Por Ti Seguirei... (2.10)

  

 

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Com o inimigo a farejar as orlas embrenhadas da floresta circundante, indecisos em perseguir os kalaedónios, a galera com os túrdulos – agora libertos e armados - abeirou-se da zona de combate, sem sobressaltos.

De imediato, lançaram-se à abordagem das duas embarcações com que os romanos haviam atravessado o rio, aniquilando as pequenas guarnições que as ocupavam. Entre os mais jovens autóctones escolheram as tripulações para afastar as galeras da margem e deixar, assim, as hostes inimigas isoladas e à mercê das contingências.

Rubínia acenou, então, novamente, com o manto negro. Em resposta, o chifre entoou a melodia sinistra que todos aguardavam. Ainda encobertos no denso arvoredo, os celtas manifestaram-se entusiasticamente bramindo gritos ferozes, acompanhados pelos sons metálicos martelados pelas armas.

Perante os sinais adversos e para não ser surpreendido por uma avalancha de confrontos individuais, quem chefiava a força invasora ordenou o recuo para área de clareira, e a subsequente formatura dos legionários em posição de defesa a assalto. Algo desviados pela demolição do povoado e ofuscados pelos fumos e poeiras surgidos com a batalha, não verificaram o que se passava nas embarcações, virando as costas ao Durio. Traçaram o seu destino…

Os romanos contavam com uma desvairada correria dos adversários ocultos pelas ramagens. E tiveram-na, arreganhada e temerária. Mas isso não os assustou, confiantes na sua organização e disciplina. A primeira onda de ataque dos iberos redundou em poucas baixas, embora em maior número para os nativos, devido à sua irascibilidade selvagem. Formaram-se dois blocos em confronto, suspensos pelo próximo movimento.

Eis que, então, Tongídio, a liderar os reforços improváveis, atacou a retaguarda dos do Lácio, surpreendendo-os e levando-os a uma momentânea confusão de formação.

Açoitados em duas frentes, e prestes a encontrarem-se cercados e sem fuga possível, o general-de-campo romano respondeu pragmático e pronto à difícil circunstância: através dos centuriões, ordenou o controlo da posição pela constituição dos conjuntos em tartaruga. Com isso susteve o impacto inicial, brutal, de um adversário que cheirava já a vitória. Depois, sempre em resposta espontânea à situação tão desfavorável, intentou a movimentação das secções militares agregadas em concha, em busca de alguma barreira defensiva junto à destruição caótica da zona urbana do porto de Kalae.

Procurava um refúgio defensivo temporário, enquanto pensava aguardar os reforços da outra margem, ignorando o que se havia passado do lado túrdulo do Dúrio e sem perceber, ainda, de onde haviam surgido tantos e frescos opositores. Como tal, tão pouco surgiriam os desejados reforços, como também jamais concretizaria os planos de criar barricadas defensivas.

Os grupos em tartaruga começaram a deslocar-se para as ruínas a passo lento e sempre em beligerância com os iberos, que os castigavam como abelhas assanhadas sobre os usurpadores da colmeia.

Os túrdulos, na eufórica vingança da escravidão sofrida, raivosos como uma praga divina, lançavam-se sobre os escudos dos romanos, desconchavando a ordem e a coesão do inimigo. Em pouco tempo, as formações em tartaruga desfragmentavam-se e cada legionário tinha de preocupar-se com a sua própria vida, individualmente. Para os iberos não bastava dar-lhes o selo de morte; havia que os fazer sentir cada chibatada, cada separação, cada mutilação, cada humilhação, cada violentação… Havia que os desossar ainda vivos!

Inferiores em número, e ainda mais no ânimo, os forasteiros defendiam-se como podiam. Alguns tentavam fugir mas não iam longe, trucidados por grupos de perseguidores, alguns destes ainda muito jovens mas já experimentados nas sevícias dos conquistadores.

Ao fim de tamanha mortandade, cruel represália e muito sangue derramado, os sobreviventes de Roma estavam reunidos em círculo, desbaratados, inquietos pelo desastre. O olhar cruel, predador, dos que os cercavam, denunciava uma passagem para o Elizium com muita agrura. Já menos de meia centena se aguentava em pé e com forças para segurar as armas. O oficial que restava, um centurião de nome Agrolato, mantinha a rígida postura militar e exigia o mesmo aos seus homens.

Perante esta manifestação de caráter e honra, Rubínia olhou para o marido e restantes camaradas da expedição, alteou a espada e mostrou que pretendia falar. A um gesto de Frágua, acalmaram-se as hostes enfurecidas, para a escutar.

