Por Ti Seguirei... (1º Episódio)
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A hora era já tardia. No horizonte, numa repetição que se fizera hábito, a ansiedade propagava-se pelo crepúsculo. Ao tombar do sol, esvaecia por mais um dia a esperança da chegada de notícias.
Rubínia, lá bem no topo do promontório que definia o centro do povoado, olhava para a porta Este, bem demarcada no terceiro e mais exterior pano do sistema amuralhado de pedra ciclópica. Não sentia a presença da azáfama dos transeuntes ou as brincadeiras de algumas crianças, empenhadas em esgotar as últimas energias do dia, nem tão pouco o crescendo do vento e a chegada do frio.
Viam-se já os primeiros fumos a libertarem-se por entre o colmo dos telhados das típicas casas de planta redonda. A noite começava a ser recebida. O pão de bolota, o leite e a cerveja, o queijo e a carne preparada com efusões de ervas silvestres convocavam as cansadas gentes para o conforto espartano dos lares. Os campos receberam a atenção vespertina do amanho e os rebanhos, de úberes carregados, já se encontravam recolhidos e salvo da rapinagem de lobo, de duas ou quatro patas…
Rubínia prolongava a sua vigia por quanto os seus olhos conseguissem atinar com alguma imagem ao longe, na penumbra. Somavam-se os dias de espera e mais prolongada ficava a vigia; regressava a casa cada vez mais tarde, para tratar dos afazeres domésticos. Já lhe chamavam a estátua de olhar vítreo. O Conselho de Anciãos decidira mesmo da não necessidade de atalaias sobre os campos e caminhos que vinham de Este: Rubínia cumpria essa função. E com a falha de homens devido à guerra, os que existiam deveriam ser bem aproveitados nas múltiplas tarefas comunitárias.
Este entardecer seria todavia diferente dos que se haviam arrastado penosamente no último ano. Rubínia, quase a ponto de deixar a guarida, esticou-se em frente e estrebuchou. Uma nuvem de poeira surgiu quase tão confusa como o próprio escurecer. Teve aquela sensação: Hoje teria novas! Foi como um sussurro de Endovélico a garantir-lhe a chegada de um mensageiro, que ao fundo já subia para franquear a entrada da fortificação. Daí, o estranho cavaleiro, calcorreou o labiríntico de ruelas até ao edifício maior, o lugar de reunião do Conselho que governava Tanábriga.
Correu, correu desenfreada para a Concílio dos Ilustres. Ainda viu o estranho a entrar, seguido pelos dirigentes da citânia – Chefe, anciãos, membros distintos – e a porta a cerrar-se após aqueles. Estacou à entrada, tal como o faziam inúmeras pessoas, umas por curiosidade, outras por igual ansiedade.
Pelas conversas alteradas dos companheiros do instante percebeu que aquele visitante vinha do extremo Nordeste da Ibéria e, apesar de sedento e rouco, ainda balbuciara algo como: “Eu vi-os! Arrastavam-se em fileiras…”. Ó desgraça! Em fileiras andam os soldados… mas não se arrastam… Em Rubínia cresciam ganas de irromper pela reunião. Chegou a forçar a entrada, contudo susteve-se de sobrancelhas cerradas e a morder o lábio, face à oposição dos dois guardas. Começou então a deambular em frente da edificação, para todos os lados e sem grande cuidado com os demais que por ali se mantinham.
Não foi por muito tempo. As fortes tábuas de castanho abriram-se acompanhadas de sonoro ranger. Aegidio, chefe daquelas paragens, olhou em volta e conseguiu ler a amargura estampada nos rostos dos que aguardavam. Com a frieza e a ponderação de um líder, comunicou: “Os nossos gloriosos guerreiros têm sido dos mais bravos a acompanhar as façanhas de Aníbal. Por muitas campanhas lutaram ferozmente pela liberdade da Hispânia face à prepotência insidiosa dos Romanos. As nossas armas somaram êxitos até que o exército do temerário Aníbal caiu numa emboscada montada pelos Romanos e pelas raposas traiçoeiras que são os seus aliados Aquitânios e Vascões. Nas passagens tortuosas das gargantas dos escarpados pirenaicos esperaram pelos nossos valorosos, como cobardes escondidos. Muitos morreram, a chacina foi horrível. Alguns escaparam e andam foragidos e dispersos pela Gália e Hispânia.
