Quinta-feira , 30 de Junho DE 2011

Por Ti Seguirei... (49º episódio)

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Quando terminou a chacina já a tarde ia a meio. Talauto ordenou a reunião das tropas junto à cividade de Lijós. Aproveitaram ainda para desbaratar a pequena guarnição romana que aí havia permanecido. Deste último exercício bélico resultou um maior proveito para os iberos: informações. Capturaram os correios da legião, os quais proporcionaram as tabuinhas de argila com inscrições, enigmáticas para a maioria dos guerreiros, mas minimamente inteligíveis para Rubínia, cuja educação também incluíra a aprendizagem dos rudimentos do latim e do grego, essenciais para a arte mercantil.

Rubínia começou por soletrar para si as letras, formando palavras e procurando o significado das frases. Finalmente, após algumas tentativas, lá foi adiantando os farrapos que ia decifrando da mensagem: - “Pelo que entendo destes gatafunhos, o General Octaviano Auris, chefe deste corpo militar que acabamos de arrasar, envia para conhecimento do Cônsul Quintus Scipius a notícia da sua chegada… por barco… através da costa Norte da península. Limpou o terreno na passagem para as encostas do monte Padrelas, onde se refugiam os bárbaros. Aguarda no povoado a que chamam Lijós pela chegada das restantes legiões… nos próximos dias…. para avançarem depois em força para Norte. Angariou muitos escravos, que já encaminha para passar para a Gália ou mesmo Roma.

Não é que o tratante chama-nos “bárbaros”?! Ele que comanda verdadeiros animais de cobiça e devassidão”

-“Seja como for, o sujeito até já pode ser um dos moribundos que pejam os pântanos insalubres de sangue. Com tanta confusão e mortandade nem se conseguiu distinguir as patentes. Apesar das diferentes condições hierárquicas, os romanos morreram da mesma forma e pela lâmina da falcata. Agora é sim tempo de retomarmos viagem. Não se esqueçam da menção sobre estarem à espera dos compatriotas, aguardando-os nos próximos dias. Devem estar perto; não podemos demorar-nos mais por estas paragens…” Avalizou Gurri.

Talauto concordou com o amigo, embora também quisesse que o momento fosse bem aproveitado para auto-estima dos homens, sentindo igualmente que deveria proporcionar algum descanso aos corpos cansados, pela viagem e pela batalha.

- “Meus amigos são de temperança as palavras do nosso ilustre vacceu e amanhã daremos grande folgo à deslocação e grande mingua à distância que ainda nos separa de Ribasdânia. Hoje, após os ritos próprios nas piras crematórias, dedicados aos nossos amigos tombados na peleja, afastar-nos-emos o mais possível deste lugar de morte, deixando-o para pasto das feras e dos deuses dos defuntos. Quando encontrarmos a noite, acamparemos e festejaremos então a vitória e a partida dos nossos idos.”

Um pequeno grupo retornou à floresta para recolher os cadáveres dos camaradas, colocando-os em esteiras improvisadas, montadas entre parelhas de cavalos, de modo a transportá-los para uma colina próxima, onde já outros acumulavam lenha para as piras. Enquanto andavam nestas tarefas, viram-se forçados a reassumir a postura de combate, perante o aparecimento de um grupo alargado de gauleses que se aproximava, saído timidamente da vegetação fechada, desarmados e com os braços erguidos, em sinal de submissão. Já próximos, pararam e um deles, de farto bigode e cabeleira loira, adiantou-se, humildemente agachado e com os olhos a fitar o chão, indo prostrar-se aos pés de Rubínia, a quem endereçou um apelo:

-“Divindade, sou Aternix. O meu povo pertence também à secular família celta. Temos tradições semelhantes. Em nome destes laços ancestrais, pedimos permissão para recolher os nossos mortos e prestar-lhes os ritos fúnebres que lhes são devidos. Sem isso, como é bem sabido, jamais serão recebidos no além, junto dos seus antepassados e dos deuses, teus irmãos. Estivemos no campo oposto da contenda, mas somos justos e crentes. Sempre respeitamos os inimigos abatidos, quando a vitória nos sorri. Peço-te que acolhas e aceites o nosso rogo.”

Rubínia ficou perplexa, tal como todos os companheiros presentes.

- “Hum, porque diriges a mim a tua petição? Acaso conheces-me de algum lado? E tens-me por divina! Serei eu parecida com a imagem de alguma figura sacra do panteão da tua tribo?

