Por Ti Seguirei... (40º episódio)

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O jogo derradeiro desse memorável dia foi o da luta corpo a corpo. Neste domínio revelavam-se mais os povos do Sul. Não foi assim com surpresa que se anunciou a vitória do concorrente Batestano, ganhando na final frente ao Túrdulo e ao Cónio.

A noite chegou com muita alegria e convívio pelos diferentes arraiais. As comitivas reuniram-se em festins colectivos. No banquete do palácio, o ambiente também tinha melhorado muito. Inclusivamente, já não ocorria de forma tão rígida a ordem das diferentes tribos ao longo da mesa. Os comensais misturavam-se, trocavam brindes, recuperando antigos conhecimentos e desenvolvendo novas amizades.

Das janelas do baluarte, regalavam-se os sentidos no mirar vasto das inúmeras fogueiras, envoltas pela escuridão, ao redor de Obila, e escutar os sons de comemoração e diversão.

O grupo de velhos amigos conversava num dos balcões exteriores mais amplos. Tongídio e Rubínia estavam a um canto, namoriscando na brisa amena dos serões do estio. Alépio explicava como teria esventrado Tanino, se tivesse tido ocasião para lutar com ele, reprovando efusivamente os golpes traiçoeiros usados contra Gurri e Mauri. Logo Talauto, brincalhão, abanava o vacceu, procurando desembruxá-lo daquela letargia triste, que o consumia por não ter recuperado da visão antes de Mauri ter enviado o maldito arévaco para trabalho aturado dos curas. Se os deuses lhe tivessem dado essa honra, Tanino estaria agora derretido pelo fogo, na pira fúnebre. Zímio mantinha-se contido e sonolento, na sua vigilância contínua.

Pensavam já no dia seguinte, desafiando-se uns e outros para o melhor desempenho na captura da presa, pelos bosques do termo de Obila, quando entrou um conjunto de guerreiros, pedindo para falar com o seu comandante. Talauto escutou as novas e enviou os homens com ordens de contingência. Dirigiu-se aos amigos.

- “As novidades são aquelas que já prevíamos. O nosso posto de observação no penhasco de Aleata recebeu sinais da fogueira central do castro de Corajata, alertando para a movimentação da legião romana a Nordeste. Estão neste momento algures entre os territórios astures e vacceus e dirigem-se rapidamente para posições a Norte de Obila. Tudo indicia que nos vão atacar em breve. Não deixo de estranhar ser uma única legião; ou estão imensamente confiantes, ou têm alguma tramóia preparada. Tanto mais que havia notícias da chegada de mais legiões à Ibéria. Se sempre vieram, onde é que param? Não temos quaisquer notícias delas.”

Alépio que conhecia melhor do que ninguém a astúcia dos latinos, não deixou de insistir: - “Tem de haver algo em curso para nos surpreender. Disso estou absolutamente certo. Não há outros postos de observação? E das patrulhas, o que se sabe?

- “Até ao momento, é o conhecimento compilado. De facto, as patrulhas do Sul estão demoradas com relatórios actualizados. Quanto aos postos que vigiam o Sul e o Oeste nada têm relatado. Temos de aguardar. Entretanto, já dei ordens para, de maneira cautelosa e sem atrair atenções, se tomarem as medidas previstas para contrariar um cerco. Desde esta noite, vão começar a armazenar provisões e a carregar os arsenais. Vou orientar o inicio desses trabalhos. Querem acompanhar-me?”

Desceram aos terreiros e dirigiam-se às portas principais, sendo então confrontados por um guerreiro que conduzia, adiantado, um grupo alargado de gentes. Vinha alterado e ofegante. Respirou fundo e ao ritmo das batidas do coração, foi dizendo: -“Vêm duas legiões de sudoeste no nosso encalço. Julgo que têm por destino esta nossa capital. Sou Barvasco, 2º comandante da patrulha do Sul. Ateneu, responsável pelo corpo expedicionário foi morto em combate. Fomos traídos pelos arévacos e caímos numa cilada dos romanos. Dos cerca de 150 homens, restam apenas uma vintena, e uns quantos em muito mau estado. Durante a fuga, encontramos esta caravana de mercadores, que nos ajudaram com os feridos.”

