Terça-feira , 27 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (66º episódio)

 

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O processo de inscrição do pacto ainda demorou um pouco. Durante a espera, os romanos iam bebendo umas taças de vinho enquanto, em frente, os iberos puxavam pelas cabaças e odres de cerveja. Quintus era o único que continuava resmungão. Por tanta insistência, já ninguém lhe prestava atenção, nem mesmo os guardas que o vigiavam.

Terminados os dois registos, iguais, Fábio entregou um a Alépio, para que o conferisse. Com o pergaminho na mão, o Brácaro olhou para a mancha textual, em latim, e depois para o Tribuno. Sorriu e virou a cabeça para o lado, mostrando que falava para trás, para o seu grupo.

Rubínia fazes falta aqui. Adianta-te e vem explicar estes rabiscos por palavras que se entendam. Vem juntar as letras.

A mulher respondeu de pronto ao solicitado, avançando. Zímio é que não facilitava e acompanhou-a. Tongídio, aproximou-se um pouco mas não se juntou aos, agora, quatro.

Rubínia leu pausadamente de uma só vez, embora com alguma dificuldade. Após alguns momentos, referiu: “Podes confiar na palavra do Tribuno: aqui está escrito tudo aquilo que foi parlamentado entre vós.

Espanto-me a cada descoberta que faço sobre a Ibéria. Tendes mulheres que dominam o latim! E há energúmenos que vos têm por meio-selvagens. É por estas razões que também Quintus nos levou à fasquia rasa em que estamos…

Temos, de facto, mulheres e homens admiráveis, e muitos! Mas, romano, esta é uma mulher ainda mais notável. Ela é única! Esta é Rubínia, a mulher que fez mexer a Ibéria, moveu a apatia e as disputas que existiam entre os seus povos, unindo-os contra ti e os teus. E porquê?! Tão simplesmente porque ama de tal forma o marido – Tongídio – que colocou o mundo às avessas para o poder salvar, cativo que estava dos vossos calabouços, junto a Sekia. Como vês, esta mulher é o verdadeiro espírito da Ibéria e é a verdadeira líder de todos estes guerreiros. Sem ela, nada disto teria acontecido!

Do lado dos iberos ouviram-se vivas e elogios a louvar Rubínia, em alto e vibrante som, que se propagou até ao acantonamento geral.

A mulher, apesar da experiência, ruborizava e humedecia o olhar, já pensando que a sua árdua demanda chegava ao fim e com sucesso. Entregou o fólio ao comandante, virou-se e preparava-se para retomar o seu lugar, atrás, ainda sob as ruidosas manifestações de respeito, agradecimento e alegria.

Quintus, esquecido na sua insignificância crescente, quando ouviu a descrição de Alépio, começou a estrebuchar, pleno de raiva e tremelicante pelos nervos. Era então aquela a culpada da derrota, a culpada da miséria da Legião e do fim da sua carreira magistral?! Já não conseguiria ascender a cargos mais elevados que tanto ambicionava. Maldita!

Era tamanha a azia que não se conteve. Fora um soldado experiente e exemplar e mantinha ainda a boa condição física. Por isso, foi com facilidade que atirou por terra o guarda, sacando-lhe o gládio e o dardo. Empurrou mais duas sentinelas e chegou-se à frente, em campo aberto. Focou a mulher como alvo e apontou o dardo. Gritou e logo de seguida desferiu a arma: “Vais morrer maldita mulher; não ficarás com os louros por muito tempo. Em ti vingo parte dos males que me fizeram!

Rubínia e Zímio caminhavam a par, de costas para a altercação. Viraram-se com o escutar dos tinires do movimento agressivo e berros de Quintus, mesmo a tempo de presenciarem o arremesso do dardo. Zímio pleno de energia, em reacção atirou-se para a frente da sua Senhora, empurrando-a, em simultâneo, para o lado. Sabia o que fazia. Encaixou com violência o embate da ponta metálica da arma, sentindo-a entranhar-se entre o externo e as costelas, enquanto soltava um baque de expiração. A lança trespassara-o bem próximo do coração, provocando uma forte hemorragia e determinando um breve trecho para o restante da sua condição de vida. Tombou de lado, espumando sangue, enquanto chamava por Rubínia, em tom quase inaudível.

Zimio!!!! Meu querido Zímio!!!!

A mulher era a imagem do terror. As feições estavam irreconhecíveis, pálidas e transtornadas. Lançou-se imediatamente sobre o ferido, puxando-o para si. Já lhe corriam as lágrimas em abundância. Acercaram-se outros, carregados da mesma dor e tristeza, sobretudo Tongídio, que se sentou na poeira eriçada e amparou Zímio sobre as suas pernas e encostado ao peito.

Quintus, não muito afastado, deixava correr um misto de satisfação e frustração. Atingira um dos execráveis, mas não era o que mais desejava aniquilar. Contudo, ainda dispunha do gládio… Porque não?! Antes que os legionários lhe deitassem mão, desatou a correr sobre os Iberos, gritando e elevando a arma.

Rúbinia ergueu-se. Faiscava do olhar, dir-se-ia. Movia-se pausadamente como figura transcendente de deidade. A deusa da morte, o semblante do ódio, o encorpado desejo de provocar flagelo, dor aguda, a alguém. Queria trucidar aquele ser maléfico que se aproximava.

Amparem Zímio, rápido. Vou arrancar a cabeça àquele animal!” Solicitou Tongídio, enquanto passava o moribundo para os braços de Talauto.

Não Tongídio, espera. Deixa que o destino cumpra a sua trajetória. Isto deve estar premeditado algures nas estrelas. Será a tua mulher a cumprir com os oráculos, a concretizar o sussurro dos deuses…” Susteve-o Alépio.

Rubínia já retirava a espada da bainha. Avançou alguns passos, em linha de choque com o romano. Encontraram-se bruscamente. O gládio carregou mas conteve-se na lâmina contrária, adestrada por pulso firme.

A mulher, na aura absoluta de guerreira, concentrou-se em tudo o que aprendera, muito do qual com o amigo que falecia e, com alguns movimentos de assombro, tão viperinos como quase invisíveis pela velocidade de movimento, fez saltar a arma de Quintus, fez-lhe um ligeiro rasgão na gorja, talhou-lhe os músculos das coxas e fê-lo, assim, ajoelhar.

O Cônsul encarava o seu carrasco, de mórfica silhueta feminina, permanecendo mudo e cabisbaixo. Olhou para os seus e não viu reacção. O grande arrogante, preso na teia do medo, começou então a suplicar e a pedir que o poupassem. Humilhou-se a clamar por Fábio e os restantes oficiais, instigando-os no seu socorro.

Alguns legionários, mais sensíveis ao seu patrício, propuseram-se a valer-lhe, porém o Tribuno interpôs-se: “Mantenham as vossas posições, todos! Hoje, custe o que custar, vamos alcançar tréguas!

Cão sarnento que não soubeste respeitar os teus, nem dar o devido valor ao inimigo. Não propagarás mais o mal e o fel que te alimentam. Olha bem para o Sol, para a tua última vista desta existência…” Falou-lhe baixo, Rubínia

Não me mates! Pagarão um bom resgate pela minha pessoa! Terás tudo o…” E mais não disse, porque a cabeça soltara-se do corpo e rebolara um pouco, com o golpe circular, decidido, da guerreira. O corpo manteve-se inclinado por breves instantes, para tombar depois para a frente, ensopando a massa argilosa daquela terra fértil.

 

O grupo avançado ibérico colocou-se em alerta, expectante por uma eventual carga de retaliação, vinda da outra parte. Contudo, Fábio teve autoridade para segurar os ímpetos.

Rubínia… Rubíniaaa…” Escutou-se enfim, no macabro silêncio que se propagara no lugar. Era Zímio, num derradeiro e sofrido chamamento.

A mulher regressou à sua natureza mundana e correu para o amigo. Tomou-o nos braços, enquanto Tongídio o ajeitava numa posição mais confortável, como se isso fosse possível.

Meu bom Zímio, que arriscaste a tua vida pela minha… A lança procurava o meu corpo e não o teu. Vamos tratar de retirar a arma e fechar-te a ferida…

Já é tarde. Os meus dias terminam aqui, em alguns momentos. As forças esvaem-se, sinto-o… Já vejo a passagem nas alturas, por onde atravessarei, com destino ao além. Escuta-me, enquanto posso dizer-te o que nunca te disse.

Fiquei cativo ainda em criança. Fui escravo em algumas casas, onde me tratavam como mais um animal, explorado até às últimas forças nos mais duros dos trabalhos. Porém, os deuses apiedaram-se de mim e trouxeram-me para domínio dos teus pais. O teu nobre pai, Físias, resgatou-me de uma mina, pagando uma pequena fortuna, porque, na sua grande alma, não suportou ver um jovem de tenra idade a esgaravatar minério. Pagou ao capataz, levou-me, alimentou-me e deixou-me descansar os males sofridos, por uma longa temporada. Tratou-me como um filho, na verdade.

