Segunda-feira , 10 de Junho DE 2013

Por Ti Seguirei... (2.9)

 

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Impacientes, pouco dormiram, a ruminar nos planos e nas estratégias para colher os latinos como se fossem gatos pachorrentos, espreguiçados ao sol.

Quando o galo saudou a primeira luz já Kalae revolvia em surdina. E tão cedo despertaram, que ainda cheirava a comida quando os líderes celtas regressaram à sala da casa do senhorio, para prepararem a operação. Atiçaram as brasas subsistentes da fogueira que aquecera a ceia, iluminando novamente o espaço. Entre bocejos, iniciaram a troca de impressões, enquanto debicavam alguma fruta e pão.

- Graças às suas campanhas de fracasso contra os nossos muros, e porque, também, embarcaram alguns para outras paragens, os romanos são agora em menor número. Mesmo assim, ainda devem andar por aí um punhado farto de centúrias. Nós somos cerca de 200 guerreiros prontos a lutar, incluindo algumas mulheres. No entanto, parece-me que podemos explorar alguns pontos em nosso proveito. Desde logo, o inimigo está fragmentado em várias posições: têm legionários nas duas galeras, no campo fortificado que construíram na margem do rio, e ocupam também a Citânia Marinha, onde controlam e oprimem os túrdulos; beneficiamos também da vantagem da surpresa; finalmente, contamos com o nosso espírito indomável, muito apreciado pelos deuses. O maior problema é não termos meios de atacar em força e de rompante o inimigo, porque o largo caudal do Durio nos atrasa o avanço, denunciando a nossa chegada. Não sei ainda como ultrapassar este problema…

- Frágua, e restantes senhores da sala, peço a palavra... – interpôs-se Aelcio, adiantando-se a todos nos comentários à apresentação de Frágua.

Algo atónitos, os mais velhos acabaram por mostrar curiosidade em conhecer os pensamentos do jovem intrépido.

Porque não darmos ao inimigo aquilo que ele tanto espera?! Reparem: eles aguardam a passagem de um grupo celta que conspira contra os seus interesses; querem debelar essa ameaça; estão concentrados em matar pela raiz qualquer tentativa que arruíne os seus planos na Ibéria. Porque não dar-lhes a desejada “comitiva de Tongóbriga”, como se dá a minhoca no anzol aos peixes?! Distraindo-os assim, teremos então a oportunidade de atravessar o rio a montante e ir em socorro dos nossos vizinhos… e procurar libertar os guerreiros túrdulos para nos ajudarem a equilibrar um pouco as armas em contenda!

- Ora, se houvesse dúvidas quanto à tua identidade, desapareceriam de vez: és uma réplica, em crescimento, do teu irmão Alépio! – sentenciou Tongídio, para terminar com o ambiente de admiração.

- Julgo que estás prestes a ganhar as tuas vírias de adulto, sendo tempo de entregares a tua confraria de moços a outro líder. Mas, deixa-me adivinhar: por certo já magicaste como levaremos a cabo esse teu plano, não é verdade Aelcio?

- Claro, Rubínia! Tenho tudo concebido aqui por baixo das melenas encaracoladas! Vou contar-vos tudo… se me permitirem…

Em breve, e sem significativas alterações às propostas de mancebo brácaro, Frágua dava instruções aos seus kalaedónios, definindo posições, ações e apetrechos a reunir.

 

Raiava o rebordo do pai Sol nos cumes das montanhas, quando se volatilizavam os primeiros fumos exalados da incineração das vísceras e do sangue de um bode, em oferenda a Reva, pedindo a ajuda divina.

A máquina mística celta da guerra estava lançada. Algumas dezenas de guerreiros seguiram para Este, procurando a montante um melhor ponto de passagem do vão fluvial, outro grupo acorreu ao local onde se encontrava a galiota. O contingente maior dos elementos da força ibérica desceu furtivamente até às ruinas do porto de Kalae, aproveitando ainda a pouca claridade, mantendo-se aí ocultos entre as estruturas destruídas.

 

Como Frágua ordenara, Krispo juntou uns quantos companheiros para levar um tronco de castanheiro derribado e seco há muito, esventrado pela longa vigilância dos tempos, até à borda da água. O madeiro, assim carcomido, era leve e, sobretudo, flutuava bem, correspondendo na perfeição à genialidade de Aelcio.

