Auto da oração do mafarrico aflito

GVicente.jpg

 

http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/mpalla/photo8.jpg

 

Um mafarrico, na sua vida mundana, exposto às tentações, à prepotência, à frieza, facilidades e garantias que lhe assistiam, empacotado, calibrado, chave-na-mão, encontrou a adversidade num elo quebrável, não previsto no contrato do inferno.

Confrontou-se com uma falha não informada no acordo, e encontrou a dor. Não a dor que lhe era aprazível (pelo sofrimento masoquista), mas a dor insuportável da pureza das coisas. A dor que dói. Aquela dor que não conseguia apelidar; aquela dor de que não lhe haviam falado; aquela dor que não constava no pacto. Simplesmente, a verdadeira dor…

A princípio lidou com o problema como mais uma questiúncula constante dos parâmetros convencionais, previstos com adequadas panaceias. Porém, as receitas de protocolo não funcionavam neste padecimento: encontrou um coração dentro de si.

Sentiu-se um diabo sem cauda, um poder ruido, uma estátua desmorona pelos pés ocos… E o que fazer? O contrato de purgatório não contemplava reclamações.

Vagueou. Vagueou entre a terra da mente e a planície da alma. Correu o estuário do espírito já quase insolvente e … esbarrou, novamente, com o coração que sentira. Não compreendia. Apenas sentia uma estremunhada aflição.

Rua após rua, pensamento atrás de pensamento, sentimento soluçado a sentimento, continuou a vaguear. E de tanto deambular, acabou por entrar numa igreja.

Não tinha jeito para a oração - palavras ou atos – mas, sentou-se no banco imenso de silêncio, tamanho de solidão e incertezas. Correu o espaço com olhar até se concentrar na figura cimeira, sobre o altar. Tremeram-lhe os lábios, merujaram os olhos. Sentiu uma incomensurável vontade de desabafar. Escutou, então, a Voz. Através da sua própria voz interior, alguém lhe falava:

- Mafarrico, procuras-me? O que fazes longe da tua vida mundana?

Não sabia o que responder, nem entendia bem o que fazia ali. E aquele nó apertado no peito…

- Senhores do lugar, estou confuso, não sei como lidar com esta estranha dor que me aflige…

- E como é essa dor, mafarrico?

- … Sinto um vazio, uma perda colossal, que julgo igual à que será a morte. O problema é que não compreendo porque o sinto. Deveria estar isento de sensações; assim o contratualizei ao entrar neste mundo.

Tinha uma vida pacata, constituída com todas as condições previstas, com tudo garantido. Agora, corro o risco de perder os que me estão mais próximos. Porém, não sei porque me incomodo com isso; na minha vida infernal aprendi que é tão fácil granjear novos amigos, constituir outras famílias. Agora, no entanto, e contra as regras que nos deram, cresce em mim esta fraqueza de sofrer e de não querer outros amigos ou outra família, mas desejar ardentemente manter os entes próximos que tenho. Estou em dilema de dúvida e confusão…

- E porque vais perder os teus entes “queridos”, mafarrico?

- Porque - dizem-me -, fui altivo, indiferente e afastado do meu agregado. Não apoiei, não dei segurança, afecto ou atenção. Mas, isso faz parte da minha natureza diabólica. Contudo, não deixo de os bem-querer e, mesmo parecendo longe, sempre os acompanhei de perto.

- E nada fizeste para remediar as tuas falhas e, assim, eliminares esse teu pesar? Se fores sincero com os teus próximos, se te arrependeres dos teus comportamentos e atitudes que os afastaram, e passares a cumprir com o que eles esperam de ti, deves conseguir terminar com essa tua dor.

- Sim, tentei e continuo a tentar, com grande dedicação, ganhar a confiança dos meus, convencê-los que mudei e jamais serei o mesmo, que tanto os magoou.

- Então estás no bom caminho…

- Não sei… Não sei se terei êxito (e este sentimento é que me acossa a dor e me deixa preocupado). As minhas palavras são recebidas com indiferença, a minha presença quase ignorada. Desviaram a atenção para outros, que aos olhos do conhecimento superficial - onde sobressaem as proezas, as simpatias, os troféus, os triunfos – surgem como anjos perante os meus entes queridos. Na verdade, se os conhecessem com outras experiências e mais profundamente, descobririam que aquelas gentes-novidade são diabretes como eu, com os seus respetivos defeitos e pecados… Mas, estão ainda dentro de uma aura de graça. Eu perdi-a.

- Ainda assim, terás de ser humilde e paciente. E autêntico. Mas, porque soluças mafarrico? Não está na tua natureza insensível a aspersão de lágrimas. A dor que te tem agrilhoado é realmente poderosa…

Levanta-se o mafarrico do banco da igreja, disposto a abandonar o lugar e o diálogo com a entidade superior. Roda para a porta, com os pingentes de cristal a escorrerem dos olhos. Estaca e grita para o altar:

- Jamais serei anjo, jamais terei as qualidades que outros têm. Mas, tenho uma forte vontade de me converter numa boa alma, prestativa, carinhosa e cuidadosa com os meus amigos e família. Preciso de uma real oportunidade para recuperar a credibilidade. Há dias que mudei, que faço os possíveis para ajudar em tudo, que converso, que manifesto sentido afeto, carinho e até paixão. No entanto, mantêm-me apartado, só, como se fosse uma vida paralela à principal deles. Tanto batalho e não consigo as suas atenções ou demonstrações de afeição.

- Tens de lhes dar espaço e tempo, mafarrico.

- É muito difícil - apenas apanágio dos teus santos – ter a temperança para suportar esta falta de resposta, de reação às minhas diligências de bem-querer, dia após dia.

Na verdade, estou por um fio; estou sufocado por uma amargurada depressão. Preciso de AJUDA! E talvez seja este estado de desespero que me trouxe a esta casa que sempre me foi apátrida. Recorro a todos os meios, porque estou AFLITO! Por mercê ou nem que seja por caridade, olhem para mim, olhem por mim. Nunca vi o chão tão próximo… SEGUREM-ME!

- Acalma-te mafarrico. O teu sincero desabafo será um sopro fresco nessa tua alma enovoada. Vai, deixa, por aqui, ficar parte dos teus tormentos. Arrependido e convertido em melhor pessoa, mereces a oportunidade. Auscultarei o coração dos teus entes queridos.

Agradeceu. Saiu cabisbaixo, ainda com o rosto embebido no soro salgado. O mafarrico que desistira da diabólica vida de purgatório, sozinho num mundo para si renovado, continuava com a tristeza da incerteza do seu futuro. Tinha sim absoluta convicção do que queria. Dependia dos seus entes queridos permitirem-lhe, acolherem, a chegada do homem renascido, recuperado no seu génesis.

Sabia agora que, na vida poderão ser sempre concedidas novas oportunidades. Quando assim é, não se deve hesitar: há que agarrá-las com total firmeza e comprometimento, sem perder tempo. No entanto, nas vicissitudes da vida, e na forma como encaramos os dias e convivemos com os nossos semelhantes, a melhor prudência será escutarmos atentamente o que nos solicitam, e mantermo-nos fiéis e diligentes quanto às nossas responsabilidades e, assim, evitar a necessidade de pedidos de (novas) oportunidades.

 

Andarilhus

XXII : V : MMXV

publicado por ANDARILHUS às 07:36