Por Ti Seguirei... (44º episódio)

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A situação apresentava-se extremamente delicada. Como fugiriam dali? Entre eles e o espaço aberto tinham milhares de inimigos!

Talauto gritou para o exterior: -“Ao primeiro sinal de ataque vosso, estripamos este pavão emplumado! Pelas insígnias, deve ser um dos vossos maiorais. Querem sentir o cheiro das vísceras dele??!!! Quedem-se quietinhos aí fora!”

No exterior, dezenas de legionários concentraram-se em frente às duas entradas do pavilhão, prontos com pilluns e arcos. Os superiores conferenciavam. Ainda não sabiam bem quem eram os beligerantes, contudo, não queriam correr riscos com a vida de Quintus (embora a ambição de alguns não desdenhasse a morte do Cônsul como alavanca à promoção pessoal), e urgia resolver o problema com rapidez e a maior discrição possível. Uma vez mais, era uma vergonha para as legiões de Roma tais acontecimentos.

Tongídio abraçou Rubínia, ambos com sorrisos lacrimejados, mas sem trocarem palavra. Zímio estava um pouco mais rijo, mas ainda muito débil. O olhar expressava tudo: “”Salva Rubínia e dá-me uma espada; eu atraso-os…””

O sorriso entretanto empalideceu. O lusitano já transpirava por todos os poros: as correntes eram muito fortes e o machado não provocava a menor fenda no metal. Pensou cortar o pilar de madeira, mas isso seria fechar a ratoeira: se o pano do tecto abatesse, ficariam todos enleados nas suas dobras e cordéis. Começou a ficar arrepiado e crispado com a possibilidade de não conseguir libertar a amada e o amigo. Gurri pegou também em machado pesada e cascou com toda a pujança nos elos do laço de ferro. Para terror de todos, não havia forma do material ceder. As armas já estavam rombas e o tempo passava fulminante. Não demoraria muito a que ocorresse uma intervenção dos romanos.

Engolindo em seco e a gaguejar, pela mágoa sentida, Talauto puxou da sensatez e da frieza possível para resumir as circunstâncias: - “Embora não receie a morte, parece-me que devemos viver para podermos salvar mais tarde estes nossos companheiros. Por agora não há mais nada a fazer; temos… temos de os deixar…

As palavras do vetão, como adagas de misericórdia, cavaram profundamente a consciência da realidade. Gurri tapou os olhos e sentou-se ao lado de Zímio. Tongídio, branco como a cal e tremendo de nervos, segurou o rosto de Rubínia com as duas mãos e ouviu desta: - “Dá-me um beijo e vai, meu marido. Tens muitas batalhas para vencer. Nós encontrar-nos-emos novamente, aqui ou em qualquer outro lugar. Sabes que o nosso destino é ficar juntos para sempre. Segue, por mim, por nós…

- “Há que criar uma manobra de diversão, para ganharmos uma pequena oportunidade de fuga. Só com a inspiração dos deuses é que conseguiremos ter sucesso… Esperem, aquelas ânforas enormes parecem ter um óleo verde. Será que é para iluminação? Inflamável?

Experimentaram e ardia com bastante voracidade, logo que bem aquecido. De facto, estavam a tomar contacto com o azeite, resultante de uma experiência romana, por aplicação de técnicas latinas mais desenvolvidas na cultura das oliveiras, cujo estádio evolutivo na Ibéria ainda se encontrava algo rudimentar.

-“Escumalhas! Não sairão daqui vivos. Vou esfolar-vos a todos! Não toquem nesse líquido precioso. Vai ser razão de uma boa exploração destes territórios, sob a Lei Romana!”- Gritou, autoritário, Quintus.

Em resposta levou um murro de Tongídio, no qual reuniu toda a raiva que o consumia, deixando-o sem sentidos.

- “Rápido! Ensopem esses panos com o óleo e arrastem as ânforas para próximo da entrada. Este archote fará o resto. Gurri traz também essas arcas de madeira. Colocamo-los em volta de Rubínia e Zímio e assim estarão a salvo de armas de arremesso. Tongídio despe esse patife que puseste a dormir.”

Talauto afastou, o necessário, a cortina da entrada, fez uma trouxa com vários panos ensopados, pegou-lhe fogo e lançou-a contra os que os cercavam. Depois, replicou o gesto com outras mais pequenas, que atirou para o perímetro que se abria após a porta do pavilhão. Restava apenas colocar as ânforas cónicas a rebolar pelo chão na direcção da barreira de inimigos e das tendas mais próximas do campo. Tanto as mechas de panos colocadas nas bocas dos recipientes, como o azeite que se ia vertendo, incendiavam-se facilmente quando passavam sobre os tecidos ardentes e alastravam o fogo por tudo o que tocavam.

Quando os romanos se aperceberam da estratégia, hesitaram em manter as posições, prontos a disparar, ou afastarem-se à passagem desenfreada das ânforas. Inicialmente, esqueceram-se dos perigos de não travar a deslocação dos tulhas cerâmicas. Porém, assim que assistiram ao embate da primeira com uma das tendas e esta se incendiou como uma tocha, logo mudaram de comportamento, tentando parar os veículos de fogo ambulante.

Apesar de não apresentarem perigo de maior, em pouco tempo, o centro do acampamento romano estava lavrado por pequenos e dispersos incêndios. Concomitantemente, na zona, para além do período nocturno, crescia uma visibilidade cada vez mais escassa, dado o fumo produzido pelos materiais ardentes.