Mais tarde, pouco depois do teu nascimento, confiou-me a tua guarda e parte da tua educação. Acompanhei-te sempre de perto, com os mesmos cuidado e o carinho que tivera do meu Senhor. Vi-te crescer, ensinei-te o que houvera aprendido, emendei-te as falhas e desacertos próprios da juventude e… no meu silêncio, pelo respeito da minha condição de servo, criei em mim, aquilo que julgo que será a afeição… o amor… de pai… por ti.

Nunca tive família, na sua forma comum; tive sim a família que me adoptou e uma “filha”, que me entregaram e a quem muito amo, de nome… Rubínia.

Por isso, se era minha obrigação servir-te de escudo ao perigo do dardo, era também minha paixão dar a minha vida pela tua, sempre que necessário, desde que te vi pela primeira vez, brilhante e rosada no pano de linho que te envolvia no berço… filha! Desculpa Senhora tratar-te assim, com tanta imprudência para um servo; perdoa o abuso deste moribundo…

As lágrimas correram, juntando-se aos fios de sangue que continuavam inexoráveis na sua propagação.

Rúbinia lacrimejava igualmente, deixando, no entanto, transparecer um sorriso doce, de acalmia, até de felicidade. Beijou a testa a Zímio e acariciou-lhe o negro cabelo, denso e curto: “Sim, tenho a graça de ser protegida e bem querida por dois prodígios do cuidado paternal. Vejo agora, que é isto que me distingue e me dá tamanha força interior. Dois tutores, dois amparos, dois exemplos, dois pedagogos… que fortuna, a minha! Estimo-te muito, meu velho amigo Zímio… meu PAI.

As palavras saíram com efeito de seda, como bálsamos para as dores de Zímio. Deixou de sofrer, desapareceu a ferida no seu pensamento. Apaziguou na luta contra a morte. Colocou a mão trémula no rosto de Rubínia, fez o maior sorriso de toda a sua existência e, com o alento que lhe restava, proferiu: “Continuarei a velar por ti; estarei contigo em todos os teus momentos, sobretudo os mais difíceis. Lembra-te de mim, minha querida Rubínia…

Cerrou os olhos com candura e soltou o último folgo, profundo e de partida… Expirava.

 

Andarilhus

XXVII : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 21:23
Quinta-feira , 22 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (65º episódio)

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Ainda antes do raiar da esfera matinal, já Fábio dava ordens a alguns serviçais para carregarem uma mesa de campanha até ao meio termo dos dois assentamentos. Assustados e fugidios como ratos, entre a neblina matinal, os serventes de baixa condição cumpriam as ordens, sempre atentos a qualquer manifestação que viesse dos bárbaros. Elevaram igualmente um conjunto de estacas, nas quais engataram as anilhas de um longo tolde, disposto sobre a tábula parlamentar. Carregaram uns odres de vinho e algumas taças e fugiram céleres, logo que terminada a tarefa.

Com semelhantes feições angustiadas e amedrontados, avançaram então dois escribas, fazendo-se acompanhar por umas quantas peças de pergaminho, uns boiões de tinta e penas de ganso. Na sacola, por prevenção, levavam também tabuinhas de cera e estiletes. Dois soldados acompanhavam-nos.

Finalmente, Fábio dirigiu-se para o lugar do encontro, sendo seguido por 15 oficiais, das mais altas patentes – incluindo o Cônsul - e escolta de 50 legionários.

A comitiva romana estava pronta para conferenciar.

 

Do lado oposto, os iberos vigiavam toda a movimentação e apresto do adversário, verificaram o aproximar dos oficiais e aguardaram um pouco. Viram então o acenar do sinal de vontade de parlamentar. Alépio, para além dos seus companheiros habituais, mandou formar um corpo de uma centena de guerreiros. Saíram em ordem de marcha lenta.

Quando chegados a cerca de 30 passos dos oponentes, o Brácaro deu instruções para que o grosso da guarda aí ficasse, de alerta. Continuou apenas com duas dezenas de guerreiros.

 

Saúdo-te ibero. Que este dia fique na memória da concórdia. Trazemos o desejo de paz e a vontade de pôr fim a esta disputa.

A Ibéria foi apanhada no meio do extenso conflito que divide Roma e Cartago. Aníbal fez desta Península uma base de recrutamento e fornecedora de recursos militares para as suas campanhas contra a minha pátria. Foi necessário reagirmos e avançarmos sobre o vosso território. Assim, sem ser nossa vontade e muito menos vossa, acabamos por nos provocar mutuamente e erguemos guerra entre nós.

Porém, julgo que poderemos conviver pacificamente. Certamente que o Povo Romano e o Senado terão a maior vontade por vos ter por “amicus”. Aliados e amigos!

Que a alvorada te sorria também em sabedoria, Tribuno. Estamos aqui com um propósito algo parecido: acabar com o morticínio e relembrar que há muito a viver e muito a zelar pela vida.

Tu estarás convencido da nobreza das razões que vos trouxe para cá. Acreditas realmente que os teus pares e quem os enviou tinham em convicção a defesa dos valores de Roma e pretendiam apenas atalhar as operações do ancestral inimigo cartaginês.

No entanto, eu digo-te que foi a cobiça e a ambição expansionista de um povo, exacerbada pela gula singular de alguns dos seus mais ilustres que arrastou estes milhares dos teus compatriotas, a maioria agora vitima do excesso de avidez e conquista que azeda o sangue dos seus líderes…

Hehehe, não vais conseguir ludibriar este bárbaro, Fábio! Esforçaste-te tanto por sair daqui com a tua miserável vida, tornando-te num grandessíssimo cobarde e conspurcando a dignidade dos gloriosos soldados da Legião. E agora está perante a tua rendição. Serás talvez executado ou escravizado, hehehehe!” Intrometeu-se Quintus no diálogo.

“…Não sejas ridículo… Cônsul! Nós, com alma celta e ibera, honramos a vida e respeitamos todos os seres; não somos aves necrófagas que perseguem senda sobre a humildade ou distração de outros povos. Desprezamos a vossa conduta e os meios que utilizais para subjugar e explorar tudo aquilo em que tocais! Estamos neste encontro para decidir se e em que condições nos comprometemos em pacto de não agressão, ou se reavivamos a guerra até ao último homem. Não queremos prisioneiros!

Quanto a ti, Tribuno, digo-te também que não me parece que algum destes chefes dos diferentes povos ibéricos pretenda ser amigo do Povo Romano. Sim, tendes gente digna e que merece consideração, mas a vossa maioria é predadora e calculista, fazendo apenas jogos de máscaras com os eventuais aliados.”

És duro com os meus. A má experiência aqui vivida tolda-te a análise. Eu, Tribuno de Roma, garanto-te com a minha palavra que o Povo Romano é, na sua maioria, de boa índole, atenta ao progresso e ao bem-estar de todos os povos. Porém, concordo contigo: nem sempre os nossos governantes dão o melhor exemplo ou têm em consideração os princípios que estão na génese da minha nação.

Estamos aqui para alcançar um pacto. É notório que não o pretendeis nas fórmulas tradicionais, dentro da equidade entre ambas as partes. Tendes a superioridade e ditareis leis. Diz-me então quais são os vossos termos.

É agora que este patranhista vai vender todos os seus companheiros e, quem sabe, até alguns bairros de Roma, para que estes bárbaros vão lá passar umas temporadas de vida romana, hahahaha!!!! Não fora a nossa humilhação, e este seria o melhor momento da minha magistratura de Cônsul!

Alépio fitou Fábio e apontou o dedo a Quintus:

Mas será que ninguém entre vós consegue amordaçar a baba dessa triste figura?!

Voltando ao que interessa… Concluíste bem Tribuno. Como atestam as circunstâncias, nós imporemos as nossas regras para um acordo. Mas, como verás, nada terás a recear: não aplicaremos os mesmos métodos que usais, sempre que vencem os que se vos opõem.

Se quiseres sair daqui, salvando a vida dos legionários que te restam, deves comprometer-te em que nunca mais invades a Ibéria e defenderás, arreganhadamente, esta causa no Senado Romano. Dirás que não queremos ser vossos aliados, mas também que não toleraremos mais operações romanas na nossa terra e, se tal acontecer, retaliaremos diretamente no vosso coração: Roma!

No regresso ao Lácio, deves desmantelar todos os campos romanos na Ibéria, libertar as populações que ainda mantendes aprisionadas e passar os Montes Pirenaicos, não deixando nada para trás. Se aceitares estas condições e as firmares em letra, poderás partir com os teus.

À distância, nós faremos o acompanhamento da vossa retirada, certificando-nos da execução destas exigências, até que passeis para o lado da Gália. O que me dizes?