O homem puxou as bragas para a cintura, as quais se iam despindo pelo peso da lama que praticamente cobria a textura quadricular colorida do tecido de lã cardado, endireitou na anca a bainha vazia da espada, cingida ao ombro por grossa correia de couro, que atravessava o tronco nu e pintado com símbolos mágicos de guerra, ajoelhou e endireitou o dorso, encarando a mulher.

- “Assistimos ao teu poder no campo de batalha. És mais mortífera que o melhor dos guerreiros. E vi que são muitos e poderosos os que alinham nas vossas fileiras. Nenhum adversário escapou ao fio da tua espada. Sucumbiram todos os que tocaste… és certamente o braço inflexível da morte, a deusa da guerra que veio em auxílio dos iberos. Rendemo-nos à tua imortal potência. Por isso, te peço que consintas velar pelos que aniquilaste…”

Rubínia, ainda estupefacta, olhou para Talauto. Este, percebendo o que se passava e conhecedor do impregnado carácter supersticioso entre os gauleses, aprovou o solicitado com um pequeno sinal de movimento da cabeça.

- “Escuta Aternix: presta as honras de exéquias aos teus camaradas que tombaram em combate. Depois, retira com os que permanecem vivos para lá dos Montes Pirenaicos e regressem às vossas casas. Respeitem a Ibéria ou as suas tribos atravessarão a fronteira da montanha e cairão como um mar revolto, saído dos céus, sobre as vossas terras. Assim o determino eu, filha de Trebaruna!

- “Senhora celestial, ficamos em dívida e compromisso. A tua vontade será cumprida. De futuro, estarás presente nas minhas orações. Lembra-te também de nós e apoia-nos sempre que considerares justas as nossa guerras.

Aternix levantou-se, juntou as mãos e fez uma vénia. Recuou alguns passos sem virar as costas e juntou-se ao grupo que o aguardava. Iniciaram de imediato a recolha dos que haviam expirado. Após chamado, mais algumas centenas de gauleses apareceram e integraram-se na mórbida actividade.

Os iberos aproveitaram também para recolher armas e outros haveres dos cadáveres romanos. Não tocaram nos pertences dos celtas da Gália.

Pela tardinha, os dois grupos cumpriam a homenagem aos seus, em locais tão próximos que as chaminés do fumo da incineração dos dois lados acabaram por se entrelaçar e propagar pelos ares ao sabor dos ventos. Gauleses e iberos, que se haviam profanado mutuamente em vida, reuniam-se agora na última e sacra viagem rumo ao além.

De acordo com o estipulado por Talauto, a hoste abalou e já quase sem luz, afastada o suficiente de Lijós, acampou. O chefe vetão encomendou então um festim com as melhores provisões saqueadas aos romanos e recolhidas na cividade. Repartiram as vitualhas pelos vários grupos de guerreiros que se formaram, em volta de outras tantas pequenas fogueiras.

Rubínia ainda pensava na atitude do gaulês, enquanto depenava uns quantos melros gordos, apanhados por Tongídio. Um petisco muito apreciado. Para tal utilizava um capacete metálico romano como panela, onde aquecera água.

Remoía-se em dúvidas. Será que o fulano daquele capacete e os seus correligionários lhe tinham obrigado a uma transformação tamanha – e da qual não se dera conta até que fora abordada de forma inusitada pelo suplicante gaulês – que agora só se via como guerreira e abraçava a morte com tanta ligeireza? Teria ganho o gosto pelo derramamento de sangue e pela provocação da dor? O que seria a sua vida de futuro? Conseguiria voltar a conceber a paz, a ser mulher, retomar as lides civis, as de casa… eventualmente ser mãe?

Conseguiria cumprir o seu propósito de regressar a casa com Tongídio e aí o manter a salvo, concentrado numa vida de família? Ou já estava de tal modo empenhada na guerra que esqueceria os sonhos e partiria de vez com o seu amado para a aventura marcial? E assim sendo, até quando ele seria o seu amado? Ou passaria a ser a espada o seu ente mais querido?

Oh desgraça! As certezas já não são tão certas. O odor besuntado de corpos queimados, o paladar do suor embrulhado com sangue e poeira são uma maldição que se entranha nas veias e nos consome as virtudes e corrói os desígnios mais desejados…

Tongídio despertou-a daquele pesadelo.

