Por Ti Seguirei... (66º episódio)

 

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O processo de inscrição do pacto ainda demorou um pouco. Durante a espera, os romanos iam bebendo umas taças de vinho enquanto, em frente, os iberos puxavam pelas cabaças e odres de cerveja. Quintus era o único que continuava resmungão. Por tanta insistência, já ninguém lhe prestava atenção, nem mesmo os guardas que o vigiavam.

Terminados os dois registos, iguais, Fábio entregou um a Alépio, para que o conferisse. Com o pergaminho na mão, o Brácaro olhou para a mancha textual, em latim, e depois para o Tribuno. Sorriu e virou a cabeça para o lado, mostrando que falava para trás, para o seu grupo.

Rubínia fazes falta aqui. Adianta-te e vem explicar estes rabiscos por palavras que se entendam. Vem juntar as letras.

A mulher respondeu de pronto ao solicitado, avançando. Zímio é que não facilitava e acompanhou-a. Tongídio, aproximou-se um pouco mas não se juntou aos, agora, quatro.

Rubínia leu pausadamente de uma só vez, embora com alguma dificuldade. Após alguns momentos, referiu: “Podes confiar na palavra do Tribuno: aqui está escrito tudo aquilo que foi parlamentado entre vós.

Espanto-me a cada descoberta que faço sobre a Ibéria. Tendes mulheres que dominam o latim! E há energúmenos que vos têm por meio-selvagens. É por estas razões que também Quintus nos levou à fasquia rasa em que estamos…

Temos, de facto, mulheres e homens admiráveis, e muitos! Mas, romano, esta é uma mulher ainda mais notável. Ela é única! Esta é Rubínia, a mulher que fez mexer a Ibéria, moveu a apatia e as disputas que existiam entre os seus povos, unindo-os contra ti e os teus. E porquê?! Tão simplesmente porque ama de tal forma o marido – Tongídio – que colocou o mundo às avessas para o poder salvar, cativo que estava dos vossos calabouços, junto a Sekia. Como vês, esta mulher é o verdadeiro espírito da Ibéria e é a verdadeira líder de todos estes guerreiros. Sem ela, nada disto teria acontecido!

Do lado dos iberos ouviram-se vivas e elogios a louvar Rubínia, em alto e vibrante som, que se propagou até ao acantonamento geral.

A mulher, apesar da experiência, ruborizava e humedecia o olhar, já pensando que a sua árdua demanda chegava ao fim e com sucesso. Entregou o fólio ao comandante, virou-se e preparava-se para retomar o seu lugar, atrás, ainda sob as ruidosas manifestações de respeito, agradecimento e alegria.

Quintus, esquecido na sua insignificância crescente, quando ouviu a descrição de Alépio, começou a estrebuchar, pleno de raiva e tremelicante pelos nervos. Era então aquela a culpada da derrota, a culpada da miséria da Legião e do fim da sua carreira magistral?! Já não conseguiria ascender a cargos mais elevados que tanto ambicionava. Maldita!

Era tamanha a azia que não se conteve. Fora um soldado experiente e exemplar e mantinha ainda a boa condição física. Por isso, foi com facilidade que atirou por terra o guarda, sacando-lhe o gládio e o dardo. Empurrou mais duas sentinelas e chegou-se à frente, em campo aberto. Focou a mulher como alvo e apontou o dardo. Gritou e logo de seguida desferiu a arma: “Vais morrer maldita mulher; não ficarás com os louros por muito tempo. Em ti vingo parte dos males que me fizeram!

Rubínia e Zímio caminhavam a par, de costas para a altercação. Viraram-se com o escutar dos tinires do movimento agressivo e berros de Quintus, mesmo a tempo de presenciarem o arremesso do dardo. Zímio pleno de energia, em reacção atirou-se para a frente da sua Senhora, empurrando-a, em simultâneo, para o lado. Sabia o que fazia. Encaixou com violência o embate da ponta metálica da arma, sentindo-a entranhar-se entre o externo e as costelas, enquanto soltava um baque de expiração. A lança trespassara-o bem próximo do coração, provocando uma forte hemorragia e determinando um breve trecho para o restante da sua condição de vida. Tombou de lado, espumando sangue, enquanto chamava por Rubínia, em tom quase inaudível.

Zimio!!!! Meu querido Zímio!!!!

A mulher era a imagem do terror. As feições estavam irreconhecíveis, pálidas e transtornadas. Lançou-se imediatamente sobre o ferido, puxando-o para si. Já lhe corriam as lágrimas em abundância. Acercaram-se outros, carregados da mesma dor e tristeza, sobretudo Tongídio, que se sentou na poeira eriçada e amparou Zímio sobre as suas pernas e encostado ao peito.

Quintus, não muito afastado, deixava correr um misto de satisfação e frustração. Atingira um dos execráveis, mas não era o que mais desejava aniquilar. Contudo, ainda dispunha do gládio… Porque não?! Antes que os legionários lhe deitassem mão, desatou a correr sobre os Iberos, gritando e elevando a arma.

Rúbinia ergueu-se. Faiscava do olhar, dir-se-ia. Movia-se pausadamente como figura transcendente de deidade. A deusa da morte, o semblante do ódio, o encorpado desejo de provocar flagelo, dor aguda, a alguém. Queria trucidar aquele ser maléfico que se aproximava.

Amparem Zímio, rápido. Vou arrancar a cabeça àquele animal!” Solicitou Tongídio, enquanto passava o moribundo para os braços de Talauto.

Não Tongídio, espera. Deixa que o destino cumpra a sua trajetória. Isto deve estar premeditado algures nas estrelas. Será a tua mulher a cumprir com os oráculos, a concretizar o sussurro dos deuses…” Susteve-o Alépio.