 

Fábio cerrou as sobrancelhas, que pareciam ranger face ao peso da responsabilidade que lhe assolava o pensamento. Quedou-se calado e hirto durante algum tempo. Tanto que o próprio cavalo, instintivamente, começou a mexer pernas e pescoço, com a sensação de ter um moribundo no dorso, até que rodou e estimulou o movimento do Tribuno. Este desmontou e dirigiu-se a passo até à posição de Alépio.

Alépio assumiu comportamento idêntico. Encararam-se de perto.

Ibero, o que me propões é algo que não sei se poderei cumprir. Tomar tamanhas decisões transcende ainda mais as minhas competências, do que as transgressões das mesmas que já levei a cabo.

Escuta o que te tenho a responder. Fecharei os campos militares avançados. Todavia, não poderei simplesmente encerrar os postos romanos mais a Leste, sobretudo aqueles constituídos por muita população civil originária do Lácio e a prosperar em múltiplas actividades, na função de colónias comerciais e vilas agrícolas.

Sim, libertaremos os prisioneiros e abandonarei a Ibéria com o grosso do contingente das legiões.

Mas tudo isto só será possível - e para podermos assim também evitar mais derramamento de sangue, futuramente - se preparares uma comitiva, constituída pela vossa multiplicidade tribal e me acompanhares a Roma… sim a Roma, e apresentares a vossa determinação perante o Senado e aí negociares os termos finais do acordo. E, entretanto – para que desloque a força militar –, tens de garantir a segurança dos meus compatriotas que ficarem por cá, nas referidas colónias. Bem como acertares compromisso em que não vos aliareis a Aníbal nas guerras que vamos dirimindo.”

Desta vez, foi Alépio que ficou mudo e pensativo. Para evitar assumir tais compromissos só por si, recuou até aos camaradas e conferenciou. Ali estavam os chefes de cada um dos povos da aliança ibérica e, em breves momentos, alcançaram uma deliberação tácita.

Novamente junto a Fábio, o Brácaro firmou a voz e adiantou: “Muito bem. Os líderes das diversas tribos estão dispostos a enviar um séquito a Roma. A sua ida e regresso em paz e concórdia devem ser assegurados. Por cá, nenhum elemento integrado e obediente às orientações emanadas em cada um destes povos erguerá armas contra os romanos ou tomará parte das iniciativas cartaginesas, até que regressem os seus representantes. Não poderemos garantir o mesmo quanto a guerreiros tresmalhados, que agem individualmente.

Se concordares, podes colocar tudo isto por escrito e farei a minha marca de aprovação, em nome dos iberos.”

Excelente! Escribas comecem o vosso trabalho; irei relatar em voz alta os artigos deste acordo, para que todos o possam ouvir e depois comprovar no documento.” Disse Fábio, de forma clara e notoriamente aliviado.

 

Andarilhus

XXII : IX : MMXII

publicado por ANDARILHUS às 21:29
Sexta-feira , 16 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (64º episódio)

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Novamente reunido o exército romano atrás das barricadas, as perspectivas agravavam-se após a iniciativa fracassada. Tinham causado muitas baixas entre os bárbaros, mas o número de legionários caídos era igualmente elevado, restando um corpo militar cada vez mais reduzido. Dada a deslocação durante a batalha, o vale mostrava-se pejado de corpos e de gente que gritava por auxílio. O rasto da violência oferecia-se bem evidente.

À semelhança do dia anterior, mesmo em vantagem, Alépio não ordenava um ataque final ao abrigo do inimigo. Instruía o reagrupamento dos guerreiros, ficando a aguardar algo que os outros não entendiam, mas que era claro na atitude do caudilho.

Tongídio resmungava, enquanto ia limpando as crostas de sangue seco que acumulava, em fios, pelo corpo: “Acabemos com isto Alépio! E depois vamos todos ao ribeiro lavar-nos e purificarmo-nos… já que as saudosas termas de Obila estão tão longe. E há o festim a realizar! Então, o que esperas?!

Calma, Grande Urso Azul. Atenta. Talvez já esteja terminado. Daqui a pouco o saberemos. E, de qualquer maneiro, hoje será o último dia da sobranceria do invasor sobre as nossas terras!

 

Fábio dispôs as defesas, para logo a seguir, fazendo-se acompanhar de meia centena dos seus homens de confiança, ainda com os “troféus”, as sujidades e os odores próprios da guerra, se acercar da tenda central do comando. No terreiro em frente, aguardava Quintus e todos os restantes oficiais. A guarnição na área não era muita: estavam ocupados com as defesas externas.

O Tribuno dirigiu-se ao Cônsul. Estacou tão próximo dele, que sentiam mutuamente os hálitos. Entreolharam-se duramente.

Cônsul Quintus Scipius é intolerável o teu comando. Por tua vontade, definham-se os homens e definha-se o prestígio da Pátria. Serves mal a Roma e ao seu povo. Colocas a Legião em vergonha! Retrata-te, desiste da tua desmesurada altivez e entrega a chefia a Velino Albino, o General mais velho aqui presente…

Fábio olhou para os aprumados oficiais e não conseguiu decifrar o que iam conjecturando no interior dos seus inexpressivos e pálidos rostos. Assemelhavam-se mais a moribundos do que a gente com sangue nas veias. Por um breve momento desejou assistir à manifestação de alguém, pelo menos de alguém, nem que fosse apenas um. Mas nada… O Cônsul sorria, cínico, já a traçar mentalmente o destino do incómodo e impertinente Tribuno.

Então, Fábio arriscou tudo. Sem dar tempo a mais uma irascível reacção de Quintus, falou bem alto, enquanto puxava o gládio, ainda ensanguentado, da bainha: “A mim soldados! Prendam o Cônsul e todos aqueles que o defenderem! Eu tomo em mãos o destino desta malfadada campanha e serei o único responsável por esta acção de substituição de comando.

Os legionários não responderam prontamente à ordem. Ficaram apreensivos e titubeantes. Contudo, irromperam rapidamente em socorro do seu chefe quando alguns dos oficiais atacaram o Tribuno. Após alguns golpes breves, dois Generais estavam degolados, os restantes desarmados e dominados. O sorriso sórdido desapareceu da face bexigosa do Cônsul, que espumava tanto da boca, enervado, que quase não conseguia construir frase entendível: “Vais ser crucificado por isto, cão! Escumalha da ralé mais baixa da plebe… Não entrarás em Roma… O Senado quando souber da traição vai enviar a justiça sobre ti e os teus lacaios!

Quintus, não te preocupes, saberei assumir todo o ónus desta decisão. Entretanto, vou parlamentar com o Iberos e tentar encontrar uma solução que nos tire daqui sem que percamos mais vidas Como oficiais, estareis todos presentes nas conversações e sereis ouvidos, se marcarem a vossa presença pela compostura e sobriedade.

Fábio Fulvius reuniu o exército que restava em assembleia magna, falou-lhes dos acontecimentos e entregou-lhes a deliberação final. Apesar de algumas vozes contrárias, a grande maioria compreendeu pacificamente e apoiou a atitude do Tribuno, saudando-o como o novo líder. Perceberam que não seria apenas o chefe mas também o salvador daquela expedição fracassada, trágica para tantos amigos, familiares e, sobretudo, para os desígnios de Roma.

 

Quando sentiu os ânimos mais sossegados, o novo comandante romano alçou uma bandeira sobre um dos estandartes da Legião, como sinal de tréguas e, escoltado por uma dezena de cavaleiros, saiu do arraial, avançando até meio do campo que mediava as duas forças. Ergueu alto o arauto.

Ainda bem… Já está, tal como eu previra. Os romanos entenderam-se entre si e, pelos vistos, ganhou a facção mais sensata. Pelos deuses, é bom que tenham sido assim inspirados. Já basta de mortos…” Comentou Alépio para os seus amigos.

Vamos lá ver se tal se confirma e o que é que eles pretendem. Tragam os cavalos. Gurri, Tongídeo, Talauto… enfim, vá, todos vós que aí estais vêm comigo.

Foram ao encontro dos emissários do inimigo, com passo pausado e atento. Estacaram a uma distância relativa, que permitia a comunicação, mas não um eventual contacto físico imediato.

 

Sou Fábio Fulvius, Tribuno nas Legiões de Roma. Neste momento, dirijo este exército. Entendemos que esta guerra se mostra inútil e decidimos oferecer-vos tréguas, terminando com este conflito.

Estais dispostos a ouvir-nos e entabular negociações?