- “Com algumas ervas especiais e um pouco de cerveja, poderemos fazer um belo caldo para molhar esses suculentos melros. Assa-os em lume brando, vou em busca das ervas.” Afastou-se depois de lhe beijar a testa.

Rubínia, já mais abstraída dos pensamentos que a inquietavam, procurou sentar-se de lado, sobre uma das pernas, como é usual entre as mulheres, mas a espada, ainda ajustada à cintura, atrapalhou o movimento. Enervada, ergueu-se, desapertou o cinturão e atirou a arma para longe de si. Acomodou-se então como queria e mais confortável na debulha das aves.

Gurri, que assistira ao comportamento da amiga, aproximou-se. Zímio também reparara na agitação anormal da sua senhora.

- “Rubínia, percebo que te sentes cansada desta vida de corrupio e incertezas. Alcançaste a libertação de Tongídio mas, desde então, ainda não lograste completar o objectivo que te moveu logo à partida. O inimigo não dá tréguas e são já incontáveis os trabalhos em que te envolveste. O teu antigo modo de vida começa a ganhar teias de esquecimento. Cresceste, amadureceste com os novos conhecimentos e circunstâncias. Tenho-te observado. Julgo que tens avaliado os sinais de mudança que em ti vais descobrindo…

- “Sim, Gurri!” Atalhou a mulher. – “Já não me conheço, na verdade. As palavras do gaulês anteciparam talvez aquilo que quero negar mas já não sei se serei capaz de dominar. Viste-me em combate? Fui realmente o braço da morte, como ele referiu?! Matar tornou-se tão vulgar que não me dei conta do sucesso da minha arma! Antes sentia pesadamente todas as espadeiradas que desferia na vida dos adversários; agora já nem me lembro dos rostos dos que abato. O que se passa comigo?!”

- “É o teu destino. Foste favorecida pelos deuses no deslaçar do teu sonho, porém agora estás nas suas mãos até que eles completem a missão que em ti depositaram: salvar a Ibéria! Sim a tua preocupação era apenas acudir a Tongídio. Os deuses, todavia, encontraram na tua vontade férrea o elo que ligaria os povos ibéricos num fim comum, em defesa da pátria contra o invasor poderoso. Só assim os conteremos… contigo. Por isso te peço, por todos os que estamos comprometidos com este sagrado dever, suporta mais um pouco esta provação e esta exigência que te coloca em conflito íntimo. Pelo teu sonho, pela sobrevivência da Ibéria, dos seus povos e costumes, segue… segue o teu destino.”

Gurri afastou-se. Ao passar por Zímio, que escutara a conversa, colocou-lhe a mão no ombro, e este, estranho à sua habitual não reacção, retribuiu.

Rubínia, por momentos, deu descanso aos semi-despidos melros, ficou imóvel e introspectiva. Depois, soltou um sorriso descansado, apaziguador. Olhou para Zímio e piscou-lhe um olho. Aquele sorriu igualmente e acenou afirmativo com a cabeça.

(continua)

 

Andarilhus

XXX : VI : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 21:34
Segunda-feira , 27 de Junho DE 2011

Por Ti Seguirei... (48º episódio)

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Despediram-se de Freixeiro. Mais quatro dias de marcha ligeira e alcançariam Risbadânia. A jornada seria um pouco mais curta se a paisagem de montanha não obrigasse a alguns contornos, na demanda das portelas seculares para as terras atrás daqueles imponentes montes.

Começaram por seguir para Oeste, acompanhando a margem do Durius. Os poucos povoados que cruzaram estavam desertos. Não havia dúvida sobre a razão do abandono: os romanos haviam esvaziado de gentes e recursos todos os lugares que tinham topado no caminho. Assim, asseguravam que não restaria apoio para o inimigo.

Sendo aquela a via mais expedita para o destino traçado e não tencionarem alterar a rota, a comitiva de Talauto manteve uma cadência pausada, de modo a evitar contactos indesejados com as tropas daquela legião “fantasma”, oriunda de parte ainda desconhecida. Nesse esforço, a vanguarda ibérica, bem avançada, batia amiúde o terreno por onde passaria a longa coluna de guerreiros.

