A penumbra dos calados, imóvel e retraída, foi violentamente lacerada por uma estridente gargalhada: Gurri deixava que as lágrimas marejassem nos seus olhos azuis, enquanto ria impulsivamente, entre soluços.
Havia ali algo de louco, algo de inédito! Aquelas gentes, já tão curtidas pelas vicissitudes da vida e dos caprichos do destino, nunca tinham presenciado nada assim. Era irreal! Nem ao mais endemoninhado o lembraria. Primeiro, a mulher que esbarrou com todas as regras do bom trato e catadura social, lançou suspeitas sobre os convidados e propôs-se a morte quase certa. Agora, um chefe guerreiro, extremamente sisudo e estranho a sorrisos, que após ter sido inquirido, acusado e desafiado, simplesmente liberta sonoro sinal de satisfação, mostrando-se divertido com a incrível ocasião!
Alépio sossegou um pouco. A situação não iria passar de uma brincadeira bem-humorada, apesar de ter sido um grande risco o assumido por Rubínia. Gurri parecia tolerar a ousadia daquela e que tudo iria acabar com um valente brinde. Mas…
Já um pouco mais calmo, o vacceu despertou a estupefacta assistência: - “Não há dúvida, Tongídio soube escolher acertadamente a companheira. Jamais alguém me confrontou assim, homem ou - muito menos – mulher, no entanto, parece-me que estás favorecida e iluminada pelos deuses e isso obriga-me a dar-te especial atenção e condescendência. Muito bem, estou disposto a aceitar o teu desafio para duelo e aprovo as condições que propuseste”.
Levantou-se um burburinho nas mesas. A coisa não ia ficar por ali! Anunciava-se o combate e Rubínia estava, no espírito de todos, com a sorte traçada… literalmente traçada.
- “Não o posso permitir!” Bradou Alépio.
- “Nem eu!” - gritou o sempre discreto Zímio – “Lutarei no lugar de Rubínia!”
- “Admiro o vosso empenho, amigos, mas sou eu quem tem de combater. Fui eu que desafiei Gurri. Tebaruna está comigo, em nada vos preocupeis”. Interveio Rubínia, com aquele olhar maroto de quem conseguiu o que queria.
- “Exactamente, terá de ser Rubínia a participar no duelo.” – Ajuizou, Gurri – “Na condição de desafiado, tenho porém algumas disposições a exigir. Desde logo, definir que o combate terminará, em extremo, quando um dos beligerantes ficar ferido e ostente sangue, mesmo que o derrotado queira continuar. Depois e de acordo com as leis vacceias para estas ocorrências, eu poderei designar alguém que lute por mim, garantindo, todavia, atribuir-me a mim, o provocado, as consequências da vitória ou derrota. O que dizes a isto, Rubínia?”
- “Naturalmente, aceito! É-me indiferente como ou contra quem seguirei na minha vontade. O que quero é alcançar o que pretendo.”
- “Seja! Não é digno da minha posição o manejo de armas com uma mulher. Urtize, meu leal servidor, defrontar-te-á”.
Urtize era igualmente possante. Tinha uma cicatriz que lhe atravessava a linha vertical da face esquerda e faltavam-lhe alguns dentes desse lado do rosto. De facto, patenteava ter sobre os ombros a passagem de muitas estações e não enganava quanto à profissão de sempre: nascera para ser guerreiro. Gurri escolhera-o por isso mesmo. A temperança da idade e a longa experiência no domínio da espada acautelavam que não infligisse males maiores à jovem rapariga. Vencê-la-ia rapidamente e apenas com o mínimo de dor.
Alguns serviçais abriram alas para a passagem dos contendores, afastaram os artefactos e outros impedimentos que obstruíam o espaço, formando uma clareira imediatamente a seguir às mesas e ladeando a grande fogueira. Acenderam-se umas quantas tochas com linhaça e óleo, colocadas nos extremos e delimitando a área de combate. Ao centro, cravaram duas magníficas espadas.
