Círculo d’ Encontro

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Pela tarde, já com o Sol em queda livre, bem para lá da fasquia do prumo do dia, a raposa tomava rumo entre folhas dormentes. Procurava enxotar a apatia molenga da tarde quente. Dirigia-se para a função a si atribuída nas memórias veneráveis do tempo. No teatro da fábula da vida recebera a astúcia para enredar o ingénuo lobo em tramas do mais fantástico ardil. Momento repetido vezes sem conta, como um conto sempre moderno.

Aquele lobo já deve ter bebido uns bons milhares de hectolitros da água de tolice para conseguir alcançar um queijo tão lunático (quanto a imaginação que o concebeu), lá bem no fundo do poço!

Porém, hoje, nestas artes indecifráveis do destino, tanto a raposa como o lobo chegaram demasiado cedo. Ainda não havia luar! E sem luar… não há queijo!

O lobo, algo tristonho – mais do que o habitual – rendeu-se à evidência:

- “A vida é tão triste que me distrai os passos. Estou cansado desta história e deste papel. Tanto para fazer, tanto para descobrir e aqui estou preso ao cadeado da rotina, do quotidiano que o escritor do fado me impôs. Que fazer agora, enquanto espero?...”

A raposa, de atenção matreira e ouvido apurado, escutou os lamentos do parceiro de cena. Pensou na oportunidade de representar outras travessuras, novas e diferentes, enquanto aguardaria pela actriz Lua. Abeirou-se sorrateira e despertou-o para a sua presença.

- “Passeemos...de almas dadas!”, disse a alegre e arguta raposa.

Não contava era com a resposta que recebeu: - “Ao luar do sorriso do céu azul…”.

– “Que brilha para lá da noite”, replicou a raposa.

- “E do amanhecer.” Suspirou o lobo.

- “Que desponta insone e febril”.

Fez uma pausa e retomou: -“Estranho-te, irmão lobo. Melhor, surpreendes-me. Tantos séculos volvidos e jamais te escutei assim. Será que estás diferente, ou estarão meus sentidos diferentes? Vejo-te renovado de vestes interiores, com um coração maior do que julgava…

- “…e com uma aurora de grande angular, puxada por um arco-íris tresmalhado!”, atalhou o lobo.

Fez-se um silêncio ainda maior…

- “Que se perdeu do seu vértice e deriva sem ocaso?” perguntou a raposa.

- “Sim, enquanto cresce em imponência e brilho…”

- “…e só precisa onde poisar o olhar”, adiantou-se a raposa.

Novo interregno contemplativo e de pasmo. Coube ao lobo cortar a pausa e insistir naquela inesperada troca de sentires.

- “E descansar o dorso que suporta o firmamento.”

- “Numa suave cama de folhas de milho descamisado…”

- “Com almofadas forradas a erva-cidreira e lençóis de rosmaninho em ponto de cruz.”

- “Onde se derramam os afectos?”

O lobo engoliu em seco, mas arregaçou a vontade e respondeu: -“E se amassam em delicadeza as carícias!”

- “Que sobram da pele prisão?”, insistiu a raposa.

- “… e do corpo caixão…”

 

Deleitava-se a raposa com aquele enfeitiçado prazer de descoberta de um ser que sempre (des)conhecera! – “Estou encantada, irmão lobo, por te saber assim, com sentimentos maiores e tão erudito de espírito e palavra…que sorvo ávida.”

- “Mas serena, e perene de fruto maduro...”

- “Com toque de seda e mãos de teia!”

- “E olhar de espelho cativante e odor de maçã canela, que tanto me encolhe em receio de rejeição”, deixou escapar o Lobo.

E continuou: -“É para que te recostes em sonho real, comadre raposa…”

- “Fazes-me sorrir. Isso é bom. Já não são necessários truques e enganos – com que te ignorei e com que me atalhei na atenção – para me sentir bem junto a ti.

- “O verdadeiro sorriso; um sorriso que não parece ter extremos e de forte espreguiçar muscular”, sorriu por sua vez o lobo.

- “Daqueles sem fronteiras, nem prisões”

- “…nem tristezas, anseios ou timidez!”

- “Porque bom é olhar e VER!”, gritou enfim a raposa.

- “Olhar pelas paredes dos enredos e das fobias; trespassá-las como se fossem de gelatina”

- “E construir novos alicerces.”

- “De um novo mundo, aproveitando apenas o que houver a aproveitar do velho continente”, completou o lobo.

 

- “Apagarei as más recordações e as peias que do passado trago. E se os deuses mantiverem o destino inflexível, ajudar-te-ei a beber a água do poço e a resgatar o queijo que nele não existe. Estaremos os dois iludidos, todavia juntos. Para lá das obrigações seremos quem quisermos ser”, sussurrou a raposa enquanto se aproximava do lobo.

- “Agora que nos conhecemos na essência e perfilhamos a partilha de uma sorte melhor, atulharemos o poço, para que o feitiço da Lua não nos cegue na condução da vida.”

 

Moral da história? Talvez, anda meio mundo a enganar outro meio mundo… porque não se dá ao trabalho de o conhecer na sua essência. “Matar” primeiro e perguntar depois, na sobrevivência da selva social…

 

Andarilhus e o próximo

“(ºvº)”

XI : VI . MMVII

música: The Cult: "Brother Wolf and Sister Moon"
publicado por ANDARILHUS às 17:45