Ao sinal de Tongídio empurraram a galiota, pilotada por Taer e Aleutério, transportando também uns quantos jovens brácaros da fraternidade de moços, para formar o grupo “esperado”. Em simultâneo, Tongídio, Rubínia e os restantes da comitiva, estribados ao tronco de castanheiro através de cordas, e camuflados pelos ramos e limos que anteriormente tapavam a galiota, seguiram arrastados por esta. No bucho escavado do lenho levavam lanças, machados e falcatas em grande quantidade. A árvore renascia para novo destino…

A Levante, dentro de toscas barcas de pesca, um corpo avançado de celtas atravessava o Durio, numa das suas cinturas mais estreitas. Contornariam o alto do Pelar por Sul, para desembocarem em Citânia Marinha sem serem detetados.

 

Por sua vez, do outro lado do rio, os romanos preparavam-se para retirar os prisioneiros da galera e levá-los para a extração de minério, começando a reuni-los no convés. Como de costume, após os libertarem das correntes das vigas do porão, procediam à contagem, enquanto os iam agrilhoando novamente, agora, nas cordas de marcha. Entretidos nesses trabalhos, e sempre divertidos com a humilhação e a agressão sobre os escravos nativos, os jocosos vigias latinos só se aperceberam da embarcação celta já esta se adiantara no caudal do Durio, deslocando-se velozmente, numa aproximação que dava a entender que iriam tentar a passagem, escapando à interceção.

A agitação foi medonha entre os romanos. Aos gritos, os centuriões convocaram os subalternos, dando ordens de reação. Na galé maior, como se fossem fardos, atiraram com os cativos túrdulos de volta para a galeria funda dos remos. Aí ficaram retidos, embora soltos de amarras.

 

Ao toque de trombeta, os legionários formaram às portas do acampamento fortificado. De modo disciplinado, duas centúrias embarcaram na galera grande desguarnecida, enquanto um grupo menor revelava uma terceira embarcação, de tamanho reduzido, simulada entre as duas galeras maiores e a ramagem frondosa da orla ribeirinha, e se lançava na vanguarda do encalce do barco ibero. O isco funcionava.

No ponto favorável das correntes, Aleutério cortou a corda que rebocava o tronco, ficando este à deriva e ao sabor da direção das águas. Taer deixou que a galé pequena do inimigo se aproximasse um pouco para, depois, guinar a galiota diretamente para a margem Norte, simulando a fuga desesperada para terra.

Como pumas prestes a abocanhar as presas, os legionários retesavam os músculos, imprimindo potência aos remos, conseguindo reduzir rapidamente a distância que os separava dos perseguidos. De tal modo que, da amurada, se estreavam as tentativas de lançamento de dardos.

Como previsto, os da galiota atingiram a zona portuária de Kalae, aportando na foz de um pequeno riacho que corria do cimo do povoado, emaranhando-se pelo refúgio das ruínas. Os romanos aportaram quase de imediato. Inicialmente hesitantes em avançar para lugar inseguro, ao verificaram que a galera grande chegaria em breve com reforços, lançaram-se na perseguição.

Frágua fora explícito para os seus guerreiros: a missão consistia em atrair o inimigo para o interior dos destroços, procurando dispersá-los com combates em pequenos grupos, de ataque e fuga, sempre a recuar. Quando escutassem o sinal sonoro do chifre, deveriam desistir dos embates e desaparecer nos matagais, e aí aguardar por novo sinal, para reagrupamento.

Assim aconteceu. O grupo latino menor viu-se confrontado com turbilhões de celtas, trocando algumas hostilidades, mas obrigados a esperar os camaradas que já deitavam a prancha para passar da galera para a margem. Reunidos os blocos, as quase três centenas de legionários acometeram, formados em linhas coesas e com passada certa. Contudo, retomada a liça, logo os iberos obstaram à organização latina, forçando-os a abandonar a formação e instigando-os em combates intermitentes, em vagas de assaltos e retiradas.

 

Do outro lado do rio, os romanos de reserva estavam atentos ao desenrolar da batalha. Mesmo os que se deram conta, não estranharam, nem acusaram qualquer preocupação à aproximação e ao encosto de um tronco de castanheiro ao casco da galera maior. Nem mesmo os túrdulos, que iam espreitando pelos orifícios por onde atravessavam os cabos dos remos.

- Ei, amigos. Ei, aqui… - sussurrou baixinho Runaekoi, levantando um pouco a ramagem que o escondia.