Zímio reclamava baixinho com Rubínia. Prometera a seu pai protegê-la com a vida. Não poderia ficar quieto e presenciar serenamente o seu sofrimento, mau trato, ou pior, a morte. Rubínia, enquanto se despojava da capa e vestia uma couraça conjuntamente com uns punhos de grosso couro, assegurou-lhe que tinha tudo planeado. Afinal, não fora ele, o fiel Zímio, quem lhe havia ensinado tão diligentemente o uso das armas? Zímio resmungou e enquanto se sentava em lugar estratégico, sacou o punhal que manteve pronto e dissimulado entre os objectos que pejavam a mesa.
Rubínia avançou para a entrada na arena. Tomou um pouco de cerveja, derramou-a e dedicou-a à sua deusa predilecta. Arrebanhou um pouco de terra e evocou a Lua, que sobre si brilhava intensamente, majestosa e prenha. Urtize, de bons modos, dedicou aos seus deuses e preparou-se.
Chegaram-se ao centro, saudaram-se com respeito e pegaram nas espadas, para depois se afastarem um pouco. Colocaram as protecções de cabeça.
Gurri advertiu o seu delegado: - “Urtize, sê rápido e eficaz! Vence o teu oponente sem olhares às circunstâncias, mas tira-lhe apenas uma pétala de sangue. Segura o braço, então! Percebeste?” - (Urtize acenou afirmativamente) – “Alépio, da nossa parte, pode começar. Como anfitrião, deves ser tu a dar sinal de início do duelo.”
-“Eu também estou prestes.” Confirmou Rubínia.
Alépio levantou-se e ergueu o braço destro -“Que os meus antepassados me perdoem pelo que estou a um passo de dar ordem de principiar. Que me perdoe também Tongídio, camarada que tantas vezes me valeu em batalha. A vossa determinação é fraco unguento para apaziguar a maleita que me corrói o coração. Este estigma vai perseguir-me pelos dias que me restam. Preparem-se, ao meu sinal comecem!”
Desceu o braço e os protagonistas movimentaram-se de imediato, colocando-se em guarda. Numa primeira fase, limitaram-se a corrigir posições e a analisar as características um do outro.
Confiante num desfecho rápido e na fraca oposição que adviria de Rubínia, Urtize investiu com força sobre a arma daquela. O som metálico ecoou, resultado do bom bloqueio da ofensiva. Seguiu-se uma sucessão de trocas de golpes. Quem diria que Rubínia se defenderia por tanto tempo?!
Esta resistência contrariava a estratégia de Urtize: queria desarmá-la em poucos movimentos, obter a sujeição voluntária ou provocar-lhe um ferimento superficial e inconsequente.
O que ele não sabia é que Rubínia fora criada como um varão. Sendo o seu único descendente, Físias preparou-a para assumir os negócios da família. A educação dos novos comerciantes incluía a habilitação para o uso de armas e a defesa em caso de assalto e pilhagem, tão comuns. Zímio, o pedagogo militar, não só tinha feito de Rubínia uma perita na destreza bélica como conseguira também transmitir-lhe o espírito e o discernimento próprios do guerreiro. Tongídio ensinara-lhe, mais tarde, a astúcia e o engenho.
Portanto, Urtize, ingenuamente, estava de facto a lutar com um par, bastante aguerrido. E da ignorância até ter a certeza de que a mulher seria um osso duro de roer, foi um ápice. O seguimento de ataques e contra-ataques tardavam um desfecho. O vacceu já dava mostras de transpirar e mais se envolveu no combate.
As armas chocavam cada vez com mais violência. Rubínia defendia-se mais do que atacava. Era esguia e ágil, equilibrando com a rapidez a menor compleição física.
Urtize procurava reduzir a distância entre ambos para suprimir o espaço de manobra da rapariga. Tanto tentou que finalmente conseguiu que as espadas se cruzassem próximo dos punhos. Tinha agora a oponente bem próxima e ao alcance do braço livre. Num gesto bem calculado acertou um potente soco no rosto de Rubínia. Esta, aturdida, no recuo provocado pela força da pancada, tropeçou numa pedra e caiu de costas. Sem contemplações, Urtize calcou lesto o braço da adversária, inviabilizando o manejo da espada. Fitou o rosto de Rubínia na expectativa da vitória. Porém, o lábio inchara, bem como aquela área da face, mas não rasgara. As fivelas almofadadas do capacete tinham absorvido grande parte da energia do embate.
- “Rendes-te, mulher?!"
(continua…)
Andarilhus “(º0º)”
XXII : I : MMIX