Já próximos das terras dos Lijós, encruzilhada dos caminhos que definem os 4 eixos da direcção, e por onde rumariam então a Norte, começaram a surgir evidentes rastos, algo recentes, da passagem de grande multidão e de cavalos. As pegadas eram todas muito iguais, o que poderia significar um calçado militar. O curioso era existirem outras marcas, diversas, e também em grande número, todas próximas, e que se diferenciavam das do outro conjunto mais numeroso.

Os sapadores confirmaram a presença do exército do Lácio e transmitiram imediatamente os sinais encontrados ao chefe vetão.

A presença dos romanos na rota de Lijós, que dava acesso ao Norte, aos contrafortes das terras altas do Maranus e Pardela, complicava irremediavelmente o curso da viagem: ou irrompiam sobre o inimigo, forçando a passagem e correndo o risco de muitas baixas, podendo mesmo provocar a perseguição da cavalaria adversária, o que faria estrago na hoste e atraso na chegada ao destino; ou aguardavam que os romanos se afastassem, e que talvez não fosse solução porque o mais provável seria que eles tomassem também a direcção de Ribasdânia.

O que subsistia por certo era a rápida e indispensável chegada de Talauto ao reduto da defesa, pelo que o recuo ou busca de outro caminho obrigava a um atraso que poderia ser muito pernicioso para a resistência dos patriotas ibéricos.

Os caudilhos debatiam este dilema no seu grupo mais restrito. Pardo participava na discussão, mas mantinha-se calado, fruto da sua maior reserva. Como não chegavam a uma conclusão efectiva, Pardo tomou então a iniciativa de propor uma solução:

-“Se quiserem escutar a minha opinião, talvez vos mostre uma saída, arrojada mas que poderá contornar esta dificuldade.

Conheço bem estas paragens. É zona rica em caça. Com os povoados amigos sempre fizemos por aqui grandes campanhas de captura de animais para salgar e fumar a carne e curtir as peles, e com eles encher os silos para os meses da provação do frio. A armadilha foi sempre a mesma e os resultados de grande sucesso. Podemos imprimir algumas pequenas alterações e emboscar os romanos da mesma forma. Vou explicar-vos…

Pardo deixou os experimentados guerreiros admirados e com um sorriso irónico no rosto, após a descrição de um formidável ardil que certamente ficaria na memória da Ibéria. A proposta era digna de mestre – própria de alguém como Alépio, apontou Gurri -, embora, também pudesse transformar-se numa grande derrota para os iberos, caso os romanos dessem pela trama.

Conferenciaram mais um pouco, no apuro dos movimentos e acções a realizar. Talauto ficou convencido: era já tempo de afastar o inimigo do caminho e, de preferência, dar-lhe uma boa lição e provocar-lhe o maior número de perdas possível. A batalha final começaria já ali, em terras de Lijós. Deu ordens para colocar a estratégia no terreno.

Com excepção de cerca de trezentos cavaleiros, todo o corpo do exército ibero dirigiu-se para a floresta densa que se situava a Sul e próximo de Lijós. Era o local indicado por Pardo. A razão da escolha daquela floresta em particular estava no facto de no seu interior existir uma nascente de grande manancial de água, que enlodava literalmente o solo. Quanto mais para o interior da vegetação, mais encharcadas permaneciam os terrenos. Um verdadeiro pântano, que dificilmente secava, mesmo no estio, porque o Sol não conseguia furar as copas frondosas das árvores.

O segredo das grandes caçadas estava nessa armadilha, para onde conduziam as presas e, assim, facilmente abatiam javalis atolados até aos úberes ou corsas e veados que simplesmente, atascados, não conseguiam saltar e fugir…

Antes das zonas alagadas do bosque, os guerreiros esconderam-se longe dos caminhos e aguardaram que o chamariz lhes conduzisse os incautos inimigos.

Tongídio, à frente dos cavaleiros nomeados para provocar os romanos, avançou sobre as forças adversárias. Apareceram de rompante sobre os acantonados no exterior de Lijós e inflamaram as primeiras escaramuças. Enquanto se manteve a surpresa, levaram a morte e os suplícios das feridas a muitos legionários, desorganizados e desorientados. Mas, o inimigo recompôs-se num ápice. Mostravam-se soldados veteranos e muito experimentados.

Rapidamente acudiu parte da cavalaria romana, começando a surgir baixas também entre os iberos. Tongídio não queria iniciar a fuga sem atiçar bem o adversário e conseguir cativa-los a todos para a perseguição. Por isso, e apesar do crescendo de camaradas caídos, manteve a refrega por mais algum tempo, até que teve a certeza que a maioria dos romanos estava já empenhada no combate.

