Por Ti Seguirei... (2.12)

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A situação manteve-se calma entre os tripulantes, embora com maior apreensão pela perda do conforto das vistas sobre solo firme. A chuva dava tréguas, mas o frio, particularmente o noturno, exigia maiores agasalhos e recolhimento aos espaços mais abrigados da galera.

Uma acolhedora fogueira, montada dentro de uma larga taça de bronze com 4 apoios em forma de patas de felino, e colocada sobre uma rija lage de xisto, era o centro de reunião daqueles que, no momento, estavam dispensados de serviço à embarcação.

No teto celeste, com a tresmalhação das nuvens, as estrelas brilhavam como se fossem buracos no véu negro que procurava encobrir a força da luz de vida do senhor Sol. Sem os obstáculos próprios do terreno e da vegetação, parecia que as estrelas desciam até ao mar, mergulhando naquele. Era ainda mais belo.

Também no afago da clareira iluminada pelo borralho, Rubínia enroscara-se nos braços do marido. Nesta calmia, Tongídio sossegava do estado de alerta e descontraía, mimando o ventre da mulher, onde residiam os seus sonhos mais queridos do vindouro. Pouco ainda se notava do estado de gravidez de Rubínia, porém, o pai radiante e esperançoso por um filho varão, conversava com a pequena vida em gestação como se já fosse um menino desenvolvido, prometendo-lhe grandes aventuras e ensinando-lhe as virtudes próprias de todos os grandes chefes. Rubínia ria-se das cândidas doidices do companheiro, assim como os mais próximos.

O cansaço começou por tolher a vigília de uns e de outros, obrigando-os a acomodar o sono, ou por ali, junto à fonte de calor, ou noutras áreas cobertas, tapando-se do relento.

Monda e Aleutério mantinham-se ainda acordados, ambos em silêncio, com o olhar concentrado no rubor das labaredas. Leuko estava próximo, deitado e com o focinho entre as patas.

- Aleutério, o que faz um nobre ancião – que deveria estar resguardado e mais em meditação do que em esforços físicos – a acompanhar uma missão destas, com tantos perigos? É para trazer algum cuidado e ponderação a estes jovens temerários? É por causa do braço com boa pontaria? Já me contaram a passagem do confronto com o urso – sorriu.

- Nem eu sei, Monda… Dizem que foram os deuses que me escolheram; a mim e ao Leuko. Nós tínhamos uma vida pacata em Tanábriga. E de rompante, o nosso homem sagrado resolveu envolver-me nas tropelias desta gente que só está bem a fazer correr sangue ou a morrer. Não entendo, mesmo. Agora vejo-me a seguir este destino, a regressar ao mar e… - Aleutério como que engasgou quando o pensamento se antecipou às palavras.

- E…? Pareces confuso, Aleutério, como se enfrentasses uma visão assombrada!

- …e, e a voltar a lugares e a tempos do passado, do qual fugi e que pensei já ter ultrapassado. Não sei o que me espera, quando…

Monda percebeu que tocara num ponto muito sensível para o ancião. Da reação de Aleutério, do timbre, das palavras e da expressão, mesmo no lusco-fusco, compreendia-se uma dor profunda, que ao mesmo tempo, era acompanhada por uma luta para a abafar. Monda recebia esses sentimentos mesclados, entranhando-os, tanto mais que ela própria carregava um sofrimento semelhante, constantemente açoitado na memória devido a um passado recente.

- Escuta, amigo: perdoa-me por te fazer relembrar… Não era a minha intenção…

- Atenção, vejam a poente! Uma luz que faísca ao nível do mar. E não é uma estrela, tenho a certeza! – gritou um dos guerreiros que estava em serviço de vigia, cortando a conversa dos dois que partilhavam a fogueira, e despertando todos na galera.

Alarmados, concentraram-se no convés. Entre comentários sobre manifestações do além ou a aproximação de monstros marinhos, mantiveram-se todos na amurada, na expectativa da evolução dos acontecimentos. A estranha luz era apenas um pequeno ponto ao longe, mas era bem visível.