Eu sou Alépio, de origem calaica e líder destes Iberos. Digo-te que é curiosa a forma como colocas a questão. Todavia, será interessante escutar os termos em que pretendeis favorecer-nos com semelhante “oferta”. Pessoalmente, estou mesmo curioso naquilo que tendes para dar e que nós não possamos simplesmente tomar. Mas, diz-nos quais são as vossas condições…

A colaboração e o entendimento quanto à supressão de mortes inúteis é, só por si, motivo de generosidade e dádiva. Porém, compreendo-te Alépio na tua ironia e reconheço a situação difícil em que estamos atolados… Se concordares com a realização de uma jornada parlamentar, proponho que nos encontremos mais tarde. Trarei os escrivães para assentar em registo os termos do acordo de tréguas e virei acompanhado de todos os oficiais, inclusivamente do deposto Cônsul Quintus Scipius, os quais servirão de testemunhas, mais tarde, perante o Senado de Roma.

De qualquer maneira, apelo desde já à vossa piedade para obter condições que permitam recolher os meus compatriotas tombados, quer os mortos, quer os moribundos. Nós permitiremos que façais o mesmo, sem qualquer oposição ou retaliação.

Romano, recolhe os teus companheiros que jazem pelo solo. Cuida das suas feridas ou da sua partida ritual para o além. Da nossa parte faremos o mesmo. Os guerreiros Iberos destacados para esses trabalhos não tocarão em vivo ou morto romano com que cruzem. Contamos com uma atitude idêntica dos vossos legionários. Será um bom teste à boa vontade de ambos. Depois, recolhe-te ao teu campo e passa a noite. No próximo amanhecer encontramo-nos novamente aqui para buscar a paz.”

Assim seja; cumpram-se as tuas sábias palavras, Brácaro. Despeço-me.”

As representações saudaram-se minimamente e regressaram para as suas posições.

 

Pouco tempo passado, de ambos os lados saíam grupos apetrechados de padiolas rudimentares e carros puxados por cavalos. Iniciaram a lida de recuperar enfermos e prestar os primeiros socorros, de recolher os corpos chacinados e as armas e outros apetrechos deixados pela enxurrada da morte. O vai e vem constante das brigadas de resgate elucidava bem da carnificina ali provocada.

Por afinidades e parentescos, a incineração dos corpos espalhou-se por largo território. Sucederam-se as cerimónias rituais, colectivas ou individuais, com oferendas e dedicatórias aos deuses, a quem entregavam os camaradas. As centenas de fogueiras realçaram-se com o cair da noite.

Por fim, caia mais um dia da guerra. Porém, as circunstâncias apresentavam-se mais optimistas. Os defuntos estavam santificados e devidamente encomendados para fazerem a passagem para a dimensão seguinte, e os vivos sentiam que, para já, não seguiriam viagem com esses companheiros.

A calma na tempestade e o repouso beneficiavam a reflexão e o regresso de muita da racionalidade perdida no tumulto emocional das batalhas. A alvorada seguinte talvez trouxesse notícias de um futuro diferente daquele que, nos últimos tempos, teimava em criar raízes no solo da Ibéria…

(continua)

 

Andarilhus

XVI : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 08:06
Quarta-feira , 14 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (63º episódio)

 

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Assentava a poeira e amainava o vento da fúria que movia em espiral de morte o Homem contra si próprio. O dia esvaia-se precocemente, como se cansado de tanta faina na horrenda colheita de vidas, tomadas pela ceifa da cisma, do capricho do poder, do frio virtuosismo do orgulho.

O tempo passara depressa, esgotara-se para muitos e não deixava fastio ou qualquer sensação de contagem ou medida para os ainda empertigados no desfecho da escaramuça.

Alépio mandou recuar os guerreiros para distância de segurança e criou trincheiras básicas, de improviso, ainda com a luz remanescente daquele Sol testemunha que se espreguiçava, também moribundo, no horizonte. Acampavam para precaver a chegada da noite; aguardavam por desenvolvimentos entre os de Roma ou então pela manhã, para retomarem as hostilidades. A ironia do destino determinara que os cercados cambiassem para condição de ofensiva, atinados em exaurir o inimigo, no aperto de correia de metal asfixiante. Dali, os do Lácio ou saiam para o retorno à pátria sob a bandeira da rendição ou se exilavam de vez algures pelos territórios do Elizium.

 

No reduto romano, as fogueiras mantinham-se atiçadas ao rubro, com todo o fulgor, forçando a iluminação de toda a área, como brecha resistente à noite, de resguardo a qualquer iniciativa ibera. Com o crepitar da lenha verde, ouvia-se também grande algazarra provinda do centro do acantonamento. As disputas verbais cresciam e multiplicavam-se pelo éter estrelado. Estava evidente o litígio e a marcação de posições entre os pares.

Fábio ousava confrontar o Estado-Maior, opondo-se à continuação da guerra, a qual concebia como decidida e apenas razão de morte inútil para muitos dos seus camaradas. Quintus Scipius, com alguma tolerância com o Tribuno, permitia a discussão mas não abandonava a sua determinação cega e decisão em esmagar os bárbaros. A complacência com o desafio do jovem oficial apenas se devia ao estatuto granjeado por Fábio, o único vencedor perante os iberos, até então. Os restantes generais e outras altas patentes permaneciam quietos e mudos, pois sabiam que não beneficiavam da mesma sorte do Tribuno.

Amanhã, contra-atacaremos os selvagens, e não se fala mais neste assunto!!!! Fábio, prepara os teus aposentos e repousa bastante, porque amanhã liderarás a sortida! A minha paciência esgotou-se; cumpram as ordens!!!” Impôs-se o Cônsul com tal ira que quase não resgatava voz suficiente para as últimas palavras, irrompendo em tosse seca. “Vinho, vinho!!!

Já afastado e convencido dos fundamentos que defendia o, até antão, mais fiel e fiável subalterno do comandante máximo conferenciou com outros oficiais, procurando demovê-los de seguirem as instruções emanadas pelo Cônsul. Exortava-os a tentarem uma saída honrada das adversas circunstâncias. Fábio defendia a sua posição com as perdas sucessivas que fizeram ruir todo o poder inicial, encontrando-se agora o exército romano em inferioridade, a todos os níveis da logística e da estratégia. Quintus assim o provocara, Quintus assim o quisera, Quintus assim o continuava a insistir!... Em suma, Quintus deveria ser destituído do comando. Sim, destituído! Não se tratava de uma blasfémia à sagrada honra da Legião, ou uma traição ao povo romano ou mesmo um acto cobarde; era apenas uma conclusão de senso e de razão. Na verdade, uma saída táctica: evitar males maiores, entregar o campo de batalha ao inimigo e retirar dignamente com os homens sobrantes. O Senado determinaria depois se retomariam ou não a conquista da Ibéria.

Os pares escutaram mas não se comprometeram. Para eles, atentar contra o superior hierárquico era um acto condenável e punível. O pudor militar não lhes facilitava tal ousadia. Deixaram Fábio isolado, contudo sem o denunciar. Talvez tivessem uma réstia de esperança que ele, de uma forma ou de outra, acabasse por resolver a situação.

A alvorada agonizava a angústia de Fábio. Não dormira, dividido entre cumprir as ordens, enobrecendo em absoluto o código militar, cuja regra sempre subscrevera implacavelmente, e a oposição à decisão do seu superior, por saber que não era mais do que a ostentação da extrema arrogância e vaidade déspota de um louco, que levaria a um verdadeiro suicídio colectivo. Pela primeira vez, sentiu-se só e impotente.

Quando arribou à tenda de comando, chegava também Quintus Scipius, adornado pelo seu séquito de bajuladores.

Então?! Já tens as ordens Fábio: madruga sobre o inimigo! É hoje que eles vão sentir a gládio a entranhar-se na ousadia. Forma e avança sobre os bárbaros. Nós secundamos-te, com tropas de auxílio.

O Tribuno nem ensaiou réplica. Sem dizer palavra, tomou outra direção e foi dando instruções aos seus oficiais subalternos. Ordenou a reunião dos legionários, a sua disposição em formação de combate, preparados para a aproximação lenta e de recontro à força ibérica.

Do outro lado da contenda, Alépio também já organizava os guerreiros. Colocou os robustos montanheses ao centro, ladeados, em alternância, por colunas de combatentes provenientes do Sul, mais altos e ágeis. Nas laterais dispunha a sua maior vantagem: duas alas de cavalaria, chefiadas, uma por Talauto e outra por Gurri. À retaguarda, colocara os arqueiros.

As longas fileiras da frente dos dois exércitos desafiavam as medidas do vale e alteravam completamente a paisagem e a vida silvestre.

Enquanto Fábio dispunha de um contingente da grandeza de uma Legião - cerca de 5.000 legionários - restando na retaguarda mais uns 2.000, que asseguravam a protecção do Cônsul e dos oficiais menos destemidos ou dados ao combate directo, os Iberos apresentavam uma força esmagadora de um pouco mais de 10.000 efectivos, mantendo 2.000 cavaleiros, entre eles.

O Tribuno já ia derrotado quando deu sinal de progressão. Desta vez haviam encontrado não umas hordas de gentes selvagens, facilmente superáveis por lutarem, normalmente, como animais isolados, mas antes uma verdadeira organização, superiormente chefiada, que superara a visão e a estratégia do comando das forças da pátria latina.

