Crónicas do Deus Vilão
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Com os ossos a tiritar, sobre um tufo de erva orvalhada, assim acordou.
Árvores possantes, de folheado espanto, dobravam-se para o epicentro da clareira, curiosas e – quem sabe – preocupadas com aquela estranha criatura.
A derradeira vez que dera por si estava na senda de casa, pachorrento e de silvo alegre. Agora, naquele lugar, sem saber como, em inédita confusão.
Esfregou-se forte para abalar com a comichão do frio, arrepelou o cabelo e fez vénia a tão distintas presenças arborícolas. Nunca fora tímido ou medroso e gostava de um bom desafio. Até do inaudito.
A clareira era ampla e bem visitada pelo Sol. Ficou absorto por longos minutos de azáfama quieta, perdido em contemplação e pasmo, até chegar a hora da rendição de guarda entre os astros no domínio dos céus e, logo após o abraço de sempre, presenciou a investidura da Lua, acomodada no trono intemporal da noite.
Sacudiu-se do torpor e engrenou movimento. Com a madrinha por cima a socorrer-lhe as passadas aluadas, seguiu pelo trilho que pior impressão lhe causava. Não sabia porquê. Talvez a proliferação de urtigas e silvas, talvez os grosseiros entulhos de pedra. Mas, era por ali, que o aguardavam…
Muniu-se da companhia da sombra e deixou-se levar pelos empurrões do azar.
O caminho era todo agitado, invulgarmente agitado. Não fossem as assumidas ilusões de óptica e começaria a desconfiar que tudo bulia, de facto. Não! Era a escuridão a ensaiar os seus olhos atentos e fantasiosos. Seria?!
Mantinha aceso aquele assobio alegre que nunca o deixava e desceu a vereda estreita e serpenteada. Apercebera-se antes mas não dera importância, por ser tão breve. Agora sim, nesta fase do percurso, menos denso e mais espreguiçado, identificava nitidamente um ponto escanzelado de luz ao fundo da força da visão.
Encarrilou outra passada e avançou o assobio para melodia mais ritmada. E de tal forma acelerou que começou a facilitar no descuido. Escorregadela aqui, tropeção ali e pontapé numa pedra… -“Aíí! Irraaaa!”, cortou a côdea negra do breu, uma voz desesperada.
Esbugalhou os olhos e procurou absorver todas as visões do imediato num só sorvo! –“Quem?! Quem está aí?! Ou melhor, aqui?”. Virou-se, rodopiou nos calcanhares, tentou ver com as mãos e até fechou os olhos com a esperança de enxergar melhor no escuro. Nada. Ninguém. Seria um daqueles espíritos endemoninhados que – dizem – correm errantes pela floresta? –“Ser de corpo e sangue ou alma, mostra-te! Ouvi-te perfeitamente. Sei que estás aqui!”. Já há muito emudecera o assobio e estacara a marcha.
-“Olha para baixo, tonto! Estou aqui. Acabaste de me agredir com um valente pontapé de enfiada.”
Ó espanto de morte, o diabo da pedra rebolava-se afastando-se dele para se posicionar ao alcance da comunicação sensorial. Uma pedra que fala e com locomoção própria! –“Hahahaha, vai-se lá saber: provavelmente, este calhau também come, bebe e tem casa e família!”, Refez-se, agasalhado pela firmeza da sua auto-confiança espontânea. E se aquilo existe, tinha de o conhecer, sempre fora curioso.
- “Tenho família, tenho. Aprisionada em retenção do ânimo”, suspirou.
-“Estás a brincar comigo, senhor pedreneira? Deixa-te de filosofias e diz-me que bruxedos me andam a fustigar a consciência das coisas e te dão o dom da palavra, acção e, pelos vistos, pensamento”…
-“Vou-te contar o fado dos seres e deste mundo”, disse-lhe, apontando, -“senta-te aí nesse meu primo rochoso, um dos que acreditou nos Homens”. E continuou.
-“Há muito tempo, quando chegaram os Homens à Terra, exilados compulsivamente pela raça dos Deuses, da galáxia dos sete sois, a que chamam Olimpo, todos os seres que aqui existiam dominavam as faculdades da comunicação e do movimento. O Sopro da vida acarinhara-os como mãe diligente que ama a totalidade dos seus filhos com o mesmo amor e dedicação. Desde sempre, tudo era animado, tudo tinha uma força e presença igual e equitativa no mundo, tudo era vida, em harmonia.
Infelizmente… chegaram os Homens. Traziam a disputa no peito e o egoísmo nas espadas. Logo quiseram repartir os punhados de terra entre si e instalar os primeiros reinos. Como tudo mexia e nada era estável ou estático, tiveram grande dificuldade em marcar limites e criar memória patrimonial. Os Homens são fanáticos pela posse e possuídos pela ambição temerária da riqueza, do sustento do ego com o protagonismo e o ósculo da vassalagem.
Os Homens apreendem rapidamente as circunstâncias e na crueza da sua insensibilidade e desapego à virtude e moral, traçam maquinalmente planos astuciosos para dominarem o mundo. Engendraram um esquema para conseguirem os seus fins. Tinham de acabar com tanta vida: Todos aquelas criaturas irrequietos, em constante alteração das paisagens, de passagem entre lugares. Era um excesso e um obstáculo aos seus senhorios, à sua prepotência!
Os primeiros reis dos Homens, sorridentes, amáveis, seduziram os demais seres, pedindo-lhes um dia de inércia e silêncio para que a sua espécie pudesse estabelecer-se pelo território, segundo os ritos e os costumes que praticavam. Matreiros!
Na sua ingenuidade, foram muitos os que se devotaram à predisposição de ajudar os Homens, expondo os seus espíritos, tão simples, tão humildes… E ficaram imóveis e na mudez, por um dia.
Sem piedade ou hesitação, os xamãs das tribos humanas iniciaram cedo a evocação das artes mágicas, lançaram medonhos feitiços e capturaram aqueles espíritos sem defesa. Pelo Sol perpendicular já haviam espoliado todos os de boa-vontade. Roubaram-lhes o ânimo, o vigor, o alento. Impuseram-lhe o vegetar, o sono o adormecimento, a contemplação sine die, o absorvimento. O reino vegetal emudeceu e estacou; as espécies animais – mais resistentes – sofreram efeitos colaterais, passando a deslocar-se de formas diversas e a expressarem-se em linguagens múltiplas e inconsistentes; os minerais, salvo raros casos, ficaram completamente inanimados… Que dia terrível. Os Homens acabaram com o equilíbrio espontâneo e ao longo dos tempos têm a crueldade de explorar estes seres sem defesa, estropiados e cerceados da sua liberdade e direitos naturais”. A pedra engoliu em seco.
Ele, pálido e mortificado como se o céu lhe tivesse caído em cima, ergueu os olhos e gaguejou baixinho: -“Desculpa. Desculpem todas estas ignomínias que me relatas sobre os meus. Não haverá alguma forma de desencantamento destes pobres que padecem há milhares de anos?”.
-“Talvez”, respondeu a pedra. E continuou: -”Os cativos estão retidos no lugar que daqui vemos com magra luz. É o Poço dos Espíritos. O buraco escavado nas entranhas da terra onde as bruxas e feiticeiros dos Homens mantêm os espíritos no isolamento escuro e perene, encerrados indefinidamente. Os da minha família também lá estão.”
Ouviu-se de novo o assobio em timbre intrépido. –“Anda Pedra, vamos espreitar esse lugar!”.
(continua)
Andarilhus “(º0º)”
XXII : IV : MMVIII