrancar esssa cabeça de carneiro montêss!”.

Os clãs do Sul também deixaram a reunião.

Talauto, em nome do pai, convocou os chefes das tribos para um canto da mesa e passou a dar-lhes conhecimento da situas circunstâncias: -“Ilustres caudilhos, de uma maneira geral já todos devem saber do avanço dos romanos na Ibéria, sob pretexto de se defenderem dos cartagineses de Aníbal, longe da pátria. Com esse motivo adiado, agarram-se agora ao desejo de capturarem os celtas que venceram a poderosa legião junto a Sekia.

Na verdade, como é fácil adivinhar, mesmo para os que não têm o dom de escutar os segredos dos deuses, o que estes estrangeiros querem é aumentar o seu território e explorar os recursos admiráveis da Ibéria, impondo o seu domínio e lei aos povos que aqui sempre viveram.

Os arévacos são ingénuos, deixando-se utilizar como os sapadores dos seus intentos de infiltração. Hoje, descobrimos mesmo que há romanos disfarçados na comitiva deles. Num descuido, revelaram as marcas da Legião: a tatuagem que um tentava esconder é indesmentível, e só podem ser romanos a usar aqueles feios apetrechos para os pés a que chamam caligae!

Temo que este grupo seja uma avançada para espiar os nossos movimentos e também para lançar a discórdia entre nós, levando à frustração da união contra os novos invasores.

Assim vos digo, temos de reunir forças e dar combate aos romanos, ou então seremos subjugados e escravizados!”

Os chefes dos Lusitanos e dos Calaicos não poderiam estar mais de acordo. Aliás, já estava a faltar uma boa guerra que obrigasse os coiros a transpirar. Os dirigentes das tribos do Norte conferenciaram entre si e o asture anunciou que iriam esperar até final do torneio, perscrutar a vontade dos deuses, e só então dariam uma resposta.

O serão continuou, mas algo comprometido com os factos ocorridos. Quando já estava um conjunto de indivíduos muito restrito no salão, sobretudo locais, Talamo deu ordens para que se reforçassem as patrulhas nas fronteiras Norte e Este, e que estivessem em permanente alerta. Suspeitava que chegariam visitas indesejadas.

 

Andarilhus

XI : IV : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 22:13