Os trezentos passos que distavam de um bloco ao outro minguavam paulatinamente, apenas por iniciativa dos do Lácio. Alépio exigia contensão aos seus e, fora alguns casos de gente cuja fúria toldava os sentidos para as ordens ou a cautela, logrou manter os Iberos tão juntos como as pedras da firme Ribasdânia.

Uma chusma de flechas recebia as “Coortes” romanas, obrigando os soldados a suster os escudos sobre as cabeças, até se aproximarem o suficiente para confrontarem o inimigo.

O choque foi simultâneo a toda a linha. Entre os romanos, punha-se em prática as tradicionais manobras de ataque em formação, defendendo com o escudo e desviando a arma do oponente directo, para arremessar de imediato o gládio pelas nesgas desprotegidas do mesmo. Em semelhante função estavam incumbidos os possantes mancebos das terras altas da Ibéria, que sustinham a frente do embate, enquanto companheiros mais esguios aproveitavam para, com rapidez, atingirem os legionários envolvidos com outros adversários.

Apesar da diferença proporcional das forças beligerantes, Fábio conseguia manter as suas linhas concentradas e resistentes na batalha. Acudia aos locais que demonstravam fragilidades momentâneas e movimentava as tropas mais recuadas de acordo com as necessidades e a evolução do combate.

A maioria dos homens de que dispunha eram veteranos, muito experimentados e disciplinados nas manobras. Porém, a ala esquerda era composta também com alguma tropa mais jovem e com os aliados remanescentes: gauleses errantes, alguns arevacos, titos e belos e outros mercenários por conta própria. A falta de prática de uns e a pouca convicção de outros provocavam um défice de empenho e solidez desse ramo. Começou a verificar-se que enquanto o centro e a direita da Legião avançava, pouco, mas avançava, a esquerda parecia estagnar e até recuar.

A situação não passou despercebida ao olhar de lince de Alépio. Enviou a cavalaria mais próxima forçar ainda mais a pressão. Em pouco tempo, o flanco esquerdo romano vacilava ainda mais. Procurando a ruptura total, o chefe Brácaro deu indicações a Gurri para levar os seus esquadrões de cavalaria da ala oposta em reforço dos de Talauto.

O Tribuno via o desmoronar do exército a partir daquele vértice, mas não ficou expectante. Ele próprio assumiu a liderança de uma carga de apoio, com o sobrante da sua cavalaria. A magreza dos efectivos montados – apenas duas parcas centenas – pouco ajudou, obrigando Fábio a outras decisões. Sempre em movimento, fez a sinalética necessária para balancear o mar de gente, de modo a concentrar e colocar as tropas das linhas recuadas em escora ao flanco enfraquecido, desequilibrando o volume harmónico do bloco formado pelo exército romano.

Alépio respondeu ao exercício táctico, convocando a cavalaria – aproveitando a grande vantagem da mobilidade – e remetendo-a contra o flanco contrário do inimigo, agora mais leve e despovoado de homens de apoio, na retaguarda. A pressão crítica cambiou irremediavelmente de ala, deixando o Tribuno numa grande contrariedade e indecisão.

A batalha arrastava-se pela manhã, exigindo uma grande quantidade de vidas, de ambos os lados. O Sol nascia num derradeiro dia para muitos e previa-se uma tarde e um prolongar de tempos muito sofridos para outros.

Com a luz do dia quase no seu pleno, em virtude das vicissitudes, a massa compacta de fileiras de legionários já não se estendia num plano paralelamente aprumado. Começara a ceder nos flancos e formava já um semicírculo, apontando tendências para se fechar em circunferência e permitir o cerco do inimigo.

Fábio consciente do massacre maior que dai adviria, gritou com os homens do núcleo, obrigando-os a recuar e a estabelecer uma espécie de coluna cónica que os ligaria ao arraial onde aguardava Quintus. Pretendia libertar-se do abraço funesto dos iberos e retirar para as defesas, salvando o máximo possível das suas tropas.

Exigindo um acréscimo de garra aos legionários, inspirando-os e transmitindo-lhes confiança, deteve os intentos dos iberos e aproximou-se do último reduto. Sendo apoiado também pelas forças que aguardavam no acampamento, quando chegados ao alcance da sua intervenção.

 

Andarilhus

XIV : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 22:25
Terça-feira , 13 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei (cenários da acção)

 

A ficção da história de Rubínia assenta numa base de inspiração geográfica e toponímica... real: as belas paisagens de Valpaços. A minha muito querida aldeia de Paradela, velada pelo Alto do Pentão; As Hortas, confluência e encruzilhada de muitos destinos das terras e das gentes transmontanas; Argeriz e o seu monumento megalítico altaneiro, da tradição do Santuário de Panoias (Vila Real). O castro de Ribas - para nós, Ribasdânia - testemunho da ancestralidade da vida comunitária e social por estas paragens... Tudo isto [todas estas preciosidades] suportado pelo dorso duro, mas muito formoso, da Serra da Padrela...

Não se fiquem pelas imagens; vão lá conhecer e verão como não tenho a mais pequena capacidade para lhes descrever estas paisagens com a devida justiça...

 

 

 

 

O "Alto do Pentão", visto de um extremo de Paradela: Paradela / Valpaços

 

 

 

"Santuário de Argerez" - Argeriz / Valpaços

 

 

  

 

Vista do "Santuário de Argerez" para o Vale Carril / Valpaços - Argeriz / Valpaços

 

 

 

Vista do "Santuário de Argerez" para "Ortas" - Argeriz / Valpaços

 

 

 

Vista de "Ribasdânia" para o "Santuário de Argerez" - Ribas / Valpaços

 

 

"Ribasdânia" - Ribas / Valpaços

 

 

"Ribasdânia" - Ribas / Valpaços

 

 

 

"Ribasdânia" - Ribas / Valpaços

 

 

 

Vertente de "Ribasdânia" para o "Vale" - Ribas / Valpaços

 

Andarilhus

XIII : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:20
Sábado , 10 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (62º episódio)

http://www.enciclopedia.com.pt/images/articles/iberiansvsromans.JPG

 

Após o breve convívio retomou-se a obrigação, irou-se novamente a investida, em corrida desembestada e ritmada por gritos selváticos e estrondosos. Os deuses favoreceram a união da pátria e todos juntos, instigados pela temeridade de Rubínia, Tongídio, Gurri e Irineu, enfrentavam de pronto aqueles cerca de três mil romanos das coortes de suporte. Pela primeira vez, o número de Iberos era superior às forças romanas mais próximas. Os legionários colocaram-se instintivamente em posição de defesa em formação de “Tartaruga”.

Ainda mal desperto e solicitado pelos elementos do seu estado-maior, Quintus mandou avançar as quatro coortes que colocara de reserva para terminar o “trabalho”, ao mesmo tempo que exigia, em altos brados, que a totalidade de efectivos assumisse formatura e permanecesse em ordem para combate.

Os Iberos carregaram sobre os legionários da vanguarda, forçando-os a desmontar a disposição agrupada, exigindo-lhes o combate individual corpo-a-corpo. As tropas de apoio aproximavam-se em passada rápida e ordenada, mas ainda demorariam a vencer alguma distância que os separava da frente da batalha.

Com esta desagregação do corpo central do exército romano, a parcela que ficava na rectaguarda e protegia o alto-comando latino, limitava-se a pouco mais de meia Legião. Tantos quantos os que passaram a ser o alvo, abrindo nova frente de batalha, da carga inesperada da cavalaria de Talauto, engrossada pelos peões de Montes Negros.

Talauto e os seus, que haviam ficado discretos e acoitados nos montes próximos, no seguimento do ataque em desbarataram a cavalaria romana sob o testemunho de inúmeros castanheiros, apareceu de rompante (confirmara prontidão através do segundo sinal de fumo detectado de Ribasdânia e que decidira Alépio e iniciar o ataque final) e entrou fundo nas fileira inimigas, procurando abater ou capturar o Cônsul rapidamente. Porém, as tropas que formavam o núcleo central romano eram as mais experientes e aguerridas, com elementos que só cederiam posição por morte.

Embora apanhado desprevenido, Quintus Scipius escapava à primeira ronda de assalto da cavalaria ibera. Desprovidos da organização habitual os legionários esforçavam-se por conter a investida dos cavaleiros vetões e dos guerreiros do Sul da Ibéria: Cónios, Batestanos, Túrdulos e Turdetanos.

Perante as novas circunstâncias, seguindo as ordens emitidas por trombeta, duas das coortes que avançavam em auxílio das que enfrentavam a numerosa força que havia agregado os guerreiros de Tongídio e dos Arevacos e outros aliados, inverteram a marcha, em defesa do seu comando central.