Apanhados de surpresa, os cativos arregalaram os olhos quando se aperceberam que a árvore transportava várias pessoas, disfarçadas com a cobertura de lama e que se confundiam com a tonalidade da casca, destacando-se apenas a claridade dos olhos e da dentição.

- … Escutem: estamos aqui para vos libertar. Vamos passar-vos armas e depois subiremos à galera para vos soltar. Conseguem ver daí quantos soldados estão de guarda à embarcação? – continuou Runaekoi, em tom abafado.

- São onze… concentram-se quase todos na proa; três estão na torre. – respondeu um deles.

As armas, envoltas em panos, passaram para as mãos dos túrdulos sem qualquer ruído.

- Agora levantem e segurem estes remos na horizontal para que subamos com ligeireza.- apontou Tongídio.

Com agilidade, ficaram elevados ao nível da cobertura da embarcação. Olharam para o interior e confirmaram a situação. Com alguns gestos e poucas palavras do caudilho, deixaram-se escorregar e descer para o convés.

Caturnino, lesto, girou a funda e amassou a cabeça do guarda da prancha de embarque. Atirou com o corpo e com a prancha borda fora. Debruçado, cortou as amarras que subjugavam o barco ao cais adaptado, para depois, chegar-se aos ferrolhos dos alçapões em grade, que encerravam a saída dos aprisionados, ensaiando golpes de machado, moendo-os até à desintegração.

Entretanto, Runaekoi concentrou-se nos legionários da torre, anulando um à distância com a pontaria certeira de um dardo, e não deixando os restantes passar a espaço de maior manobra, retendo-os na estreiteza das escadas, em combate apertado.

Tongídio, Rubínia e Hermineu adiantaram-se sobre os soldados que observavam a outra margem em descanso sobre a amurada da proa. Os três primeiros golpes retalharam os três infelizes que se viraram sem oportunidade de reação. Rubínia atingiu ainda outro, algo hesitante quando confrontou com uma mulher.

Tongídio apanhou um dos longos escudos romanos, rodou-o na horizontal e projetou-se contra dois dos inimigos, atirando-os para as águas do Durio. Com um potente golpe, Hermineu fez voar o gládio contrário; no regresso do movimento da sua pesada falcata, desapareceu a mão do legionário e, a seguir, tombou o seu capacete, com a cabeça desmembrada do tronco. Os opositores de Runaekoi, ao assistirem à sorte dos camaradas, largaram as armas. Abençoados pelos deuses, acabaram também em mergulho no rio, embora debatendo-se com o peso da armadura.

- Rápido, movimentem esses remos; temos de nos afastar desta margem e ir em auxilio dos irmãos Kalaedónios, que estão a sacrificar-se por nós. – Lembrou, Rubínia, enquanto agitava, bem alto, o pano de burel preto.

Do outro lado, ouviu-se, ressoante, o ronco do chifre, em sinal. Após algumas baixas, perante um adversário mais numeroso, os guerreiros de Frágua refugiaram-se nos matagais, tendo cumprido a sua parte e deixando, agora, os romanos sem opositores.

Começava o segundo momento do plano brilhante de Aelcio.

 

Andarilhus

X : VI : MMXIII

publicado por ANDARILHUS às 17:52
Quinta-feira , 06 de Junho DE 2013

Por Ti Seguirei... (2.8)

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Deleitaram-se com as iguarias tão costumes, mas com travo marinho e fluvial. Ao queijo, às frutas silvestres e às carnes de caça, sem esquecer o pão de bolota, acrescia o peixe do rio fresco, o peixe salgado e os víveres do litoral: ameijoa, ostras, búzios e mexilhões. Tudo novidade para a maioria dos forasteiros, e sobretudo, o grande pasmo: um polvo cozido, inteiro, com um pouco de banha de cabra e ervas aromáticas.

Após o repasto e o farto convívio, o dia ia longo e não esticava mais do que para fazer planos.

- Antes que Endovélico procure o seu reino noturno, aproveitemos bem a luz do crepúsculo para verificar as condições do que falta para terminar o curso do Durio, a posição e o movimento do inimigo. Temos de conceber um plano para passar por eles, encobertos, e podermos continuar viagem. Este inesperado empecilho só dificulta ainda mais chegarmos a Aníbal dentro do prazo previsto. Os nossos companheiros contam com o êxito da nossa missão!