- Kalaedónios e túrdulos, escutem-me! Todos nós podemos apresentar braçadas de motivos para odiarmos os romanos. Querem alargar os seus domínios sobre a nossa pátria, e não olham a meios para o fazerem. Temos tido sucesso em impormos obstáculos à sua entrada, graças à união dos povos da Ibéria. Hoje, aqui, uma vez mais, tal ficou demonstrado…Porém, há que sermos justos: estes homens vencidos vêm em nome de um povo, cumprir os seus desígnios e as suas ordens. Ei-los à nossa frente, a aguardar o golpe final. Estão hirtos e dispostos a morrer em nome da sua causa e daqueles que os enviaram para cá. Parece-me que, perante tão grande inferioridade, são guerreiros de grande brio. Peço a Frágua que decida para que sejam poupados e que lhes seja permitido seguir viagem numa das suas embarcações.

Muitos protestaram as palavras da guerreira, alimentados pelo azedume e o ódio que sustentavam sobre o inimigo. Frágua também se sentia dividido entre a ponderação razoável de Rubínia e o sentimento marcado dos que muito haviam sofrido às mãos daqueles ultrajantes. Cruzou olhares com alguns dos líderes da sua estirpe e dos povos irmãos.

- Compreendo as vozes de repúdio. Porém, entendo também Rubínia: não devemos ser como estes soldados da rapina, cujo destino julgamos agora; devemos dar-lhes também uma lição de clemência, e mostrar-lhes que somos povos mais evoluídos do que eles. Seja, deixemos partir estes desgraçados para que contem esta narrativa entre os seus e espalhem o que aqui aprenderam hoje!

Apesar de alguns resmungos incontidos, foi feita a proposta ao inimigo, que aceitou a rendição, com as devidas regras militares. Com as armas embainhadas e carregadas inofensivamente, os romanos foram encarreirados para uma das galés maiores, escoltados entre duas fileiras de túrdulos, sobretudo, que iam lançando impropérios e outros arremessos mais viscosos…

Entraram pouco mais de 30 legionários na embarcação, humilhados mas agradecidos aos deuses por estarem vivos. Receberam alguns mantimentos e distribuíram-se pelos abundantes remos disponíveis. No convés exterior seguiam apenas cinco homens para vigiar o horizonte e guiar a galera. Entre eles e no comando, Agrolato dava as derradeiras instruções para zarparem. Com a manobra assegurada, o centurião aqueceu a garganta e dirigiu-se, em tom audível, aos adversários que observavam a partida, na margem.

- Não me esquecerei deste dia. Voltaremos a encontrar-nos e, então, a sorte sorrirá de outra forma. Todavia, quando vos derrotar, saberei, também, tratar-vos com o respeito e a dignidade militar que me concederam. E deveria ser sempre assim: a guerra é necessária, mas a morte deve ser dada ou recebida com honra e utilidade. A ti guerreira, temos de agradecer a nossa vida. És certamente bafejada pela visão clara da sabedoria divina. Guardarei a tua imagem… Força nos remos, legionários!

- Romano, apraz verificar que percebeste os méritos deste dia. Agora, quanto a próximos reencontros, aprende também que se tal acontecer, saberás então qual o dia que os deuses destinaram para a tua morte! – gritou-lhe Tongídio, em resposta, e provocando uma risada geral entre os seus.

O próprio Agrolato sorriu, fez um aceno de saudação militar e subiu à torre da galera, que já apontava para o grande mar ocidental.

 

Aegídio e o seu séquito, a custo do sofrimento das montadas, chegara a Aegitânia numa celeridade jamais vista. Dado o conhecimento da situação a Sonim, a reação do caudilho maior dos lusitanos foi a expectável: “- Vamos ensebar as lâminas das falcatas no couro desses cães romanos!

Emissários saíram, prestos, rumo às tribos com quem trocavam laços de fraternidade, afinidade e amizade. A mensagem explicava as circunstâncias e convocava os povos iberos para, durante o período de um ciclo lunar, se concentrarem junto às portas de Numântia, e daí organizarem o avanço sobre Sagunto.

Por sua vez, Gurri passara palavra pelos povos do Nordeste da Ibéria e, ao contrário do que afirmara (perspetivando o que viria a ocorrer), não esperou, dirigindo-se de imediato para os planaltos que rodeavam Numântia com o exército que agremiara, reunindo-se ao arévacos.

Em breve, a capital arévaca assumia o papel que num passado recente havia sido entregue a Obila: o ponto de encontro e de comunhão dos povos iberos, por motivo de uma causa comum, na defesa das tradições construídas e transmitidas por muitas gerações de antepassados, e por um futuro em liberdade e decisão nas escolhas.

 

Andarilhus

XXVI : IX : MMXIII

 

 


publicado por ANDARILHUS às 16:57