Os Romanos estavam completamente desalinhados e desorientados, perante os acontecimentos, não conseguindo manter as razões principais do seu poder: a união e a organização. Alépio conhecia bem os romanos e era um mestre em contrariá-los e a transformar as suas forças em implacáveis fraquezas.

Durante o tempo – que pareceu uma eternidade, sem o ser – em que os dois extremos do contingente militar itálico permaneceram em inferioridade numérica e algo tresmalhados, enquanto as coortes centrais se movimentavam para um lado e para o outro para os acudir, os Iberos aproveitaram para infligir um grosso quinhão de perdas em homens no inimigo. Em vão, os centuriões procuravam manter os legionários alinhados, mas a pressão esmagadora dos oponentes desmobilizava-os de vontade de agrupar ou até de combater. Cada qual tratava de salvar a própria vida, procurando sobreviver à avalanche de golpes. Surgiram as deserções e mesmo as rendições de pequenas bolsas de soldados que eram isoladas.

 

Do alto, Fábia contemplava o cenário e estremecia. Se Quintus não promovesse uma reviravolta lesta nas circunstâncias, estava tudo perdido; a Águia Romana tombaria de joelhos.

Incitou os seus homens contra os portentosos muros de Ribasdânia e enviou a parca cavalaria que tinha ao seu serviço, em volta, por Ortas, em socorro dos camaradas assolados pelas hordas de bárbaros, no vale.

Tombemos este bastião! Os vossos companheiros sucumbem como pardais no vale; é nossa obrigação acudi-los!

Os legionários bem tentavam entrar no reduto que Alépio defendia afincadamente, com a, relativamente, pequena guarnição que comandava. Muitos dos guerreiro de arremesso, que se expunham para atirar as setas ou as pedras, haviam já caído, feridos pelos arqueiros romanos. Os que subsistiam concentravam-se em não deixar passar o inimigo para os lados do trilho que conduzia ao vale. Os do lácio, aqui e ali, já iam conseguindo alçar escadas contra as paredes da fortaleza, mas o ânimo dos de dentro votava ao fracasso todos os assaltos.

Alépio segurava Fábio com correia bem afivelada, mantendo-o atraído a um propósito e sem o deixar ir longe.

 

No vale, os acontecimentos desenrolaram-se rapidamente. O encosto das coortes de apoio aos blocos em liça definiu decididamente dois polos de batalha.

Então, do lado de Tongídio, a profusa mortandade entre os opositores iniciais, as fugas e capitulações, acabaram por deixar a recém-chegada força auxiliar de duas coortes em muito má situação. Os bárbaros eram avassaladoramente mais e com a confiança transbordante pela convicção da causa em pugna, que lhes elevava a autoestima.

Do lado oposto, ocorria o inverso no equilíbrio de contingentes, mas Talauto, com a superioridade da cavalaria e sem oposição congénere, com investidas e recuos constantes, mantinha o inimigo em trabalho aturado, concentrado, e preocupado em consigo mesmo.

Já em adiantada tarde, junto ao sopé da montanha, com o braço da tatuagem do urso a brandir a falcata do extermínio, dando o exemplo aos seus conterrâneos, precipitando-os nefastamente sobre as linhas inimigas, os Iberos esgotaram a resistência dos oponentes, provocando a debandada geral dos invasores e a captura dos estandartes e das Águias de ouro de duas legiões. O desbarate dos legionários levou muitos a perderem-se pelas matas vizinhas – seriam capturados mais tarde, se não morressem dos ferimentos ou dos ataques de feras – e outros, ainda em número significativo, a reunirem-se à parte do exército que lutava no outro extremo.

Com a queda daquela ala dos do Lácio, de ambos os cantos do campo romano, agora, campo de batalha, os combates cessaram.

 

Quintus deveria ter evitado a separação das forças e, pelo menos tentado, reuni-las novamente, pensava Fábio.

Acabou! Já há um vencedor. Resta-nos sair desta terra maldita com dignidade. Espero que o Cônsul tenha a clarividência suficiente para enxergar o fim e não permita a continuação deste trucidar dos soldados de Roma. As circunstâncias exigem um pedido de tréguas. O nosso comandante supremo é o verdadeiro véu de morte para os seus subordinados…” Desabafou o Tribuno, para quem o quis ouvir.

Ainda dispondo de um avolumado corpo militar, Fábio deu ordens para recolherem os feridos ao arraial de Ortas e recuou com o seu séquito militar. Aí, deixou a guarnição que considerou suficiente para garantir a segurança dos seus homens mais fragilizados e partiu para o vale com dois milhares dos seus legionários.

 

Alépio entendeu a manobra do dirigente inimigo. Saudou-o ao longe, com certa admiração. Se aquele fosse o Cônsul, a vitória sobre o poderio romano não seria tão simples ou talvez, mesmo, possível.

Deixou o comando de Ribasdânia a um dos seus oficiais, com ordens bem precisas, e desceu ao vale com uma escolta alargada e de reforço. Quando reencontrou os amigos, abraçou-os com afeição. Apesar das pequenas mazelas e do cansaço, tão próprios da liça, todos estavam de saúde e alegres.

Os Romanos entrincheiravam-se à pressa nas antigas posições dos Arevacos, aproveitando pequenas estruturas aí montadas e os muitos materiais e artefactos semeados pelo solo.

Com o equivalente de efectivos a uma Legião, tendo pela frente mais do que o dobro de adversários, Quintus estabeleceu o posto de comando num pequeno outeiro e distribuiu os legionários em redor do mesmo.

 

Bem, vamos a isto, antes que os “romanitos” ergam defesas mais sólidas. Reparem que nem se preocuparam com os seus moribundos espalhados por estas pastagens de morte; temos de ser nós a dar-lhes o golpe de misericórdia! Vamos, cavaleiros celtas, ao ataque!

A cavalaria ibera arrancou novamente, para castigar ainda mais os cansados e desmoralizados inimigos. Talauto, sempre afoito, manteve a pressão sobre as franjas das defesas latinas, investindo sempre sobre os pontos mais fracos, evitando riscos maiores.

Os arqueiros cartagineses, bem afastados e sem o receio de represálias, enviavam chuvas sucessivas de flechas para as trincheiras do inimigo, infligindo grande mossa entre os legionários, os quais numa constância entre o alerta nos perigos do horizonte e o elevar na vertical os escudos, para se protegerem, não tinham sequer um momento de menor ou mais rudimentar sossego.

Os guerreiros apeados confluíram ao epicentro do combate, cercando quase completamente o exército Romano. Após um derradeiro assalto da cavalaria, para fragilizar as linhas da frente do adversário e abrir pequenas brechas, a multidão de iberos correu em massa e abruptamente para as arruinadas defesas latinas. O choque foi tremendo, devastando profundamente as orlas do aglomerado que protegia Quintus e os seus superiores.

Os iberos mais bravos ou enfurecidos quase chegaram ao centro do comando, levando todos os obstáculos à frente do gume da espada ou do machado. Porém, pagavam caro a ousadia, uma vez que se movimentavam como ilhas no grande mar latino, despegados da sua força principal. A maior parte dos mais audazes foi aniquilada, depois de levar o alvoroço quase até aos pés do Cônsul. A Legião derradeira tremia, mas aguentava-se, mediocremente.

Num último esforço, os verdadeiros líderes dos legionários – os Centuriões – concentraram-se na coesão possível, cerraram fileiras e conseguiram rechaçar o massivo ataque.

Os iberos recuaram para reagrupar e ganhar novo fôlego. Uma nova investida daquela envergadura e o inimigo ficaria arrasado. Os corpos que pejavam o chão e o enlameavam com o sangue tinto eram tantos que quase formavam uma paliçada de defesa. Os efectivos de Quintus sucumbiam em bandos e diminuíam significativamente, mas o arrogante magistrado não poupava vidas com a sua ambição e teimosia. Morreriam ainda muitos até que ele, por fim, se desse por vencido. Ou jamais o faria e morreria também.

Talauto nos seus esquadrões equestres e Tongídio com os seus guerreiros peões tomaram posição para a carga decisiva. Desta vez não recuariam até que houvesse um vencido e um vencedor.

 

O Lusitano já chegava à boca o corno de boi forrado a fino couro e ricamente ornamentado, para entoar a incursão, quando sentiu a mão de Alépio a interromper-lhe o movimento: “Espera, meu amigo. Eis que chega Fábio. Talvez esta terrível obrigação de aniquilar outros seres humanos termine por aqui. Aguardemos um pouco.

