Por Ti Seguirei... (45º episódio)

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A primeira linha do sítio romano começava a tomar forma a uns bons 100 passos da muralha de Obila. Não era mais do que o conjunto de vários enfiamentos de troncos, um pouco tombados para a frente, com as pontas aparadas, e que servia de defesa inicial à pequena paliçada que crescia atrás de si e em torno do povoado, nomeadamente quanto a ataques de cavalaria. Estas protecções simples assimilavam uma parte ainda significativa das tropas regulares de infantaria, cumprindo turnos de sentinela e de trabalho, na construção dos aparelhos de assalto: balísticas: catapultas, balistas, torres de assalto e um aríete de grandes dimensões.

Aí também tinham instalado os prisioneiros, Rubínia e Zímio, bem visíveis para os iberos. Um pelotão de lanceiros e arqueiros formavam a guarda mais próxima e com ordens para os trespassar ao menor sinal de tentativa de resgate ou ataque do inimigo. Se necessário, a concentração de legionários nas diferentes tarefas garantia a força suficiente para conter qualquer surtida massiva dos sitiados, até que chegassem reforços.

No íntimo de Tongídio adensava-se a luta entre a impaciência e a prudência. O acumular de experiências aportava-lhe uma maturidade acrescida e já não agia apenas por impulsos, sobretudo em situações em que a vida da sua amada e amigos corriam sérios riscos. Viviam uma dessas ocasiões. Sabia-o perfeitamente, sabiam-no todos. O invasor pretendia atraí-los para acções irreflectidas que redundariam na derrota total e prematura ou meramente um pretexto para fazer sofrer tenazmente os prisioneiros e aqueles que contemplavam a sua miséria.

Gurri leu-lhe os pensamentos na expressão facial e acenou a cabeça, transmitindo-lhe acordo e solidariedade: - “Sim, Tongídio. Por muito que nos provoque esta dor aguda, não podemos cair na armadilha dos romanos. Não temos cá o nosso grande estratega Alépio, mas Talauto é igualmente um perito em ideias. Haveremos de encontrar solução, meu amigo e irmão. Rubínia e Zímio estarão connosco novamente…

E tinha razão. O caudilho vetão reuniu os líderes guerreiros no ponto mais elevado de Obila, de onde se podia observar a quase totalidade das imediações exteriores.

-“Camaradas de armas! Estamos próximos de mais um momento em que talharemos os intentos dos forasteiros. Desta vez temos um desafio acrescido que é, simultaneamente, salvar os nossos dois companheiros, que além – apontou - continuam nas garras do opressor. Não será fácil nem a fuga, nem o resgate. Porém, tenho maturado uns planos que poderão resultar. Escutem…” – A estratégia foi traçada ao pormenor por Talauto, recendo algum espanto inicial e depois a confiança e a anuência dos parceiros.

Lá do alto era perfeitamente verificável o formidável engenho dos do Lácio e a organização perfeita do trabalho, promovendo a evolução célere das estruturas e das armas de assalto. Num par de dias já tinham o desenho da disposição dos fortes e a paliçada bem marcado no terreno, os fossos abertos e uma parte significativa da paliçada erguida. Com mais algum tempo a urbe vetã estaria eficazmente cercada. Para tal mantinham-se em constante movimento os milhares de legionários, laborando como formigas.

Rubínia passou o primeiro dia amarrada à cruz sem dificuldades maiores, apesar do Sol intenso. Pela noite começou a acusar a posição imóvel e hirta, e a falta de repouso. Acabou por adormecer de cansaço.

Acordou quando o Sol alteou pelo céu, superando a altura de Obila e a atingiu no rosto com a luz matinal. Sentiu que regressava o pesar e, com o passar do tempo, agravava-se a debilidade. Pela verticalidade máxima do astro solar já começava a ter visões e a delirar. Valia-lhe Zímio que, quase completamente recuperado das suas mazelas, lhe chegava à boca uma esponja embebida em água, espetada na ponta de uma vara. De tempos a tempos, forçava-lhe os pés para cima, suportando-lhe o peso do corpo e permitindo-lhe um leve repouso.

-“Rubínia, Rubínia… segue-me, segue-me…” – Acompanhou a voz doce que tanto a cativava, a desprendia do tronco e a conduzia por uma dimensão etérea, sem solo ou firmamento, até um recanto fresco de uma freicha, onde duas crianças brincavam, junto dos pais. Estavam todos dentro das águas cristalinas do açude, rodeados por ervas e flores policromáticas e carvalhos. Divertiam-se e riam profusamente. Quem seriam? Não os reconheceu até que a figura masculina elevou os braços fora de água, mostrando a tatuagem do urso azul. Era Tongídio! Abraçado a si – Rubínia! Então, as crianças… suas?! Que fortuna!