- Tens razão, Rubínia. Porém, julgo que não será possível, mesmo durante a noite, deslocar a vossa embarcação até ao mar, sem que os Romanos a detetem. Eles estão em alerta para a vossa chegada. Ao longo da margem esquerda há atalaias. Poderíamos tentar retirar o barco da água e, a pulso, carrega-lo pelo interior até à costa… Bem, se construirmos uma padiola de suporte que facilite o seu transporte por umas dezenas de braços…

- Frágua, escutando-te assim, parece-me ouvir Alépio, o grande estratega de Ribasdânia, a falar por tua boca. Vejo que se dariam bem os dois! – riu-se Tongídio, acompanhado por um sorriso rasgado de Aélcio.

- E já convivemos como irmãos de sangue. Na verdade, pertencemos à mesma geração de fraternidade de moços: cresci e troquei muitas ideias com Alépio. Cosua será gracioso e permitirá que reveja o meu amigo... Entretanto, vamos ao exterior da muralha e observar o lugar do rio onde escondeis o barco, e tentar definir um caminho para o levar rápido e em segurança.

 

Saíram de Kale, com a tarde já em estado avançado de desfecho. Endovélico empurrava o disco solar em queda suave, ao encontro do limiar do mergulho no misterioso lençol azul afogueado do grande mar ocidental.

De cima do escarpado, as perspetivas afiguravam-se bastante complicadas para aquilo que pretendiam. Ainda desceram um pouco nos patamares abruptos que corriam até ao rio. Porém, confirmavam-se as agruras, e logo perderam a esperança de carregarem o peso bruto da galiota através das ladeiras rudes e da vegetação entranhada. Com a ajuda divina, talvez o conseguissem, contudo, iriam precisar de vários dias para o executar, e provocariam incontida azáfama e ruído…

Nestas condições, arruinava-se a expedição. Preocupados, de rostos carregados e olhar estático, ficaram a contemplar o imparável Durio, prolongando um emudecimento geral.

Leuko, que se sentara junto a Caturnino, atalhou a meditação. Com os seus sentidos apurados, virou a cabeça na direção de um grande afloramento granítico que descia abrupto como uma cascata, rosnou e movimentou-se rápido para o ponto em que se focara. Quase pendurado no penhasco lítico, continuou com um rosnar abafado, reunindo os guerreiros.

Aleutério acalmou o lobo, mantendo-se todos em silêncio, na expectativa do que surgiria de baixo. Por momentos, não lograram escutar fosse o que fosse, apesar de Leuko continuar inquieto. Depois, e com uma progressiva ampliação, surgiram então distintos barulhos: alguém subia a escarpa, progredindo por entre a vegetação, quebrando-a, aqui e ali, para avançar.

Aproximava-se o que parecia ser um bando de sôfregos. Puseram-se em alerta, prontos para os receber. Esconderam-se nas ramagens, de armas em riste.

Aos sons do movimento, somavam-se já os gemidos típicos do esforço da ascensão. Quem arribava, vinha cansado e sem fôlego. Estava iminente o aparecimento dos estranhos.

E eis que, uma após outra, apoiando-se nas frestas e nos espigões do rochedo, amparando-se mutuamente, quer empurrando-se, quer puxando-se, três mulheres, muito coradas, suadas e quase desfalecidas, atingiram o socalco e prostraram-se pelo lajeado, já sem réstia de energia. Arfavam. Traziam mantos escuros de linho, com alguns rasgões, e semeados de restos de silvas, arbustos e cardos. Braços e pernas, sobretudo, testemunhavam que haviam passado sobre o lodo e a lama das margens do rio.

Ainda mal refeitas do cansaço, suportaram outra provação, encolhendo-se e apertando-se entre si, quando Leuko lhes saiu à vista, secundado pelos companheiros humanos.

- Que Vaelico nos proteja deste animal enfurecido! E vós, poupem-nos! Somos inofensivas e vimos em penitência pela desgraça do nosso povo. Precisamos de ajuda…

- Esta agora, e quais as razões que vos obrigam a aproximarem-se assim furtivamente de Kale? Não conheceis o caminho normal?... – perguntou Frágua à estranha.

- Somos dos Túrdulos Velhos, escapamos da servidão aos romanos, em busca de socorro. Estamos aflitos, os invasores têm-nos na mão. O meu nome é Monda e… - o choro compulsivo embargou o discurso, ainda ofegante, traduzindo a dor e a angústia que lhe tomava o sentimento.