E depois virando-se para os guerreiros que ocupavam o flanco por onde se aproximava o Tribuno, gritou, para se fazer ouvir: “Deixem passar os romanos que aí vêm e não dificultem a que se juntem aos que ali estão acantonados. Talvez estes não sejam nossos inimigos…

Os homens da Ibéria riram-se a pensar que o Grande Chefe ironizava e procurava, na verdade, juntar mais adversários para a matança. Afastaram-se, abrindo um amplo corredor, por onde passaram Fábio e o regimento que o acompanhava. O silêncio e os olhares de soslaio imperavam…

 

Andarilhus

X : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 10:02
Quarta-feira , 07 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (61º episódio)

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Na casa do Conselho, em parte ardida e com cheiro de farrusco da lareira, Alépio divulgava o segredo que poucos conheciam e pedia que o fizessem saber aos guerreiros apenas no limiar do grande acontecimento. A surpresa seria, pela última vez - esperava -, a arma maior contra o poderio militar Romano. O golpe preparado deveria terminar com as ambições do invasor e dar-lhe sabedoria para nunca mais atentar contra a Ibéria.

Ainda um pouco desconfiados sobre a veracidade do relatado e pouco crédulos nas expectativas da boa vontade de outros, os dirigentes iberos entreolharam-se em silêncio, amarfanharam as peles e outras vestes com que cobriam parcialmente o corpo e ficaram murchos, com algum nervosismo latente. O comandante brácaro contava com outro tipo de manifestação, mas compreendeu que acabara de lhes transmitir algo difícil de digerir ou mesmo de conceber. Era como dizer-lhes que o Mundo ficaria às avessas…

Exortou-os com todo o fulgor: “Algum de vós tem razão para desconfiar de mim? De duvidar de minhas palavras? Por ventura, pensais que crio um logro e vos preparo uma armadilha? Ou mesmo que serei tão ingénuo que caí facilmente na conversa falsa de outros?

Fez uma pausa, para depois reforçar: “É agora ou nunca: tempo de investir tudo e arriscar, mesmo um pouco às “escuras”! O nó foi criado, temos de o desmanchar, principalmente com esta ponta solta que nos foi proporcionada. Vamos puxar o fio, nem que se parta!! Alguém quer desistir? Não recriminarei ninguém que se queira afastar…

Eu vou contigo, Alépio. Nem que sejamos só os dois a descer a montanha contra o incerto, contra o perigo!

Seremos três, então!” Rubínia secundou Tongídio.

Todos iremos! Embora seja uma pequena loucura, e temos tanto de certeza quanto a sucesso como a fracasso. Quem nos vai receber poderá ser o amigo ou a morte, mas todos iremos, não é assim, bravos iberos?!” Exultou Sonim.

Finalmente, ouviram-se os gritos de guerra que se aguardavam. A sorte estava traçada e com ela, o destino daquelas terras e lugares.

 

Com a decisão tomada, esfusiantes em alarido, com música cadenciada a ritmar o movimento, uma vez mais, os Iberos saiam de portas e, em grossa coluna, desciam até meio do carreiro que levava ao vale. Aí chegados e para que saíssem mais umas centenas largas de guerreiros, começaram a espalhar-se um pouco pelas zonas menos íngremes da encosta. Cerca de 5000 celtas mostravam-se ostensivamente a Quintus Scipius. Um pouco mais de 3000 mantinham-se na guarnição de Ribasdânia para fazer frente às tropas de Fábio e evitar que conseguissem passar para a descida do Padrelas e colocassem, assim, a força conduzida por Tongídio entre o martelo e a bigorna.

 

O Cônsul, perante o desafio e a investida iminente dos bárbaros, avisado pelas investidas anteriores daqueles, deu instruções para o posicionamento dos aliados na vanguarda. Arevacos, Titos e Belos adiantaram-se e foram colocar-se em fileiras junto ao fundo da rodeira. Um pouco mais atrás, mas algo afastados, Quintus aproximou três coortes pesadas, com cerca de 900 legionários, cada. No total, dispunha de uma primeira força de choque equivalente à maré de Iberos que se preparava para rolar montanha abaixo.

Na sua previsão, o comandante romano, alcançaria a vitória após o desgaste de guerreiros do primeiro embate, mandando avançar, no decorrer da peleja, mais quatro coortes que acabariam o serviço e aniquilariam aquela praga de selvagens.

 

Fábio também não perdeu tempo. Ao avistar as manobras do adversário, apercebendo-se que um grande número de efectivos marchara para fora de Ribasdânia, mandou apressar todos e lançou as primeiras forças contra as muralhas, enquanto orientou parte dos homens numa tentativa de contornarem a fortaleza e atacarem a coluna de Iberos que descia a vertente.

Como as passagens laterais entre os píncaros superiores da montanha e a cidadela, ou entre esta e o declive vertiginoso, eram muito estreitas e sempre ao alcance dos de dentro, os esforços de a contornar saíram infrutíferos e causaram pesadas baixas. Alépio instigava fundibulários e arqueiros a constantes e ininterruptos lançamentos, o que redundava num grande massacre de todos os que procurassem a nesga do sucesso para os intentos de avanço. Mesma sorte se atravessava na frente daqueles que procuravam acercar-se dos muros, para os galgar.

Com o crescendo de abatidos, os Romanos decidiram então, primeiro, construir pequenos refúgios em madeira, oblíquos, que os apoiassem e protegessem dos projecteis junto da fortaleza.

 

Do cimo do baluarte e após divisar os traços de fumo que se volatizavam para os lados de Montes Negros, Alépio deu instruções para que se propagasse o som do sinal de ataque a Tongídio. Estava tudo pronto; todas as peças da estratégia tomavam a disposição prevista.

O lusitano seguiu as ordens e iniciou a descida final com os seus guerreiros. Primeiro a passo lento, acelerando depois, progressivamente, ganhando uma velocidade alucinada, direitos à barreira de lanças dos iberos traidores que os esperavam.

Abaixo, os Arevacos ajeitavam as armas em riste e enrijeciam os braços nas correias dos escudos. As coortes romanas de apoio também ficaram de sobreaviso. Muito atrás – havia recuado para o fundo do reduto latino – Quintus colocava-se com o restante exército a salvo de artimanhas manhosas dos bárbaros.

Quando já os Celtas vertiginosos erguiam as armas para as desferir nas primeiras linhas adversárias, Tongídio entoou a corneta e estacou a corrida e com ele, já na borda do vale, ao longo de uma fiada paralela aos que aguardavam o embate, todos os seus comandados. As duas massas oponentes estavam a dois passos uma da outra. Os guerreiros que se confrontavam olharam-se por alguns instantes… Sentia-se um burburinho nervoso no ar. Estaria o trato bem acordado, tal como planeado? Sim, Gurri e Irineu cumpriram plenamente a missão!

Os beligerantes baixaram as armas, afastaram escudos e correram a abraçar-se fraternalmente. A Ibéria estava plenamente unida a partir desse momento!

O Cônsul ao longe não queria acreditar. Aliás, julgava-se com alucinações provocadas pela distância. Os rancorosos inimigos pulavam, gritavam em confraternização, como se fossem amigos de longo tempo. E eram.

 

Quando, anteriormente, no curso da investida inicial da cavalaria de Talauto sobre o campo romano, os Iberos se acercaram do assentamento arevaco, permitindo que uma dezena de cavaleiros saltassem das montadas e se perdessem pela multidão caótica, preparava-se uma das estratégias cruciais da guerra.

Entre essa dezena de guerreiros estavam Gurri, Urtize e mais dois Vacceus, acompanhados de Irineu, líder dos rebeldes Arevacos e alguns compatriotas. Não foi difícil alcançarem os seus propósitos. O comportamento dos Romanos para com os seus aliados abriram feridas enormes e haviam minado não só a confiança como a simpatia. O azedume e a repudia aos comportamentos déspota e humilhante do invasor grassavam entre a maioria dos Arevacos. Por isso, com alguns golpes de punhal aplicados nos caudilhos que, por interesse egoísta, insistiam na amizade e aliança com os do Lácio, Irineu conseguiu converter facilmente todo o seu povo e, ali, o exército, contra o invasor estrangeiro. Titos e Belos acompanharam os vizinhos na mudança táctica e afectiva.

O sinal de fumo avistado de Ribasdânia era a confirmação aguardada ansiosamente por Alépio, porém poderia ser também uma armadilha, caso a congeminação não tivesse sortido êxito.

 

Andarilhus

VII : IX : MMXI

 

publicado por ANDARILHUS às 21:26
Segunda-feira , 05 de Setembro DE 2011

Por Ti Seguirei... (60º episódio)

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Quando entregaram o balanço das casualidades a Quintus, este, contrariamente à sua habitual exasperação, ficou mudo e tapou o rosto com as mãos. Com um gesto perceptível dispensou os serviçais e os ajudantes de campo e ficou só. A campanha complicava-se e ficava com uma aparência muito nefasta. Agora, não seria suficiente alcançar a vitória; tinha de provocar grande flagelo e marcar bem a derrota e a humilhação do opositor. A glória e a justificação de tão pesados insucessos e mortes dos seus apenas encontrariam encobrimento se a sorte do inimigo fosse bem pior.

