Por Ti Seguirei... (2.14)

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Quando retomou os sentidos, o líder lusitano viu-se no tombadilho inferior da galera, deitado numa esteira de palha, com Caturnino a seu lado, ainda tolhido por sono profundo.

Runaekoi, despido da parte superior do sago de lã, expunha o peito e o ombro esquerdo enfaixado, e o braço esquerdo suspenso por uma cinta em linho, suspensa pelo pescoço. Deambulava entre as laterais do casco, resmungando para si. Próximo, acompanhando com o olhar aquela deriva sôfrega, estavam as mulheres da expedição. Todos os homens sobrevividos ao ataque encontravam-se agrilhoados nos remos, aos quais iam dando movimento ritmado, às ordens de dois dos marinheiros cilícios.

No convés da embarcação estava mais uma vintena de piratas, atarefados na execução das reparações possíveis após a destruição superficial causada pelo incêndio. Com madeiras, cordas e um pano de vela trazidos do seu navio, iam remendando e remediando os estragos. Ao mastro chamuscado acoplaram uma nova cruzeta, estando a jeito para receber o velame. Limparam o sobrado e consertavam partes fragmentadas da amurada.

- O que se passou? Por Nábia, que sede! – ressoou Tongídio, com a voz cavernosa e rouca, acompanhada de um catarro grosso.

Ergueu-se desajeitado, tomado por náuseas e tonturas. Desequilibrado e sem dar tempo para que o amparassem, foi trôpego até bater e apoiar-se no costado. Deixou-se deslizar, acabando por se sentar.

Rubínia e as túrdulas acorreram, levando-lhe água. O guerreiro saciou-se, mas a voz continuou amarga:

- Só me lembro de ser picado por algo que me lançaram… áh, já me lembro: foi um destes vermes com uma espécie de cana! Vai engoli-la, mald…

- Calma. Foi um dardo com uma poção venenosa. Apenas vos adormeceu. Caturnino também já desperta. – disse Rubínia, virando-se para o lugar em que Caturnino começava a mexer-se – Até a picada já quase desapareceu do teu pescoço. De facto, é uma arma estranha, mas muito eficaz.

 

Pelo entardecer, Zlaton desceu ao tombadilho, acompanhado por alguns homens fortemente armados.

O seu porte e a presença firme e segura impunham respeito. Assim que entrou, concentrou a atenções. Mesmo Tongídio sentiu a aura de solenidade que emanava do chefe dos piratas, mantendo-se em silêncio e quieto, junto a Rubínia.

- Quis o destino que se cruzassem connosco. Pela embarcação, julgávamos que iríamos enfrentar romanos e garantir um novo arsenal de armamento. Afinal, não são latinos, e por isso sereis poupados. Mas servirão para engrossar o pecúlio da nossa arte, pela perda da liberdade e a desgraça da condição de escravo. Sereis vendidos nas costas de Cartago, daqui a poucos dias. – determinou, Zlaton, em tom calmo.

- Espera!... peço-te… - gritou, primeiro, para depois amaciar o timbre, Tongídio – Também nós somos inimigos dos de Roma e temos uma missão. Liberta-nos; deixa que a cumpramos…

- É da natureza do mester que escolhemos granjear riquezas e apropriarmo-nos dos bens e das vidas dos outros, sem exceção.

- E porque protegeste, então, as mulheres que capturaste?

Zlaton aprumou-se e fixou Tongídio com o olhar, sustendo a respiração ao longo do pensamento que o mantinha concentrado, enquanto remexia no amuleto de prata que cingia ao pescoço.

- Somos piratas, mas comigo há regras de conduta a respeitar.

Sem mais, rodou e saiu. Deu instruções para que distribuíssem água e alimento aos prisioneiros. Havia que os manter em forma até ao mercado de escravos.

Debruçado sobre o remo, Aleutério soprava e mostrava-se incomodado. Transpirava, bufava, e balbuciava algumas palavras, impercetíveis.

Rubínia correu para o ancião:

- O que se passa Aleutério. Pareces com febre… Mas, o que dizes? O que dizes?!

- … O amuleto. O amuleto que ele tinha… Só há um amuleto assim… Fui eu que o fiz, há muito tempo, batendo a prata com o cinzel… Fui eu que o fiz…

Ninguém entendia o pobre do homem, que pensavam endoudecer, doente e em estado febril.