-“Não desvaneças Rubínia. É este o futuro que te aguarda. Dou-te a garantia da felicidade, porque sempre porfiaste por ela e me és muito dedicada. Honras-me.” – Viu então um vulto de mulher, bela, de longos cabelos claros e tez morena. Pressentiu a divindade. Agora tinha a certeza: era Trebaruna quem lhe falava!

De volta ao despertar no lenho e no ambiente escaldante, olhou para Zímio, que procurava dar-lhe alguma sombra com parte da túnica esfarrapada agarrada à mesma vara da esponja, e sorriu.

-“Meu bom amigo, não há que recear. Agora tenho certeza de que iremos ainda mais além…” - Recuperara o alento e aquela força sem fim que sempre a sustentara.

O final de tarde era como uma bênção de frescura. Zímio também se sentia esgotado. Passara a canícula de pé, procurando valer à sua senhora. Descansava agora deitado aos pés dela. Mesmo naquelas circunstâncias, era um regalo poder apreciar a Lua Cheia a apoderar-se lentamente do manto celeste. Relaxava e quase dormente sentiu uma passagem brusca de ar, seguido de um baque seco, como se fora um dardo a entrar no tronco a que estava encostado.

Ia levantar-se mas tocou com a cabeça em algo macio. Só então viu que, a um palmo acima da sua cabeça, uma flecha estava cravada no lenho. Assustado, puxou o cadeado e afastou-se um pouco. Olhou em redor. Os romanos arrumavam os apetrechos de trabalho e as sentinelas cochichavam entre si, sem lhes prestar qualquer atenção.

Pensou então que a arma deveria ter sido arremessada do lado dos seus amigos. Com movimentos suaves soltou-a. Tinha algo a envolver o cabo. Um tecido muito fino e raro, feito de seda. Desenrolou-o, caindo-lhe no regaço uma pequena serra de sílex, de fino lavor e leveza, mas que lhe conferia muita consistência.

Fora um dos campeões da precisão em tiro com arco dos jogos quem, colocando-se numa posição favorável, fora das muralhas, enviara a flecha a tamanha distância. No pano, desenhos ilustrativos, explicavam a Zímio o que deveria fazer com o utensílio. E este não se fez rogado, iniciando imediatamente o que pictoricamente lhe sugeriam.

Começou por enterrar a seta. Depois escavou à volta do tronco e iniciou a longa tarefa de o serrar. Quando necessitava de descansar ou se aproximavam os legionários, cobria o corte, tapando o buraco e mantendo-o assim abaixo do nível do solo. Durante a noite teve de parar: o som da fricção era muito audível. Só o poderia executar durante o dia, envolvido pelo barulho da azáfama geral.

Zímio repartia o tempo entre a operação de serrar, sempre em contorno, para corroer simetricamente a base da cruz, criando um ponto frágil, mas que resistisse até lhe ser aplicada a força conveniente, e o amparo a Rubínia, dando-lhe a água, o alimento e a frescura possível.

Terminada a empreitada que lhe tinham incumbido, deu o sinal para Obila, ajoelhando-se por terra e tomando a postura de orar aos deuses, com os braços elevados e o olhar no infinito astral.

Cumpria-se, em parte, o pressuposto mais delicado do plano de Talauto. O resto ficava agora a cargo da coragem e da destreza dos guerreiros. Mais um dia de vantagem para preparação de Ribasdânia e concretizariam o golpe de teatro aplicado aos inimigos em Obila.

A cividade ficaria à mercê dos invasores, porém despida de qualquer interesse. Os valores e mantimentos haviam sido levados pelos proprietários emigrados ou estavam a ser metodicamente queimados. Dentro de muros ficariam apenas os pobres e doentes, desinteressados ou incapazes de partir. Esses também não atrairiam a cobiça dos assaltantes: nem para escravos serviam.

De acordo com a vantagem que se pretendia utilizar no instante do abandono generalizado da guarnição de Obila, era imprescindível aguardarem até quase ao final da tarde. Entretanto e antes da chegada desse momento, todos os guerreiros mantinham-se empenhados, sem pausas, à produção das peças-mistério pedidas pelo caudilho vetão. Ficaram prontas no início da tarde.

Nunca se vira nada do género. A partir de dezenas e dezenas de artefactos derretidos e dos materiais das forjas, fundiram, aproximadamente, três centenas de discos redondos em cobre, semelhantes a escudos largos, mas diferentes dos tradicionais, de combate. Estes eram côncavos, perfeitamente lisos e polidos a grão fino. Brilhavam!

Para que serviriam? Para quê aquele investimento em recursos e tempo?

Talauto, ou era um grande inventor ou padecia de loucura incurável…

(continua)

 

Andarilhus

XXIV : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 20:01