Por Ti Seguirei... (3º episódio)

 

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Praticamente não descansou, ansiosa com o momento que marcaria o minguar da distância que a separava do seu estimado. Por ela, nem sequer teriam dormido, arrancariam o quanto antes.
A manhã revelava-se fresca e com uma neblina húmida e ténue. Lá no alto do povoado, no sítio do costume, Rubínia contemplava as chaminés de fumo que se escapavam pelas frinchas do colmo das casas e que, extraordinariamente, multiplicavam-se em número pelo fumegar de muitas dezenas de fogueiras do acampamento da força militar, espalhado pelas redondezas da citânia.
Cerrou os olhos e imaginou-se de volta, feliz com a família reunida. Fez uma libação e mastigou umas quantas preces. Olhou para a banda do oriente e respirou forte. Logo arremessou a sacola tiracolo para as costas e fez sinal a Zímio. Aquele pegou na equipagem preparada para a viagem, aproximou-se e começaram a descer a ladeira em direcção ao centro do aquartelamento, seguidos pelas montadas.
Alépio saudou Rubínia com um largo sorriso.
-“Tu e Tongídio sois bem merecedores um do outro: incansáveis e mesmo indomáveis!”
- “Que os deuses te confiem um dia perfeito, Alépio. Cá estou para vos seguir enquanto o nosso caminho for comum. Comigo vai Zímio, servo de longa data da casa de minha família. O meu pai confiou-mo e eu confio nele para me auxiliar nesta demanda. É um amigo.”
Zímio, um africano pujante, era, desde há muito, o braço forte – literalmente – da segurança dos negócios de Físias. A idade já denotava rugas no vigor de outros tempos, porém qualquer redução na habilidade física era compensada fácil e exponencialmente na calma e astúcia acumulada com a experiência. Não passava despercebido e não escondia que poderia ser um grande e letal desafio para qualquer adversário.
Alépio saudou fraternalmente Zímio:- “Ao amigo da família de Tongídio recebo-o igualmente como amigo”.
Zímio retribuiu o cumprimento e manteve-se em silêncio.
-“Rubínia, partiremos logo que termine o recolher do acampamento e todos estejam em condições de receber ordem de marcha. Não demorará muito. Entretanto, alguns batedores seguirão antes, para sondarem os caminhos por onde passaremos. Teremos esta precaução como prática corrente.”
O sol pouco subira no horizonte e já soavam as cornetas chamando para a partida. Aegídio abraçou Alépio, saudou individualmente alguns dos seus conterrâneos e exortou todos à vitória, desejando recebê-los de regresso e em triunfo na sua comunidade. Entre gritos, algumas lágrimas e grande alarido marcial, a hoste pôs-se em marcha. Retumbavam os tambores, enfeitiçados pelas melodias agudas das gaitas-de-foles. A poeira levitava pelo ondular do caminho.
Sentiam-se já as mutações marcantes do final do estio e Alépio queria chegar junto do grande General antes que o clima obrigasse a montar quartéis de inverno.
O primeiro destino seria a capital dos Vacceus. Alépio tinha alguma esperança na conversão daqueles para a causa de Aníbal. Uns e outros nunca se haviam dado bem ou coexistido em paz, mantendo-se mesmo em constante escaramuça, mas agora com a ameaça romana talvez fosse possível uma aliança entre Vacceus e Púnicos. A sedução da conquista e do saque seria um bom aliciante e mote de conversação…
Os primeiros dias decorreram sem sobressaltos. Passaram as fronteiras lusitanas e entraram em territórios dos Astures. Aí vastas florestas de densos carvalhais garantiam a frescura da jornada diária e o abrigo nas noites frias e de notícias de precoces geadas. Porém, o arvoredo também tapava as estrelas, a lua e alguns sonhos que iluminavam a imaginação de Rúbinia. Desde que partira, falara algumas vezes com Alépio – e não conversara mais porque aquele andava ocupadíssimo com a liderança das tropas – e dialogava quase em exclusivo com Zímio. Na verdade, eram praticamente monólogos: Zímio só soltava monossílabos, não era sua arte a comunicação.
Num desses momentos de conversa muda, Rúbinia lamentou-se: - “Estou triste, Zímio. Não se trata apenas de dizer que “estou triste”; estou de facto triste. É raro (até fui surpreendida, porque já não me lembrava) e muito complicado. Por vezes, estou aborrecida, mas isto é algo que supera fortemente o enfadonho. É algo que parece marcar e deixar rastos para a frente. Se há tempos te disse que estava com um mau pressentimento de que algo ia ocorrer. Hoje estou com a sensação terrível de que algo ocorreu. Deve ser desta minha cabecinha doida, mas tenho o sentimento de que algo mudou irremediavelmente. O sentimento de que cheguei a mais um ponto de viragem. Talvez seja hoje que assisto à hecatombe definitiva dos traços do meu mundo.
Não sei o que é exactamente, mas domina-me e desperta as minhas defesas, as minhas tropas para a batalha: país arrasado; há que reconstruir o território e povoá-lo de novos habitantes e seres de toda a espécie.
Espero que este seja mais um equívoco do meu pensamento destravado… sinceramente.
Padeço de saber o que quero mas ter de não querer o que sei”.

(continua…)

Andarilhus “(º0º)”
XXII : X : MMVIII
 

publicado por ANDARILHUS às 22:19