O Lusitano deu então o sinal de retirada. A toda a velocidade, os cavaleiros iberos iniciaram uma corrida alucinante na direcção da floresta. Aí, os caminhos mostravam-se estreitos para uma grande massa de gente e a vegetação cerrada não permitia grandes ousadias de busca de outras passagens. Seguiram pelos labirínticos trilhos em longa fila e o mais rápido possível. A cavalaria romana vinha no encalço e não muito longe.

Numa das raras bifurcações, os companheiros aguardavam para camuflar o desaparecimento da maioria dos acossados. O grosso da coluna entrou no desvio à esquerda, o qual foi imediatamente tapado com vegetação cortada mas viçosa, ocultando a passagem, enquanto as pagadas eram varridas do chão com giestas, transformando por completo o lugar.

À direita - e agora único caminho visível - continuavam apenas uns trinta cavaleiros, que pareciam ser apenas a retaguarda do grupo fugitivo, aos olhos dos perseguidores. Os romanos seguiam-nos e nem tinham dado conta do artifício. À frente reduziam um pouco o ritmo e deixavam aproximar os predadores. Estes já sentiam o cheiro da presa e mais acirrados ficaram na caçada, embrenhando-se sem cautelas no coração da floresta.

O terreno começou a revelar humidade e logo a seguir as primeiras poças. Não demorou muito a entrarem na área de grande lamaçal e boa altura de água. Os cavalos perderam a cadência de corrida e passaram a andar apenas a passo rápido e finalmente a passo normal, já com grande dificuldade. Os cavaleiros iberos levavam o mínimo de armamento, conservando-se leves, enquanto os romanos, plenamente equipados, transmitiam um peso muito superior às montadas.

Por esse motivo, verificou-se que a progressão dos fugitivos passou a ser muito superior à dos perseguidores, desaparecendo de vista, ao fim de algum tempo.

Os romanos avançaram mais um pouco, até que a chefia tomou consciência da ineficácia da continuação da acção. Dadas as circunstâncias jamais capturariam os bárbaros. Ordenou então que recuassem e procurassem passagem em volta da floresta.

Assim tentaram, contudo logo perceberam que não eram eles os carrascos, mas antes as vítimas de uma engenhosa cilada montada pelo inimigo, que jamais esqueceriam.

Ávidos de sangue, de conquista e convencidos da sua superioridade, quase todos os efectivos da legião e aliados tomaram lugar na perseguição. Milhares de homens armados estavam agora entranhados nos acidentados e tortuosos carreiros do bosque, numa longa e serpenteante linha humana. Quando a cavalaria pretendia recuar, aproximava-se já a multidão de legionários de infantaria. Estorvavam-se e bloqueavam-se cada vez mais com a chegada de um número crescente de soldados. Cravados ao solo lodoso e sem poderem manobrar para retirar, estavam indefesos e à mercê do destino.

Talauto e os seus não desperdiçaram a ocasião favorecida pelos deuses. Saídos do esconderijo dissimulado, abateram-se sobre as franjas do exército inimigo, carregando sobre indivíduos que se sentiam entregues a si próprios, sem poderem levantar defesas colectivas. Foram-se apertando, procurando salvação da fúria dos autóctones, pressionando a massa humana para o interior do pântano. Os que tinham a infelicidade de escorregar ou cair morriam, em poucos instantes, espezinhados pelos amigos.

Os iberos atacaram em ondas, dado o diminuto espaço e sobre solo enxuto. A força montada trucidava duramente os peões legionários. Contavam-se já centenas de mortos e não havia forma de os romanos desapertarem o nó em que tinham sido atados. Desesperados, os soldados do Lácio mais próximos do calor da batalha, perderam o controlo e a disciplina e encetaram o debandar, furando pela vegetação, largando o armamento que atrapalhava a fuga, e não obedecendo às ordens dos oficiais, que a todo custo ainda tentavam organizar defesas rudimentares.

Generalizou-se a fuga do inimigo, o que permitiu aos iberos dispersar também na perseguição e no alcançar das tropas romanas que se mantinham ainda intactas. Tornou-se então num verdadeiro festim de matança. O lamaçal era já uma vasta área tinta de sangue, coberta de cadáveres e de estropiados que gritavam dilacerados por dores.