Rubínia conhecia bem aquele estado de impotência e amargura. Segurou Monda e ergueu-a, abraçando-a, e logo puxou as restantes duas mulheres para um círculo de amparo e compreensão.

- Chefe Frágua, sugiro que regressemos ao interior dos muros e prestemos os cuidados necessários a esta gente túrdula. E, depois de recuperadas, será de todo o interesse ouvirmos o que nos têm a contar sobre a situação do outro lado do rio. – interveio Aleutério, com o seu ar calmo e vetusto.

- Sem dúvida, tanto mais que, se nos atrasarmos, em breve teremos de ir a tatear o caminho na penumbra. Garantirei os melhores cuidados a estas pessoas.

Aleutério apoiou Monda na subida restante, enquanto Rubínia e Runaekoi ajudaram as outras duas fugitivas.

 

Retemperadas as forças básicas, e após alguns momentos de reserva para recolhimento e acalmia do ânimo, higiene e tratamento de algumas feridas superficiais, reuniram-se para a refeição final do dia.

- Sentem-se nesse banco e comam tranquilas; aqui estão em segurança. – Frágua procurava transmitir confiança às túrdulas, enquanto as convidava para o repasto, indicando-lhes os respetivos lugares, na grande mesa do centro lajeado da casa do senhorio.

Deixaram que se ambientassem e se servissem de conduto. Com o decorrer da refeição e a propagação do convívio, as mulheres atenuaram os seus constrangimentos iniciais, entabulando conversas de circunstância, trocando conhecimentos e saberes, sobretudo com Rubínia e outros elementos femininos autóctones. Considerando ser a altura certa, Frágua tomou então a palavra:

- Monda e, sabemos agora, Noa e Bolena, a que se deve esta vossa aventura ou, pelo que me apercebo, desventura?

Fez-se silêncio de tumba no salão. As feições angustiadas regressaram, com sombras profundas, cravadas pela luz mortiça de candeias de sebo, apagando de sobressalto os tímidos sorrisos que iam florindo nos rostos das citadas. Entreolharam-se e ao fim de alguns momentos em que pareciam falar entre si sem verbalizar, Noa respirou intensamente e foi direta à questão:

- Escapamos das garras dos perversos romanos… Eramos cinco, mas duas – Lapéria e Tonga – caíram da jangada improvisada, quando esta se desfez em partes, e desapareceram nas águas do Durio. Nabia levou-as; que as tenha em tranquilo repouso…

- Desde que os desgraçados invasores ludibriaram os nossos guerreiros, atraindo-os com promessas de riquezas, de um novo mundo, pródigo em vivências modernas, impensáveis, por nós desconhecidas, que nos têm arruinado a existência, ameaçando a sobrevivência do nosso povo. – continuou Monda, perante a pausa de soluçar triste de Noa.

- … Contudo, sois descendentes da grande família Túrdula, originários do Sul da Ibéria. Quando ainda porfiava por terras cónias, soube da lenda que vos acompanha: há muitos solstícios atrás, os Túrdulos reuniram um grupo armado, conjuntamente com os Turdetanos, seus vizinhos, iniciando uma expedição de reconhecimento e conquista a Norte. Pelo que revela a narrativa, chegaram ao rio Limia e perderam a memória do regresso. Acabaram por assentar, primeiro entre o Limia e o Durio, e depois, definitivamente, onde se encontram ainda hoje, ganhando o epíteto de Túrdulos Velhos. Pelos vistos, o esquecimento provocado em vós pelos deuses também incluiu o olvidar da má fama que os romanos já granjeiam há muito nas terras à entrada do grande mar interior… - comentou Aleutério, concentrando um olhar meigo sobre Monda.

- Após várias gerações, a memória do nosso povo, seja por vontade dos deuses, seja por fraqueza dos Homens, não tem lembranças desses tempos longínquos. Tínhamos ouvido falar dos romanos, mas jamais os havíamos contactado. Por isso, quando chegaram há vários ciclos lunares atrás, facilitamos na confiança e, desprevenidos, fomos atacados violentamente, invadidos na nossa morada, nos nossos propósitos, na nossa liberdade e nos nossos corpos... – Monda irrompeu em lágrimas, sendo abraçada de imediato por Noa.

Coube então a Bolena continuar, perante o silêncio e o pesar galopante dos presentes.