Um homem de respeitosa idade e longas barbas aproximou-se, formando uma vénia antes de se apresentar: - “O meu nome é Oldegário, de Lacobriga. Sou mercador. Trago uma caravana no trato do negócio. Segui a costa até ao estuário do Tagus. Aí enveredei para Este, no alcance dos vossos domínios, foi quando encontrei estes vossos militares. Prestei a assistência que me foi possível, com os recursos que trazia na viagem.”

- “Mas, tu és o meu bom amigo, de longa data! Chamava-te “Tário”, quando era pequena!” Exclamou Rubínia. Correu a abraçar o ancião.

- “Lembras-te de mim, Rubínia, filha de Físias, teu companheiro de sortes?! Recebemos muitas visitas tuas em Tongóbriga. Trazias-me sempre uma oferta. Ansiava com as tuas visitas e as tuas surpresas. Depois de me mudar para Tanábriga nunca mais estivemos juntos. Há quanto tempo…

- “Mas, claro! São nítidos os belos traços de tua mãe, Edúnia, e o espírito e o ar de rebeldia de teu pai, meu bom amigo Físias! O que é feito de ti, rapariga? Como cresceste!

Ficaria para mais tarde a narração das vivências de cada um. Naquele momento era essencial lidarem com o perigo que se apresentava a curtas jornadas. Os maiores receios concretizavam-se. Por relato de Oldegário, souberam então que os romanos traziam duas legiões de Este, com as quais varreram toda a costa Sul da Ibéria - obrigando Aníbal a atravessar as colunas de Hércules, para pôr a salvo o exército que tentava recuperar -, reuniram-se aos arévacos a Norte do território Cónio, nas margens do Tagus, encontrando-se depois com um corpo de soldados mais reduzido, mas com tropas bem treinadas, que as galeras haviam trazido para desembarque na costa de Olissipo. Encorpavam-se em quase 3 legiões. As populações estavam alvoroçadas e procuravam refúgio, abandonando o terreno por onde passariam as tropas estrangeiras.

A conquista romana da Ibéria estava em marcha e ia apontar ao local onde se encontravam reunidos os cabecilhas das forças que podiam dificultar as ambições expansionistas dos latinos: Obila. Não havia dúvida, seriam cercados por um grande exército, em efectivos, táctica e experiência.

- “Certamente que os povoados enviaram mensagens à nossa atalaia do monte Urze. Porque que é que os vigilantes não nos comunicaram já destes movimentos? Algo se passa!” Desconfiava Talauto, exteriorizando o pensamento.

O caudilho vetão agradeceu ao mercador e deu instruções para que fosse acolhido como amigo do clã, com todas as honras. Reuniu um punhado de guerreiros, aos quais se associaram os amigos, fez erguer o cavalo nas patas dianteiras e gritou: - “Vamos verificar o que se passa no alcantilado do Urze!

Saíram do povoado sem levantar suspeitas, em pequenos grupos. Passaram longe dos acampamentos das comitivas. Essas precauções e os festejos que ainda se viviam permitiram que desaparecessem no escuro sem serem notados. O alto que buscavam ainda ficava afastado. Via-se ao longe, demarcado na penumbra pelo magro luar.

No topo do alto penedio, a atalaia cumpria duas funções principais: uma estava na vigia do território a longa distância; a outra residia na comunicação, através de sinais de fogo, produzidos a partir das labaredas de uma gigantesca fogueira, acesa todas as noites, com outros pontos com igual sistema de transmissão de mensagens. Conjuntamente com o envio de aves mensageiras, esta era a forma mais expedita para passar as notícias entre povoados, por vezes a longas distâncias, através do uso sequencial da rede de pontos de emissão e recepção.