Terminada a contenda, Talauto perdera cerca meia centena dos seus guerreiros enquanto infligira quase dois milhares de vítimas no inimigo.

Com o inimigo destroçado e perfeitamente disperso e perdido pelos bosques intermináveis de Lijós, os iberos conseguiam a primeira grande vitória sobre os invasores e alcançavam a grata percepção de, em conjunto, os poderem vencer. Pardo era o herói do dia.

A viagem para Ribasdânia já não tinha, agora, entraves.

 

Andarilhus

XXVII : VI : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:51
Terça-feira , 21 de Junho DE 2011

Por Ti Seguirei... (47º episódio)

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A hoste de Talauto progrediu rapidamente no terreno.

A única paragem prolongada aconteceu em Sadeana, citânia de médio porte no extremo Norte do território vetão. Para trás deixavam atalaias, para o caso de serem seguidos pela cavalaria romana.

Esta pausa maior devia-se ao facto de ter sido aquele o local acordado para reunião das últimas tropas que os diferentes povoados de Talamo podiam dispensar. Assim que verificadas as unidades, a concentração de guerreiros ficou aquém do que se esperava. Os factores de instabilidade, originados pelo poder e movimento do inimigo, exigiam contenção com as cedências e cuidados com as defesas dos centros populacionais. Na totalidade, Talauto dispunha de 2500 efectivos para adicionar a quase outros tantos que haviam seguido antes para Ribasdânia.

Nessa noite repousaram um pouco mais, antes de retomarem a viagem. Encontravam-se a cerca de metade do caminho e faziam-no saber aos camaradas que os aguardavam através de sinais de fogo, cujas mensagens saiam do cabeço de Sadeana, passavam por vários pontos de transmissão, até serem recebidos no destino. Sobretudo Alépio ansiava por notícias. Empenhava-se com grande autonomia na preparação das defesas, todavia era imprescindível a presença de Talauto, como chefe militar vetão. Talamo, dada a idade, já não se envolvia há muito, directamente, nas questões da guerra.

Exaustos e moídos de tanto balouçar no lombo das montadas, estenderam-se num dos terraços a contemplar as planícies do termo de Sadeana, iluminadas pelo atrevido luar do estio adulto.

- “Tenho a sensação de sentir o odor das searas maduras de Tanábriga. Desde que parti, este é o momento em que mais próxima estou da minha amada terra. E no entanto, tão perto e ainda tão longe… Longe de cumprir o que para mim mesma jurei: resgatar e regressar com Tongídio; Longe de poder recuperar a minha, nossa, vida e dos seus fundamentos simples e tranquilos…” Suspirava Rubínia, enquanto aplicava mais um pouco de uma pasta obtida da maceração de ervas medicinais com óleo de bagas silvestres, sobre as marcas das cordas que a haviam submetido à rigidez aprumada da cruz. A mulher demonstrava, uma vez mais, uma recuperação admirável das mazelas. Zímio estava também completamente restabelecido.

-“Já não faltará muito para que o que anseias se concretize. Por tua causa e pela tua vontade indomável foi possível agitar o entorpecimento da Ibéria e despertá-la para o perigo do dissimulado invasor. Agora que foi desmascarado, resta deitá-lo por terra e espezinhá-lo como víbora venenosa, para podermos alcançar os teus sonhos!” Aconchegou, Tongídio, a sua mulher com um abraço carinhoso.

-“Sem dúvida: não fora a determinação de Rubínia e ainda estaríamos a contemporizar com o inimigo. Nós - e talvez mesmo Aníbal - seríamos, em breve, presas isoladas e fáceis para o predador romano. Deste modo, têm de nos enfrentar no conjunto e de uma só vez. Vai ser mais equilibrado.

-“Equilibrado para quem, Gurri? Só se for para eles, que vão passar uma só vergonha! Hehhehhe!” Riu-se o descontraído Talauto, logo acompanhado pelos amigos.

No dia seguinte, a longa coluna procurou um ponto de vau ou um passadiço para atravessar o Durius, mais domado e afável naquela fase sazonal.

O povoado de Freixieiro elevava-se num pequeno promontório das arribas do Durius, numa zona em que o rio se espremia mais entre a tangente das margens. Aí existia uma ancestral ponte, suportada por seculares troncos de castanheiro e longas amarras, resultantes do enlaçamento de múltiplas cordas. A tosca passagem dominava o caminho que ligava o centro da Ibéria com o grande mar do ocidente. Foi para aí que Talauto conduziu os seus homens de armas.