- Se fosse do outro lado da galera, diria que seria uma fogueira de algum acampamento junto à costa, avistável porque se destaca bem na noite. Agora, deste lado… - cismava Taer, em médio tom de voz. – Mas, é claro! Aquilo deve ser outra embarcação! Rápido apaguem o lume na lareira da galera! Assim, como nós os vemos, também eles podem descobrir a nossa presença! Queremos passar despercebidos e temos um azar destes…

Na realidade, o ponto luminoso parecia crescer, devagar, mas via-se nitidamente melhor. O que significava que, o que quer que fosse, ou ganhava maiores dimensões ou – para apreensão de todos – estava a aproximar-se!

- Rápido Taer, dirige o barco para nascente. O que ali vem não chegará certamente com boas intenções. Se possível evitaremos o contacto. Não podemos perder tempo ou arriscar o nosso encargo. E quero todos bem despertos e prontos para o que for preciso. Aos remos e força! – ergueu-se a voz do líder, Tongídio.

Com o esforço na manobra da embarcação, o estranho clarão voltou a reduzir de intensidade e acabou por se extinguir, tão de repente como havia surgido. No sentido oposto, começava-se a vislumbrar no horizonte o traço da linha de costa, sobretudo porque já espreitava, tímido, o pronúncio da aurora, naquele fugaz momento de suspensão do tempo, em que a noite e o dia trocam uma respeitosa vénia, tal beijo apaixonado de dois amantes. O Sol nascente descobria o Oriente.

Ainda a braços com as limitações da escuridão, julgando-se já a Sul do perigoso entreposto romano e a salvo dos perseguidores noturnos, a ordem foi para abrandar o ritmo e passar à remada de cadência normal.

- Em breve estaremos visíveis para o inimigo. Tenha-se o máximo de cautela. Só quando puder observar os pontos de referência de terra é que poderei assegurar o ponto em que estamos. – disse Taer, enquanto forçava os olhos na expectativa de enxergar qualquer sinal que o pudesse orientar na penumbra.

O silêncio imperava a bordo. Os olhares cansados perfuravam as trevas dos sentidos e as da ansiedade, à espreita de algo que não fosse só o ondular do mar. De tal modo dominou a quietude de movimentos e de fala, que a audição passou a impor-se à visão.

Começaram, então, a escutar uma estranha agitação nas águas, em contraste com o normal serpentear das ondas. Algo, não muito afastado, mergulhava ritmadamente na superfície aquífera.

Os sons enigmáticos aportaram imediatamente os receios com a recente imagem do misterioso clarão. Todavia, ainda no breu da despedida da noite, nada se vislumbrava e, subitamente, desapareciam também os ruídos.

Nem o respirar ganhava sopro; pareciam estátuas dispersas no convés e colados às amuradas. Ouvia-se apenas o mar a roçar no casco da embarcação e, aqui e ali, a brisa a gingar entre os cordames mais tensos.

Hirtos e atentos, saíram do estado de quase transe, quando do lado oeste ecoou o grito: - Acender e armar!

Na negridão surgiu, repentinamente, novamente o clarão, agora em tamanho amplo, na forma de lareira similar à que tinham a bordo, com labaredas crispantes. Via-se agora, a duas centenas de braçadas, um navio de grandes proporções, mesmo maior do que a galera, apinhado de gente, que segurava o que se assemelhava a longos guiços, com as pontas afogueadas.

- Disparar! – escutou-se novo grito.

O céu pardo encheu-se de múltiplos pontos incandescentes que se deslocavam rápido na direção da galera ibera.

- São setas incendiárias; abriguem-se! Atrás da torre ou encostados à amurada. Rápido! – reagiu Rubínia, instintivamente.

- Recolham a vela! – completou Taer.

Mas, já não foi a tempo. O dilúvio de fogo castigou duramente o costado e o convés da galera. O grande pano quadrado ardeu calorosamente, queimando também aqueles que deambulavam próximo, com os farrapos incandescentes que tombavam junto ao mastro. Assim caídos ou por razão de serem atingidos diretamente pelos dardos pontiagudos, verificaram-se algumas baixas na tripulação.

O dia vingava, enquanto a embarcação ibera se debatia com um incêndio de crescente proporção. O fumo negro já se via a longa distância.

 

Andarilhus

XX : XI : MMXIV

publicado por ANDARILHUS às 07:47