Contava com Fábio para continuar a inverter os maus resultados por si alcançados. E seria mais cauteloso em novas manobras. Para evitar novos fracassos com os subterfúgios dos iberos, da próxima vez enviaria primeiro as forças dos aliados.

 

Acantonado em Ortas, Fábio Fúlvios ultimou os preparativos para avançar sobre Ribasdânia, ainda durante a madrugada seguinte. Previa fazer um ataque relâmpago, similar ao realizado na conquista do local onde se encontrava agora.

As tropas do Tribuno, em coluna exígua para poderem avançar pelos corredores estreitos da montanha, alcançaram o Santuário de Argerez ainda antes da aurora, colhendo de sobressalto algumas bolsas de iberos que se espalhavam pelo território. Um contingente assente no santuário ainda deu alguma resistência. Porém, com a visibilidade da envergadura exército inimigo, aportada pela luz matinal, acabaram por retirar-se, entregando o lugar aos Romanos.

Com a recolha dos grupos de guerreiros que promoviam o esforço de guerra pelo exterior, Ribasdânia ficou a transbordar de gente. As muralhas estavam totalmente ocupadas e o interior do recinto mantinha uns quantos milhares à espera de oportunidade para espreitar a aproximação do inimigo. A cada passo, alguém chocava com um correligionário.

Nestas condições de aperto em exíguo espaço, não só a quantidade de braços armados ficava longe de uma plena rentabilização, como poderia mesmo resultar em más consequências. Alépio sabia-o, mas aguardava algo. Ao contrário do que seria expectável não dava o sinal de ataque final, o que estranhava as gentes, tanto mais que infligira já duros golpes em Quintus. Afinal, o que faltava para se decidir? Poucos o sabiam…

 

Fábio Fulvius, logo que se abeirou do baluarte principal do inimigo percebeu bem as circunstâncias. Resolveu imprimir mais pressão sobre os bárbaros, abalando-lhes o esconderijo de refúgio e a moral.

O estio amadurecera bem as ervas de junça e panasco. Estavam secas como palha e, tal como as podia apreciar nos limites externos da cidadela, o Tribuno imaginou que também existissem no interior daquela, quanto mais não fosse, junto a muros e a ladear os caminhos de pé-posto. Por isso, mandou avançar as armas de arremesso à distância, colocar mechas incendiárias nas pontas dos dardos e montar projécteis com o mesmo efeito para as catapultas. O ataque iniciou-se de imediato.

Em breve o interior da área defendida fumegava, em consequência de um fogo rasteiro mas importunante que lavrava e alastrava um pouco por todo lado e acabava por abocanhar as madeiras de casas e outras estruturas. Os ocupantes do sítio quase não encontravam espaço para escapar ao calor e à queimadura. Atrapalhavam-se nos movimentos e com tamanha confusão que quase não conseguiam actuar contra o flagelo.

De cima dos muros, dividiam-se os olhares e a preocupação, quer para o lado de fora, quer para o lado de dentro. O descontrolo tomava posse dos ocupantes de Ribasdânia, com a fumaça irrespirável e as chamas intensas que chicoteavam as roupas e a pele. E se embora as pedras não ardessem, abafavam todavia ainda mais o calor, funcionando como as paredes de uma gigantesca forja.

Tongídio leva o grupo de cavaleiros que permanecem por cá, antes que derretam, incinerados, os cavalos, e destrói aquelas malditas máquinas, que nos estão a arruinar os planos! Ainda não recebemos o sinal que aguardamos; por muito que custe, temos de nos manter dentro de muros!” Ordenou o comandante dos Iberos.

Tongídio não se fez rogado e, a encabeçar uma força com centenas dos seus Lusitanos, reforçados por Calaicos e Vetões, rapidamente saiu da fortaleza para levar a cabo uma surtida feroz contra os romanos.

Foi com facilidade que entraram nas linhas inimigas e se chegaram às balistas e catapultas. Enquanto uns formavam uma barreira e enfrentavam os legionários, outros desciam dos cavalos e com machados rompiam as cordas, tendões, peças e apetrechos dos engenhos. Após uma curta refrega com baixas consecutivas de ambos os lados, concluíram o pretendido, pondo as máquinas inactivas, para muito tempo.

Confiante no sucesso da acção, o caudilho lusitano fez soar a ordem de retirada. Mas, a aparente fraca reacção dos adversários fora premeditada e a situação, progressivamente, complicara-se bastante. Os Romanos haviam reagido ao ataque como um pego de água onde entrara a pedra impelida por alguém: deixaram os Iberos mergulhar no seu caudal. Agora tinham-nos absolutamente cercados, como uma bolsa dentro de um alforge.

Das alturas de Ribasdânia, Alépio compreendeu a cilada, mas não teve como avisar os camaradas. Rubínia também viu os seus receios a concretizarem-se. Numa imensa clareira Tongídio e os resistentes defendiam-se duma grande alcateia de lobos do Lácio. Eram já muitos os corpos tombados na orla daquela circunferência. Aquela parcela da cavalaria ibérica cadenciava a morte profusamente pelo inimigo mas também se ia esvaindo de gente.

Mulheres dos guerreiros que acolá morrem; camaradas daqueles amigos e irmãos! Quem comigo vem resgatar os nossos valorosos!!!!” Gritou Rubínia para a multidão que assistia à hecatombe e já quase se esquecera dos incêndios que os afligiam.

A resposta uníssona fez-se ouvir até ao campo de batalha.

Depois, Rubínia encarou Alépio e este, convencido por aquele olhar terrível que aguardava por uma resposta, acenou afirmativamente com a cabeça e deu ordens: “Sigam com Rubínia todos aqueles que ela escolher!

O grupo de resgaste foi fácil de encontrar. Quase na totalidade formado por mulheres-guerreiro, saiu da fortaleza pela porta contrária ao cenário da batalha e apareceu de rompante sobre o inimigo por ambos os lados.

Atacaram a franja mais frágil e mais próxima dos legionários. Lograram romper um corredor até ao centro onde exasperavam os camaradas. Junto a Tongídio a acumulação de adversários abatidos atingia proporções míticas e ele continuava a brandir a falcata sobre os que o enfrentavam directamente ou em ajuda dos companheiros mais próximos, tolhendo os intentos e a vida dos atacantes, a cada golpe.

A chegada dos reforços guiados por Rubínia trouxe algum equilíbrio e permitiu o retraimento dos Romanos, com a surpresa. Porém, logo estes recuperaram o espírito e voltaram à carga massivamente. A pressão aumentava, empurrando os Iberos em recuo continuado até aos muros de Ribasdânia.

Rubínia e Tongídio, agora juntos, organizaram espontaneamente uma frente longa de oposição, evitando assim novo cerco fatal, enquanto retrocediam para posição de refúgio, sem virar as costas ao inimigo.

Alépio mandou retirar todos os guerreiros desse lado da muralha, permanecendo apenas todos aqueles armados de fundas ou de arcos. Assim que as duas facções beligerantes se aproximaram o suficiente, deu ordem para que atingissem os assaltantes. Desta forma, os sobreviventes da expedição ao exterior viram finalmente uma oportunidade para se acolherem à protecção dos muros da fortificação.

Os dardos e as bolas de fogo haviam parado, mas as tropas de Alépio tinham sofrido grande revés com a investida, perdendo efectivos preciosos e trazendo alguma descrença aos resistentes. Apesar do desastre, a reacção de Rubínia minimizara as perdas e mantivera o alento face à contrariedade.

 

Perante o impasse criado, Fábio interrompeu o combate por alguns momentos, dando atenção sobretudo à recolha e amparo dos soldados feridos, enquanto debatia com os seus assistentes de campo o rumo da batalha. A reconstrução dos aparelhos de guerra destruídos era impossível em tempo útil. Restava-lhe progredir de forma tradicional sobre a fortaleza: arqueiros, protecções aos homens do assalto, escadas e subida aos muros, forçar o arrombamento de portas.

 

No interior de Ribasdânia, dominado o fogo e após algum descanso do confronto, os ânimos melhoravam e já se ouviam algumas graçolas sobre os Romanos e os seus aliados Arévacos.

Apesar de se fazer sentir ainda alguma neblina fumegante no local, uma forte coluna de fumo precipitou-se no horizonte, em baixo no vale e na área mais recuada do arraial inimigo. Informaram o comandante que, então, verificava o estado físico dos seus amigos, confirmando mais um conjunto de lanhos e pequenas perfurações no tronco e braços de Tongídio, o qual se ria enquanto a mulher lhe cosia algumas costuras.

Finalmente! Agora sim, vamos dar a sova final nestes invasores e mandá-los para casa humilhados e esfarrapados ou para o além! Reunião de chefes, imediatamente, e os guerreiros que se aprumem para o dia glorioso de hoje!

 

Andarilhus

V : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 21:18

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