Era o momento de tentarem a sorte. As condições criadas talvez permitissem o êxito do plano. Despediram-se em silêncio e quase solenidade. Aproveitando o alvoroço e alguma folga no bloqueio, rasgaram a lateral do pavilhão e fizeram o possível para serem assinalados ao evadirem-se, no meio da fumaraça.

Os legionários presenciaram plenamente a fuga de dois dos insurrectos, que empurravam à força um outro indivíduo, facilmente reconhecível: Quintus.

O Centurião que liderava a força de resgate e aprisionamento colocou-se à frente dos soldados, formando barreira: -“Não disparem! Levam o general como refém. Vamos acompanhá-los à distância, até que apareça o momento certo de os apanharmos. Se são apenas dois, é porque o terceiro elemento ainda está na tenda! Comecemos por esse. Entretanto, vocês sigam os que se escapam e cerquem-nos. Não devem ir longe.”

Depois de mandar afastar todos os que estavam em redor do pavilhão, ordenou uma saraivada de flechas para o interior, antes de carregar em força. Lá dentro, o que encontraram causou o espanto geral. Não havia sinais de qualquer rebelde. A mulher e o homem iberos estavam deitados atrás das arcas de madeira, imunes das setas que se haviam cravejado naquelas. Com eles e, por isso, igualmente vivo, sacudia-se Quintus, semi-nu e apertado por cordas e mordaça. Haviam sido enganados!

Assim que soltaram o Cônsul, a primeira reacção que teve foi presentear o oficial com um valente soco no rosto, obrigando a cambalear à retaguarda.

-“Incompetente! Quase me abrias a porta para o Elizium, energúmeno. Não me mata o inimigo, mas antes os meus próprios soldados. Com gente estúpida assim, como venceremos alguma vez Aníbal?! Os rebeldes não são patrícios; são celtas dissimulados! E vocês é que são os bárbaros e não eles, que demonstram uma capacidade exímia de estratégia e de maturação intelectual. Mas, chega de conversa e persigam-nos. Capturem-nos e recuperem as minhas vestes e armadura. Vão, que não vos quero ver mais sem que me os tragam… vivos!

Com tanta dispersão e engodo, os iberos percorreram os lugares nevrálgicos do comando em busca de escapatória. Sempre acossados pelos legionários, procuravam desaparecer no labirinto de tendas, todas muito iguais, passando pelos mantimentos, cozinha e áreas de conferência ou os espaços dos diferentes generais. Ora desapareciam aos olhos dos perseguidores, ora voltavam a aparecer mais à frente. Entretanto, livraram-se das armaduras e ficaram apenas com as túnicas grenás. O que confundiu ainda mais os adversários.

Acabaram por entrar num novo pavilhão, já mais afastado do centro. Convenceram-se então que estavam nas graças dos deuses e com a certeza de poderem ultrapassar aquelas dificuldades. Tinham encontrado o espaço dos estafetas! Numa das laterais, confrontaram-se com uma grande estátua, cuja figura – provavelmente um dos deuses do panteão romano – apresentava asas nas sandálias e no chapéu, uma bolsa e um bastão com duas serpentes entrelaçadas e igualmente com asas.

- “Ó paspalhões, não podiam esperar pela manhã para virem admirar Mercúrio? Já não bastava o tumulto que há ali para a frente, ainda aparecem estes por aqui… Amanhã, levantamo-nos antes da alvorada para levar até Sekia as mensagens com destino a Roma. Toca a andar daqui para fora, queremos dormir.

Os iberos olharam em volta e de facto, para além dos 4 cavalos – que, para contentamento, já tinham reparado estarem prontos para partir, aparelhados e bem nutridos -, o que falava e mais 3 indivíduos descansavam sobre estrados revestidos com palha, um pouco afastados dos animais. Assim que os gládios mostraram o brilho e os desconhecidos se inclinavam para eles, os mensageiros esqueceram o repouso e desataram a correr, aos gritos, pedindo por socorro.

Quando, finalmente, lhes prestaram atenção e as tropas confluíram para o estábulo de Mercúrio, já os iberos abalavam à rédea solta, deitados ao máximo sobre o lombo dos cavalos para evitar alguma flecha dedicada, e desapareciam na noite.

A confusão, a distância para as cavalariças principais e inexistência de paliçada o muros altos facilitou a fuga a Tongídio e amigos que, apesar de saltarem o pequeno talude e fosso para a liberdade, deixavam atrás parte de si, cada um deles na sua dimensão específica.

Dirigiram-se aos passos escondidos para o interior da gruta que levava à cisterna, e daí ao poço. Retomaram os bens pessoais, deixados sob protecção de umas sarças, libertaram os cavalos e entranharam-se na passagem secreta.

Ainda a remoer na tristeza do fracasso da operação de resgate, mais custoso foi, pela manhã, quando abeirados dos limites dos torreões principais da cerca de Obila, contemplaram a reacção cruel dos romanos: na vanguarda das estruturas de defesa dos latinos, erguia-se um poste, com um segundo tronco em plano transversal, próximo do topo, no qual haviam amarrado Rubínia, pelos braços – abertos -, pelo pescoço, cintura e pernas - cruzadas. Um pequeno encaixe com um galho forte permitia firmar minimamente os pés. Tinham-na colocado na posição de desprezível criminosa, sendo a crucificação, umas das formas horrendas de punição. Porém, não a fixaram pelos membros através de cravos de ferro, como era hábito: queriam-na viva por, pelo menos, alguns dias, para evitar novas ousadias dos iberos enquanto não terminassem as linhas defensivas. Zímio estava agrilhoado ao fundo do madeiro…

(continua)

 

Andarilhus

XXIII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:37