Ao contrário do habitual, não encontraram ninguém junto da ponte. Normalmente, seria expectável a presença de militares e até mesmo de gentes locais, que aproveitavam o lugar para encontros e cavaqueira, sempre na esperança de cruzarem com alguém diferente, em viagem, e escutarem as novidades de outras paragens. Para o lado do Freixieiro também não se via qualquer movimentação de pessoas ou animais. Estranho.

Com a prudência habitual, o caudilho vetão enviou um grupo de guerreiros na frente, para tomarem pulso à situação. Destes, receberam sinais para avançarem. Retomaram. Um grupo com os líderes entrou na citânia, apenas para verificarem as razões do inabitual, enquanto os restantes aproveitaram para repousar nas muitas sombras que a cerca lhes dava, pelo exterior.

Ao longo das ruas estreitas que levavam ao centro do povoado, as pessoas apertavam-se contras as paredes de casas e muros, abrindo passagem aos cavaleiros forasteiros. Manifestava-se confrangedor o contacto com o silêncio e os olhares atentos dos autóctones, que seguiam o movimento da pequena coluna militar. Mais insólito era o facto de se tratarem apenas de homens adultos e alguns anciãos.

Chegados ao edifício de governo, a comitiva foi recebida pelo chefe da comunidade, Alúbias, pelo seu filho Pardo e por alguns guerreiros e ilustres locais. Todos entraram na residência do Conselho, enquanto Talauto, indirectamente, procurava saber se existia alguma anomalia que justificasse as diferenças à ordem costumeira.

- “Meu pai, Talamo, à frente de um grande número de guerreiros e também de população civil, passou por cá há alguns dias? Estavam bem? Seguiram viagem normalmente?

- “Sim, o meu senhor Talamo passou por cá. Descansaram algum tempo e prosseguiram viagem, como tinham previsto. Boa parte dos nossos jovens guerreiros também partiu, engrossando a força que reunis contra o inimigo. Por outro lado, acolhemos algumas centenas de civis, que o vosso pai entendeu encomendar-nos, assim como referiu que pretendia distribuir os restantes pelos povoados seguintes, de forma a não os levar para o centro do conflito.

- “Hum. Então, Alúbias, onde estão essas pessoas que por cá ficaram e, mais, onde está a vossa população? Apenas encontramos varões e já de madura idade.

-“Bem, senhor. Acontece que…” Tornou-se bastante notório um tremor nervoso generalizado, nos tiques faciais de Alúbias e na inquietude dos seus conterrâneos.

- “… Acontece que… Bem, este é um assunto bastante delicado. Se não vos importais, peço-vos que nos dirijamos àquela pequena sala do fundo para vos narrar algo, a sós. Peço-vos, por Bandua…

Talauto ainda hesitou, mas aceitou. Estava entre os do seu povo. Assim, enquanto Tongídio, Rubínia, Gurri, Mauri, Zimio e mais dois superiores do exército aguardavam, refrescando-se com alguma água e cerveja, o líder vetão acompanhou o anfitrião até à câmara anexa, que se abria após alguns simples taipais de verga, esburacados, mas opacos, dada a rarefacção da luz.

Assim que Talauto entrou no espaço, tudo ficou turvo e incoerente. Semi-consciente, após a pancada que levou na nuca, exaurido de energias, apenas entendia que estava prostrado pelo chão, agarrado ostensivamente pelos ombros e braços, amordaçado e, à sua frente, Pardo, com um punhal trémulo, mostrava o que pretendia.

- “Vamos Pardo, sabes o que é necessário fazer! Não temos opção!” Incitava, entre dentes, Alúbias. Porém, o filho vacilava, enquanto, dividido, se apunhalava no íntimo, resistindo ao acto de homicídio, por mais justificável que fosse a sua causa.

Pardo aproximou-se e debruçou-se junto ao peito de Talauto. As lágrimas corriam vertiginosamente, caindo-lhe sobre os retesos músculos do braço assassino. Vermelho de ira contra a sua sorte, encarou a vítima com mágoa e arrependimento precoce, e num soluçar salivado, encomendou a sua expiação, em tom quase imperceptível: - “Perdoa-me senhor, mas a tua vida vale centenas de vidas e muitas delas queridas para mim, para nós. Se eu pudesse dar a minha em resgate, já estaria morto e tu poupado…

Encostou a lâmina ao peito do cativo. Segurou-a com a mão esquerda, enquanto colocou a direita sobre o topo do punho. O golpe seria certeiro ao coração e o falecimento breve. Cada vez mais consciente, Talauto começou a estrebuchar, procurando fazer tumulto para alertar os amigos.