Mas, Monda recordou-se da conversa que tivera com Aleutério e aproximou-se:

- O que dizes faz parte dos lugares e dos tempos do teu passado?

Aleutério despertou da visão que lhe tomava o espírito, apossou-se da razão e resolveu contar o que o afligia, com sobriedade.

- O amuleto que Zlaton ostentava, e que tanto apertava na mão, foi feito por mim. Não tenho qualquer dúvida. É uma peça única, feita pela arte do amor que um pai tem pelo seu filho. O meu filho, Tudérico. A quem perdi, conjuntamente com a minha mulher Estefala, após um assalto de cartagineses. Durante o ataque os meus queridos desapareceram. Procurei-os e esperei longos dias para os voltar a ver. Acabei por encontrar apenas as vestes de Estefala no extremo de uma falésia. Julguei-os os mortos. Chorei-os, perdi a vontade de viver. Acabei por abandonar aqueles lugares, deambulando para Norte.

- Sossega Aleutério: ainda teremos uma oportunidade para recuperar o teu amuleto e as memórias que guarda, cortando o pescoço ao pirata. – à sua maneira, Tongídio tentava confortar o companheiro de infortúnio.

- Quão pueril era Tudérico quando o perdeste?

- Caminhava há pouco tempo… - respondeu Aleutério a Rubínia, deixando-a a pensar enquanto esboçava um sorriso sustido.

 

Pelo início da tarde seguinte, o ritmo da deslocação dos navios foi acelerado. Os cilícios mostravam-se atarefados e inquietos, fazendo grande rebuliço no convés. Ouviam-se as ordens dos oficiais e a pronta movimentação dos marinheiros.

- Devemos estar próximos do Grande Mar Interior. Estão a ajustar a cadência para passarmos as Colunas de Hércules durante a noite. É aí que se concentra uma grande força da marinha romana, controlando todos os navios que avistam. – explicou Taer.

Próximos do entardecer e já a vogar para Este, agora a bordejar a costa, acompanhando os seus contornos para não serem tão percetíveis às vigias de Levante, as galeras seguiam perfiladas, com as velas recolhidas e com os remos a tocar as águas plenos de pujança. Muitos dos piratas dormiam, preparando-se para a longa vigília noturna. Só se mantinha ativo o pessoal necessário para assegurar a viagem. Zlaton facilitava, para depois tirar o proveito máximo das capacidades dos seus homens nos momentos mais delicados, que se previam.

Como o destino gosta de zombar e enviesar os cálculos dos Homens, desta vez, os romanos provocavam a falência da estratégia militar de Zlaton, surgindo inesperadamente com 3 galeras de guerra, de grande porte, assim que os piratas contornaram um pequeno cabo.

Sarapantados pelo alerta vigoroso das vigias, os cilícios acorreram aos postos de combate, quando já as embarcações latinas cresciam na aproximação, alinhando-se numa formação que servia de barreira, obstruindo a passagem. O combate era inevitável: qualquer manobra para voltear, procurando a fuga em sentido inverso, deixaria as embarcações dominadas pelos piratas completamente expostas ao abalroamento pelos esporões das galeras romanas. Assim constrangido, Zlaton deu instruções. A galera capturada e com os reféns a bordo serviria de isco. Mandou avançá-la, enquanto preparava a embarcação principal, com a maioria da sua guarnição, para atacar as ilhargas dos navios romanos que se adiantassem para combate.

 

No tombadilho inferior da galera de engodo, enquanto alguns piratas se apressavam a amarrar com cordas todos os iberos que não estavam ainda agrilhoados a um remo, outros vibravam chicotadas sobre os remadores, instigando-os a aumentar a cadência, que permitisse à embarcação assumir a frente da frota.

Entre os agrilhoados no porão, o nervosismo aumentava com o avistamento das quilhas de bronze dos adversários. O drama do abalroamento e consequente afundamento do barco a que estavam presos passava na mente de todos.

Concretizada a manobra, ficaram apenas dois cilícios no tombadilho, enquanto os restantes subiram ao convés, para atrair e enfrentar os romanos.

 

Andarilhus

XIII : IV : MMXV

publicado por ANDARILHUS às 19:33