Rubínia já retirava a espada da bainha. Avançou alguns passos, em linha de choque com o romano. Encontraram-se bruscamente. O gládio carregou mas conteve-se na lâmina contrária, adestrada por pulso firme.

A mulher, na aura absoluta de guerreira, concentrou-se em tudo o que aprendera, muito do qual com o amigo que falecia e, com alguns movimentos de assombro, tão viperinos como quase invisíveis pela velocidade de movimento, fez saltar a arma de Quintus, fez-lhe um ligeiro rasgão na gorja, talhou-lhe os músculos das coxas e fê-lo, assim, ajoelhar.

O Cônsul encarava o seu carrasco, de mórfica silhueta feminina, permanecendo mudo e cabisbaixo. Olhou para os seus e não viu reacção. O grande arrogante, preso na teia do medo, começou então a suplicar e a pedir que o poupassem. Humilhou-se a clamar por Fábio e os restantes oficiais, instigando-os no seu socorro.

Alguns legionários, mais sensíveis ao seu patrício, propuseram-se a valer-lhe, porém o Tribuno interpôs-se: “Mantenham as vossas posições, todos! Hoje, custe o que custar, vamos alcançar tréguas!

Cão sarnento que não soubeste respeitar os teus, nem dar o devido valor ao inimigo. Não propagarás mais o mal e o fel que te alimentam. Olha bem para o Sol, para a tua última vista desta existência…” Falou-lhe baixo, Rubínia

Não me mates! Pagarão um bom resgate pela minha pessoa! Terás tudo o…” E mais não disse, porque a cabeça soltara-se do corpo e rebolara um pouco, com o golpe circular, decidido, da guerreira. O corpo manteve-se inclinado por breves instantes, para tombar depois para a frente, ensopando a massa argilosa daquela terra fértil.

 

O grupo avançado ibérico colocou-se em alerta, expectante por uma eventual carga de retaliação, vinda da outra parte. Contudo, Fábio teve autoridade para segurar os ímpetos.

Rubínia… Rubíniaaa…” Escutou-se enfim, no macabro silêncio que se propagara no lugar. Era Zímio, num derradeiro e sofrido chamamento.

A mulher regressou à sua natureza mundana e correu para o amigo. Tomou-o nos braços, enquanto Tongídio o ajeitava numa posição mais confortável, como se isso fosse possível.

Meu bom Zímio, que arriscaste a tua vida pela minha… A lança procurava o meu corpo e não o teu. Vamos tratar de retirar a arma e fechar-te a ferida…

Já é tarde. Os meus dias terminam aqui, em alguns momentos. As forças esvaem-se, sinto-o… Já vejo a passagem nas alturas, por onde atravessarei, com destino ao além. Escuta-me, enquanto posso dizer-te o que nunca te disse.

Fiquei cativo ainda em criança. Fui escravo em algumas casas, onde me tratavam como mais um animal, explorado até às últimas forças nos mais duros dos trabalhos. Porém, os deuses apiedaram-se de mim e trouxeram-me para domínio dos teus pais. O teu nobre pai, Físias, resgatou-me de uma mina, pagando uma pequena fortuna, porque, na sua grande alma, não suportou ver um jovem de tenra idade a esgaravatar minério. Pagou ao capataz, levou-me, alimentou-me e deixou-me descansar os males sofridos, por uma longa temporada. Tratou-me como um filho, na verdade.

Mais tarde, pouco depois do teu nascimento, confiou-me a tua guarda e parte da tua educação. Acompanhei-te sempre de perto, com os mesmos cuidado e o carinho que tivera do meu Senhor. Vi-te crescer, ensinei-te o que houvera aprendido, emendei-te as falhas e desacertos próprios da juventude e… no meu silêncio, pelo respeito da minha condição de servo, criei em mim, aquilo que julgo que será a afeição… o amor… de pai… por ti.

Nunca tive família, na sua forma comum; tive sim a família que me adoptou e uma “filha”, que me entregaram e a quem muito amo, de nome… Rubínia.

Por isso, se era minha obrigação servir-te de escudo ao perigo do dardo, era também minha paixão dar a minha vida pela tua, sempre que necessário, desde que te vi pela primeira vez, brilhante e rosada no pano de linho que te envolvia no berço… filha! Desculpa Senhora tratar-te assim, com tanta imprudência para um servo; perdoa o abuso deste moribundo…

As lágrimas correram, juntando-se aos fios de sangue que continuavam inexoráveis na sua propagação.

Rúbinia lacrimejava igualmente, deixando, no entanto, transparecer um sorriso doce, de acalmia, até de felicidade. Beijou a testa a Zímio e acariciou-lhe o negro cabelo, denso e curto: “Sim, tenho a graça de ser protegida e bem querida por dois prodígios do cuidado paternal. Vejo agora, que é isto que me distingue e me dá tamanha força interior. Dois tutores, dois amparos, dois exemplos, dois pedagogos… que fortuna, a minha! Estimo-te muito, meu velho amigo Zímio… meu PAI.

As palavras saíram com efeito de seda, como bálsamos para as dores de Zímio. Deixou de sofrer, desapareceu a ferida no seu pensamento. Apaziguou na luta contra a morte. Colocou a mão trémula no rosto de Rubínia, fez o maior sorriso de toda a sua existência e, com o alento que lhe restava, proferiu: “Continuarei a velar por ti; estarei contigo em todos os teus momentos, sobretudo os mais difíceis. Lembra-te de mim, minha querida Rubínia…

Cerrou os olhos com candura e soltou o último folgo, profundo e de partida… Expirava.

 

Andarilhus

XXVII : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 21:23