- Desde o fatídico dia da submissão, os romanos mantém a maioria dos nossos homens jovens e as nossas crianças cativos: de dia levam-nos para trabalhar no nosso aluvião de ouro, explorado na ribeira Laborim; à noite encarceram-nos no convés inferior da galé maior, para evitarem tentações de resgate ou fuga. Dos restantes, sobretudo mulheres e velhos, escarnecem e abusam, dando azo às maiores barbaridades, matando aos poucos a vontade e a garra por nos mantermos vivos. Há mulheres que se atiram do alto do Pelar para não se sujeitarem às sevícias daqueles sebentos! Em resposta, para evitarem perder as “concubinas” que tanto apreciam, ameaçam-nos com a morte dos cativos… De tempos a tempos, alguém recebe, ou um membro decepado ou a cabeça decapitada de um seu parente… É terrível, não suportamos mais! Nós ficamos sem família e decidimos fugir; procurar ajuda para esta pestilência que nos aflige. Kale resistiu e conteve os invasores. Pedimos ajuda aos irmãos iberos… - não conseguiu segurar a agonia que a dominava, e ficou igualmente em pranto.

Rubínia recordou-se da predação e da depravação exercida pelos necrófagos Velenos sobre os Carpetas, destruindo quase completamente esta comunidade pacífica e produtora de criação e sustento.[1]

- Pelos bofes ofertados na pira de Belenos, assim sendo, o inimigo está em alerta total, talvez mesmo com espias nos matagais que bordejam a passagem até ao mar. Como é que vamos passar com a galiota?! – deixou escapar, Caturnino, interrompendo prolongada meditação geral.

- Tongídio é quem dirige esta expedição e decidirá os nossos passos. Porém, eu não consigo partir sem ajudar esta gente. Trebaruna, no meu íntimo, não me permite deixar em sofrimento estes irmãos iberos, oprimidos selvaticamente pelos invasores, sem procurar encontrar alguma solução. Acredito que a nossa luta contra o inimigo recomeça aqui!!... Depois, e com os deuses a soprarem em fole as nossas velas, recuperaremos a distância perdida, ao encontro de Aníbal, e ainda em tempo propício aos desígnios da Ibéria! – inflamou-se Rubínia, concentrando sobre si a atenção dos comensais, e rasgando um brilho especial no olhar das mulheres túrdulas.

Encrespados e com o sangue a fervilhar com as palavras da consorte de Tongídio, este viu-se quase refém de um cerco de gente sedenta por ação, sedenta por vingança, na espera ansiosa por uma resolução.

- Bem, que posso eu determinar com acerto, se adivinho em vós uma decisão comum, mais do que desejada, até por Frágua, conhecido por ser um dos mais ponderados?! E como posso eu contrariar a vontade da mulher que amo, e a quem os deuses entregaram intervenção fulgurante nos destinos da Ibéria?! – riu-se o caudilho – Claro que vamos amassar uns ossos àqueles filhos de lagartos parideiros!!!! Estou certo?! Conto convosco?!

Saltaram os bancos de meio tronco e os escabelos na trepidação do levantamento geral dos presentes, largando as mesas à investida de esfaimados e descarados cães. O reboliço foi tal, que pareciam já concentrados na peleja. A afirmação contundente da comunhão pela causa retumbou numa algazarra de adesão espontânea, crença e determinação.

- Muito bem, comprovo aqui a força que irradia de Rubínia e dos seus companheiros; entendo agora como foi possível a senda da vitória sobre um inimigo gigantesco. Acredito que os romanos continuarão a cair perante esta torrente inquebrantável. Honra vos seja feita; os deuses estão convosco! Kale será convocada para seguir os vossos planos! Agora, acabemos a ceia antes que os rafeiros devorem as melhores iguarias!

Uma risada geral selou o compromisso de união. O dia seguinte seria de grandes feitos.

Às portas do grande mar ocidental, a foz do Durio seria o chão do despertar das hostilidades, e a retoma da libertação da Ibéria e dos seus filhos, perante a voracidade romana. Começariam o resgate ali, em socorro dos Túrdulos; em breve, cuidariam de valer aos saudosos Alépio, Talauto e restantes prisioneiros em longínquos cárceres do inimigo.

 

Andarilhus

V : VI : MMXIII



[1] Ver: “Por Ti Seguirei: de um amor singular a uma pátria de afectos.”

publicado por ANDARILHUS às 21:23

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