Por Ti Seguirei... (37º episódio)

 

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A manhã do dia do solstício do estio apresentou-se convicta do seu simbolismo e importância para os xamãs vaticinadores. Prometia época prenhe de calor, o que maturaria a natureza em ondas de fertilidade e alimento. Era neste período que se assegurava o futuro, a existência (a experiência recomendava seguir o exemplo da formiga e recolher e armazenar sustento para os meses do frio).

Ainda bem cedo e já o Sol anunciava governar o céu e a terra como um escudo de cobre, polido imaculadamente até à exaustão. Recebeu os despertos de Obila e cercanias com todo o entusiasmo. Uns após outros, tomada a refeição matinal, dirigiram-se para o recinto dos jogos. O grande momento estava prestes a chegar.

Os socalcos das colinas que serviam de plateia começaram a compor-se, ocupadas pelos autóctones e as comitivas visitantes, assim como por curiosos de povoados próximos. As equipas competidoras reuniam-se e ordenavam-se no espaço que lhes estava destinado, e de igual modo, os juízes (conjunto de druidas, de várias proveniências). Um punhado farto de guerreiros garantia a segurança e a paz, entre espectadores e campeões. Faltava apenas o cortejo dos ilustres, políticos, militares e religiosos. Não demorou a mostrar-se no acesso á área dos jogos.

À frente, Talamo, acompanhado pelo Sacerdote Mor, portador do archote com a chama sagrada, recolhida no templo central do santuário. Seguiam-se os distintos de Obila e convidados destacáveis. A encerrar o desfile, um jovem, em vestes brancas e fita verde pela cintura, trazia, por corda dourada, um dócil e pachorrento boi, ele também pintado de branco e com uma grinalda de flores multicolores no cachaço. Todos os que conseguiam alcançá-lo procuravam tocar o bovino santificado, como meio de purificação e de obtenção de protecção divina.

Deslocaram-se para a tribuna, colocada em ponto altaneiro e privilegiado. Com a chama sagrada, o sacerdote acendeu a pira de consagração aos deuses. O fogo estaria vivo durante todo o torneio, elevando-se na atmosfera com um rasto longo de fumo. Chamou pelo moço que conduzia o animal. Com o auxílio de outros, fez ajoelhar o boi e atou-lhe as patas. O bicho não ofereceu resistência, parecia drogado com as ervas certas.

Seguiram-se as evocações e as preces, os gestos e os ritos, até que de uma das largas mangas da sua túnica surgiu um longo punhal branco, de sílex. Projectou no ar o movimento de subida e acelerada descida do instrumento central da cerimónia do sacrifício. Foi eficaz: o animal tombou para o lado sem sequer emitir qualquer som. O golpe fora perfeito. Os deuses aceitavam benevolamente a imolação fora do espaço do santuário e mostravam apreço pelos presentes e pelo evento. Os sinais eram excelentes.

Assomaram então à frente os representantes religiosos dos diferentes povos e exortaram igualmente aos deuses que professavam.

Findas as formalidades religiosas, Talauto tomou a palavra.

- “Iberos, sejam bem-vindos a este momento memorável!

Nós, vetões, abraçamos-vos em saudação. Sentimo-nos enobrecidos pela vossa presença e orgulhosos por receber este concílio dos povos da nossa grande pátria”.

Em uníssono, todos os presentes reagiram com diferentes sons, em resposta a Talauto, enquanto a música retomou, na sua toada marcial, com forte presença das gaitas-de-foles.

O Caudilho continuou: - “Reunimo-nos por estes dias para promover a amizade e a união. Já há muito que é tempo de terminar com quezílias e ódios antigos; apagar os conflitos amargos e o azedume e deixar que a disputa ganhe forma na confraternização, através da competição sadia, que promova a força, a destreza e a inteligência. Convido-vos a participar ou acompanhar os magníficos jogos que temos em plano. Deles falarei mais adiante.

Novo brado geral da assembleia, desejosa de assistir à acção. O entusiasmo era favorável ao negócio de vendedores ambulantes de cerveja, água, de alguns petiscos e até de pequenos objectos artísticos em madeira, osso ou cobre, com figuras alusivas aos jogos. Assim como, particularmente, para os angariadores de apostas, que não perdiam a oportunidade para potenciar a sorte.

Este torneio não tem razão apenas no elementar convívio de competição e diversão; tem também motivos extremamente sérios a suportá-lo. Motivos que nos convocam a todos e nos exigem uma posição comum, vigorosa, maugrado o destino da Ibéria estar em risco e termos em mãos a decisão de o evitarmos.

Desde sempre que invasores, de origens diversas, cobiçaram a nossa terra. De uma forma mais ou menos agressiva sempre logramos resistir. Agora, temos um inimigo imensamente perigoso e sobretudo mais determinado do que qualquer outro. Disposto a tudo, inclusivamente, a atiçar as nossas cisões e rivalidades ancestrais, para nos dividir e conseguir facilmente conquistar-nos. Refiro-me aos romanos… Com este evento, vamos também mostrar que não nos conseguirão dobrar e, que sim, seremos mesmo nós a terminar com as contendas que temos vindo a alimentar!

Desta vez, a assistência reagiu mais murcha, com alguns apoios, ouvindo-se igualmente alguns apupos. De facto, havia ainda muitos desencontros a tornear: povos que não pretendiam celebrar pactos de amizade com antigos inimigos viscerais e as simpatias enfatizadas pelos romanos, dadas as perspectivas de sucessos e vantagens da amizade com os estrangeiros. Talauto deixou que as manifestações terminassem e deu tempo para que o silêncio aparecesse e permitisse a reflexão de todos e sobretudo a atenção para o que iria dizer a seguir.