Alépio, do clã dos nossos vizinhos Brácaros, foi um dos felizes que manteve a vida e conseguiu chegar até cá, com grande sofrimento, para nos relatar este infortúnio. Temos de ser fortes e preparar as defesas. Que Larouco tome em seu cuidado os nossos desígnios. Os Romanos devem ficar satisfeitos e quietos com esta vitória. Mas podem também iniciar aquilo que já há muito almejam: dominar a Lusitânia e todas as demais terras da fecunda Ibéria. O Conselho vai reunir-se e deliberar o que fazer a seguir.”
Rubínia ouviu e ficou naquele estado de estátua de olhar vítreo, caiu de joelhos e as lágrimas começaram a correr grossas pelas faces, formando um colar contínuo de pérolas cristalinas. Nunca mais veria o seu estimado marido, Tongídio, por quem tanto tempo havia esperado para abraçar. Depois de muitos e muitos meses fixada no horizonte, em poucos minutos perdera a razão da sua preocupação e apercebera-se da inutilidade da preocupação: por mais que montasse guarda aos trilhos do Leste, jamais o veria a chegar…
Pela manhã ainda Rubínia permanecia junto do lugar onde o seu chefe lhe apresentara a morte e lhe entregara umas quantas pedras para construir a sepultura. Já não tinha razões para continuar viva.
Foi quando se abriram novamente as portas do Concílio dos Ilustres e saiu Alépio, já recomposto para reiniciar a viagem até Brácara. Uma noite de repouso e bom alimento rejuvenesceram-no. O semblante carregado é que teimava em perdurar.
Rubínia, assim que o viu, aproximou-se e disse-lhe: “O meu marido fazia parte da tua hoste. Apesar de serem em grande número, talvez te lembres dele. Tinha algo que o marcava. O meu nome é Rubínia e o meu marido é Tongídio. Ele tem uma tatuagem circular azul na face direita e uma outra com a figura de um urso, ao longo do braço direito. Usa também umas vírias de ouro com incrustações de pedra azul-turquesa. O escudo e a falcata também estavam assim adornados. Viste alguém assim?”
Alépio manteve-se em silêncio, contemplativo, para depois responder: “Lembro-me sim. E o nome seria suficiente para o identificar. Tongídio combateu a meu lado inúmeras batalhas. Aníbal soube respeitar a origem dos seus homens, colocando-os lado a lado por proveniência. Nós servíamos no mesmo flanco. O teu marido, com a força do urso tatuado, brandiu a falcata em sinal de morte para muitos inimigos. Sempre foi um dos guerreiros mais formidáveis. Nós éramos tão amigos quanto uma guerra permite o crescimento de uma amizade. Foi também por o admirar que por aqui passei antes de entrar na minha própria cidade.” Olhou para as nuvens calmas e ficou novamente contemplativo. Retomou: “No dia fatídico da tragédia, Tongídio, generoso de força e companheirismo, acudiu a todos os lados da batalha. Conseguiu animar os companheiros e permitir assim a fuga de muitos, resistindo e atrasando os algozes. Graças a ele e a uns quantos de alma tão grande como a dele, a ruína não foi total e o exército conseguiu salvar uma chusma de gente experiente e mesmo Aníbal.
Após a fuga, o general enviou uns quantos homens disfarçados às cidades e lugarejos vizinhos onde romanos e aliados relaxavam e se divertiam após a vitória. Queríamos saber o acontecera aos nossos bravos que se sacrificaram por nós. Na vila onde estive a espionar soube que muitos foram capturados. Lutaram até desfalecer, ou de morte ou de fadiga. Os romanos falavam sobre eles com respeito e admirados por tanto vigor e determinação. Tanto que os Cônsules decretaram que os prisioneiros não seriam executados. Pelo contrário, seriam enviados a Roma como escravos e ingressariam na escola de gladiadores da república, para mais tarde entreterem as multidões com a sua mestria e arte
Alépio sorriu e estendeu o braço para levantar Rubínia: “Portanto, mulher do grande Tongídio, a tua esperança não pode empalidecer. O teu homem está longe, mas vivo. Em Roma o encontrarás, provavelmente.”
Rubínia lançou fulminante olhar sobre o trilho que segue para Este e sorriu também.
(Continua…)
Andarilhus “(º0º)”
XII : VIII : MMVIII