Odisseia
A vida e as suas mutações ao longo dos anos, embala-nos em momentos de felicidade e fere-nos em instantes de profundo flagelo de dor.
Na plataforma do destino, todos aguardam por transporte. Estás ansioso. Quando chegar a composição, vais ensaiar iludir as desilusões, vais tentar perder as tuas piores notas da realidade. Queres deixar no cais as baratas do infortúnio, que te consomem a despensa da alegria e contentamento.
A estação está a abarrotar de amargurados. Não sabes se conseguirás ludibriar os teus pesos e deixá-los esquecidos, para trás. Os teus e os dos outros, fardos, porfiam em trama para não descolarem dos seus anfitriões. Como parasitas desenvolvem o instinto da sobrevivência nos domínios dos seus padecentes.
Tudo mexe, como num jogo. Crescem as sombras, esbarram-se as sombras, empurram-se as sombras! Não há Sol, no seu clímax, que queime aquelas manchas negras e desgastantes. A atmosfera degenera com a espera…
Eis o metropolitano, fiável, à hora certa da rotina, cruel, àquela hora da vida. Não se afasta um milímetro do trilho bem demarcado, não tem um segundo de flexibilidade no instante.
Estás ali movido pela obrigação. Começas a cismar com a pouca liberdade que ainda te resta. Tens três soluções: fazes o que te exigem e entras no veículo; revoltas-te e recuas na linha que te apontaram; desistes, atiras-te para os carris e deixas-te triturar.
Já não há muito tempo para aturadas reflexões e decisões: Deixa-te levar pelo instinto! Ainda acreditas que os ventos podem vir a soprar de feição e solidariedade? E o que podes fazer para atiçares a chama da revolução?
Á tua frente abre-se a passagem para o interior da viagem… alguns, bem contados, momentos para cerrar os olhos e aniquilar o real em fumo espectral. Saltas lá para dentro! Afinal, a esperança ainda é inquilina no teu lar íntimo.
Entras, mas para fazer qualquer coisa, e já a partir dali. Os companheiros de jornada serão os primeiros a sublevar!
Estás inexorável, vais gritar! Levantas a cabeça e encaras a tua audiência de silenciosos… mas os olhos, aqueles olhos alinhados em militância da pobre expressão, rendidos ao vazio… Cada olhar, uma história muda; Cada suspiro, uma experiência a banir…
Assim, com tantos curvados e outros tantos vertidos pelo chão da desistência, como vais erguer novo mundo?
Recordas a infância e a contenção da consciência do mal e da dor nessa época de descuido e despreocupação. Não imaginavas, então, o mundo complexo e complicado que os teus pais filtravam com artes mágicas. Que robustos escudos foram para ti. O quanto agravaram e encaixaram na sujeição do orgulho, por ti…
Em cada rosto mortificado encontras novas razões para mudares de carruagem. O comboio é longo. Nos vagões da rotina não encontras pares. Contudo, o mito das carruagens tresmalhadas dos desalinhados não se esgota na terra do nunca. Elas existem, para os audazes e para os que mantém a fé num futuro diferente.
…. Abranda e pára. Chegados são os viajantes às paragens do destino. Apesar de nada despertares nos outros, tu elevaste a tua exigência pessoal, exorcizaste os teus fantasmas e definiste maior decisão no teu rumo.
Abrem-se as portas. Os demais saem para uma estação igual àquela que lhes serviu de partida. Tu sais para um lugar de luz e de invento.
O sistema que se cuide… vem aí a novidade!... a nova ordem…
Que bilhete vais tirar?
“Far beyond the black horizon
Beyond the things you know
Everybody got a destination
Everybody got a place
To go...”
[Sisters of Mercy:”Long Train”]
Andarilhus “(ª0ª)”
XVIII : IV : MMVII