- “Para aqueles que consideram as minhas palavras vãs, deixo apenas um pedido: mantenham-se cépticos quanto à nova realidade e dispostos a assumir a defesa da Ibéria sob um comando conjunto, que unifique todos os patriotas. Tal vai ser necessário, assim vos digo…

Uma longa gargalhada de chacota percorreu as comitivas. Um qualquer homenzito, de uma qualquer tribo, a comandar os guerreiros de todos os povos?! Nem pensar! Cada clã só o permitiria se fosse o seu chefe a liderar todos, agora entregar as suas forças a um estranho?! Que grande gozo este vetão lhes dava. A risada continuava, condimentada por graçolas bem audíveis e gestos expressivos dirigidos ao orador. Cochichos e movimentos bruscos corriam pelos carrancudos caudilhos da tribuna, alguns pensando mesmo em abandonar a conferência.

Talamo levantou-se e apressou-se em apaziguar os ânimos e restabelecer a calma e a confiança: -“A todos sugiro a calma! O meu filho tem acerto no que diz, mas nada está decidido, como é evidente. Do perigo, só não o vê quem o pretende esconder atrás de um escudo. A questão não é se vamos enfrentá-lo; porque isso é seguro, pelo menos no que diz respeito aos vetões. A questão é como vamos reagir ao invasor. Seremos migalhas fragmentadas ou um punho bem cerrado, no qual cada povo será um dedo bem unido aos demais? Esta reunião serve para maturarmos sobre isso e ouvirmos todas as opiniões e…” E foi atalhado no discurso.

-“Nós, os arévacos, jamais nos aliaremos com quem quer que seja contra os romanos! Aliás, não sei porque insistes em apelidá-los de invasores! São melhor gente do que algumas escumalhas que se espalham pela Ibéria como cães esfaimados. Vejam os astures, animais dos montes que, com o gelo, descem à planície para pilhar galinhas. Pobres coitados! Ou os Lusitanos, que são tão rudes como os calhaus dos montes de onde foram chocados. São também uns ladrões! E porque não falar em vós, vetões, medrosos com a pressão dos vossos primos do Ocidente, andais sempre a tentar empurrar as fronteiras do território do meu povo… Quem dos presentes, se consegue assemelhar na virtude e grandeza dos arévacos? Todos inúteis! E querem fazer frente aos poderosos legionários do Lácio e a todo o conhecimento que com eles se desloca… Cambada de idiotas. Será pelos jogos que vos vamos mostrar quão ridícula é vossa insignificância e deixar-vos cheirar a nossa superioridade!

A intervenção de Areatavo quase provocou a revolta e a luta generalizada. Estava a conseguir alcançar os seus objectivos.

-“A quem chamas de pilha-galinhas, rafeiro dos romanos?! Porque não me mostras já a tua superioridade?” Gritou o chefe dos astures, a ranger os dentes e a empurrar quem o segurava.

Sonim, dirigente dos Lusitanos, nada disse. Deixou apenas escapar um sorriso sarcástico e fez o movimento de quem se retirava. Contudo, virou-se repentinamente e já com a falcata a brilhar, correu para Areatavo, que só teve tempo de se encolher, assim que viu a arma a descer direita à sua fronte. Ouviu um choque metálico. Quando olhou para cima, percebeu que Tongídio tinha desviado o golpe de Sonim e agora o segurava, afastando-o.

As comitivas estavam ao rubro e já se desafiavam. Algumas pedras voavam entre a assistência. Os civis de Obila e de outras paragens começaram a retirar-se. Os insultos corriam céleres e a gosto dos perpetrantes daquela irracionalidade geral. As tribos procuravam querela com quase todas as outras. Em pouco tempo, verificou-se que estavam ali as mesmas 3 facções que se haviam revelado no jantar: as duas que se opunham e a terceira, para já, neutra (mas com grande crispação dos astures).

Não se vislumbrava solução para a situação e o mais certo é que tudo terminasse numa pancadaria desenfreada. Os sonhos de Talauto começavam a ruir…

Porém, a providência tratou de inspirar uns quantos. Os juízes, druidas que representavam a diversidade daquelas gentes, chegaram-se ao centro do recinto e em círculo, de mãos dadas, começaram a entoar uma melodia cerimonial, de evocação dos deuses do concílio. Com o entoar do cântico, lentamente, começou a reduzir o ruído dos vozeirões da discórdia e do ódio. Calou-se a assembleia, finalmente. O respeito pelos anciães que comunicavam com os deuses e guardavam a sabedoria era imenso. E foi o que salvou a situação.

Um dos druidas avançou, como pêndulo do círculo, e falou: -“Os vossos corações e pensamentos estão completamente tolhidos por espíritos de malignidade; toldados pela oposição compulsiva ao outro. Como vemos que entre os homens não há possibilidade de pacto e harmonia, deixemos que os deuses revelem a sua vontade e que todos a aceitem, sob penhor de ser esconjurado aquele que for contra a voz das divindades!

Tragam outro boi, mas desta vez dos mais pujantes. Todos os chefes dos clãs terão de congregar esforços para dominar o animal, para que o sacerdote o possa imolar segundo os ritos sagrados. Temos dito, esta é a vontade dos superiores.”

-“Sábio conselho. Os vetões estão de acordo e acatarão as indicações do sacrifício. Quanto a vós, aceitais e jurais honrar o compromisso?” Perguntou Talamo.

 

Andarilhus

XIX : IV : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:41