Pardo demorava-se demasiado. Sentindo a situação a complicar-se e a perder-se a oportunidade, Alúbias desembainhou, sem ruído, a espada, decidido a cumprir aquilo que o seu filho não tinha coragem. Segurou-a com as duas mãos, e lançou a estocada descendente sobre Talauto.

-“Não, não podemos executar este ultimato! Não podemos trair os nossos…” – Gritou Pardo, atraindo também as atenções dos presentes no salão maior. Porém o seu pai estava obcecado e não o ouvia já, determinado a cumprir o que, para si, era imprescindível. Puxou acima novamente a espada para a investir freneticamente… mas não concluiu a sua intenção. Alúbias tombava, ferido mortalmente pela mão de seu filho. Face à intransigência louca do pai, Pardo não tivera outra solução, chorando-o agora, ajoelhado ao lado de seu corpo inerte.

Assomaram entretanto Tongídio e os companheiros. O lusitano queria passar à falcata os traidores, mas Talauto, ainda um pouco combalido, deteve-o. Começou por dar ordens para que o exército ficasse alerta e ordenou patrulhas em volta de Freixieiro.

Mais guerreiros se juntaram ao seu chefe. Novamente instalados no salão nobre e com condições mais estáveis, foi procurado a Pardo os motivos daqueles comportamentos e as razões das estranhas circunstâncias do povoado.

- “Uma coisa e outra estão directamente associadas à mesma causa: os romanos. Após a passagem de Talamo, vimo-nos cercados por aquilo que deve ser uma legião. Não tivemos tempo de derrubar a ponte e eles facilmente entraram em Freixieiro.

Pouparam-nos… mas com condições. Queriam a cabeça de Talauto e dos seus amigos, os quais já perseguiam há muito. Dessa forma, seria fácil acabar com a resistência ibérica…

Como penhor levaram todas as mulheres e crianças, centenas e centenas, vizinhas e as que Talamo nos recomendou. Vão arrastá-las para o campo fortificado de Sagunto, onde os terão cativos durante o tempo do frio que se aproxima. Se até lá não cumprirmos o acordado, vão passá-los como escravos, conjuntamente com outros, para Roma, através do Grande Mar Interno. Os nosso queridos estão cativos e em má fortuna! Por isso este plano desesperado, quando vos vimos a aparecer ao longe… Parecia que os deuses estavam coniventes e vos entregavam em nossas mãos… mas, não fui capaz…”

- “És digno e valente, um verdadeiro patriota, Pardo. Desculpo-te o ocorrido e compreendo a irredutibilidade de Alúbias. Afinal, ele era o responsável por toda esta gente. Que se junte aos nossos maiores no além e que tenha as exéquias próprias de um guerreiro. Certamente que viveu uma vida honrada e de brio.

Digo-te, Pardo: seja Codua benéfico com as nossas armas e assim que arrasarmos com os romanos aqui, vais realmente levar as nossas cabeças até Sagunto, mas ainda em cima dos respectivos ombros e a liderar um exército salvador para os nossos compatriotas. Tens a minha palavra! Agora acompanha-me até ao grande combate. Tenho em ti a maior das confianças. Serás um dos meus próximos, a partir de agora.

A descompressão e o sorriso suavizaram aquelas faces trigueiras, rudes e marcadas pelos elementos atmosféricos e pelas experiências e pelo génio humano. Ouviram-se algumas vozes de aprovação e convicção em mais um momento de reforço da união.

- “Caros amigos, o nosso caminho deve seguir de forma decidida, mas cautelosa: temos de enfrentar mais uma legião, ou pelo menos um grande corpo de soldados romanos, soltos e beligerantes em solo da nossa querida Ibéria, sem sabermos de onde apareceu e qual a sua real valia e dimensão. Se necessário, ser-nos-á colocado mais um trabalho: atrasá-los, para dar mais tempo a Alépio, na montagem das defesas em Ribasdânia.

 

Andarilhus

XXI : VI : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 09:09

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