Guiavam-se pelo foco luminoso, cada vez maior, criado pelas labaredas do píncaro afiado. O sopé do monte, coberto por erva macia, permitia uma aproximação com os cascos dos equídeos abafados. Subiram o dorso do Urze até onde foi possível manter esse silêncio. Assim que o cascalho tomou o lugar ao tapete verde, desmontaram e seguiram apeados pelo trilho longo e circundante ao complexo rochoso. Rubínia e Zímio e dois vetões ficaram de guarda aos cavalos.

Após já prolongada multiplicação de passos cautelosos, começaram a ouvir os primeiros sons do que parecia ser um frenesim. Música de flautas, cantares, gritos, precursão de vários instrumentos, chegavam cada vez mais retumbantes ao grupo que se acercava. Pelos indícios, ali também festejavam rijamente e mostravam-se pouco alerta nas funções em que estavam incumbidos.

Alcançada a plataforma do cume, dispersos e escondidos atrás das rochas, deram conta da situação: perto de uma vintena de guerreiros foliavam em volta da grande fogueira, tocando, cantando e dançando ao som de modas, algo estranhas e num dialecto pouco perceptível, resultante do barulho do crepitar das chamas e das vozes já pouco claras por efeito dos excessos. A comida e a bebida eram abundantes pelas mantas que se estendiam pelo chão. Mantiveram-se ocultos e a avaliar a situação.

Um dos pândegos de maior estatura, desengonçado e aos tropeções, abalou, dirigindo-se atrás de umas moitas de giesteira, para dar vazão às necessidades fisiológicas. Gurri, que estava escondido a alguns passos do local, agarrou-o, tapou-lhe a boca e, com uma pancada seca na fronte, deixou-o sem sentidos. Apesar de pesado, levou a ombros o corpo inerte até junto dos companheiros, em área mais reservada.

Talauto olhou bem para o indivíduo e, nem ele nem os demais vetões, se lembravam daquela figura. O que não era normal, tanto mais que tinha uma fisionomia bastante estranha. Procuraram então pistas que ajudassem a identificar o homem desmaiado. Assim que o libertaram das vestes mais grossas, exteriores, puderam verificar que o antebraço acusava a sua origem: SPQR! Um romano. O posto fora tomado pelos romanos e, decerto, pelos arévacos também. Era um golpe para esconder a chegada das legiões, e quase o conseguiam. Uma busca mais apurada nas redondezas revelou os corpos de 7 vetões, chacinados por aquele grupo hostil de assaltantes.

Colocava-se agora a questão de atacar aqueles meliantes ou manter a situação tal como estava, não deixando de sobreaviso o inimigo. Talauto e os seus conterrâneos pretendiam desmembrar cada um dos que grasnavam lá acima, depois de terem assassinado os seus irmãos. Contudo, Alépio, ponderado e dissuasor na retórica, demoveu os aliados de uma acção imediata. Ficariam assim com a vantagem… para vingarem o sangue derramado dos que haviam morrido. Quanto ao romano capturado, a bebedeira era de tal ordem que ele, na manhã seguinte, não se lembraria de nada do ocorrido.

Quando já desciam pela vertente estreita, atalharam caminho e foram forçados a ocultarem-se novamente, perante o ruído de deslocação e conversa de gente que arribava pelo Urze. Toparam com uma mescla de guerreiros com vestes arévacas e que traziam alguém acorrentado. Era Zímio. Mesmo na sombra daquele período tardia, mostravam-se bem patentes uns quantos ferimentos que lhe cobriam a roupa de sangue.

-“Quieto Tongidio, não deites tudo a perder! Temos de saber o que se passou e onde está Rubínia. Deixemo-los passar. Zímio sabe tratar de si e depois viremos por ele”. Sussurrou Gurri, colocando a mão conselheira no ombro do amigo.

Logo que o grupo que ascendia se encontrava a distância razoável, o celta lusitano desapareceu na noite, correndo pelo trilho, em vertiginosa descida, no encalço do seu desfecho.

(continua)

 

Andarilhus

V : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:16