Quarta-feira , 25 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (17º episódio)

 

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(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/48845.html)

- “Entretanto, tu, Avelda, escolhe mais dois camaradas e vão substituir estes nossos bravos, que acabam de chegar. É essencial vigiar as manobras dos Romanos e mantermos sempre um passo à frente deles. Nós seguimos para ocidente, com travessia dos píncaros Cantábricos. Se os inimigos iniciarem marcha, regressem com o vento a avisar-nos”, instruiu Alépio.

Segundo as sortes traçadas, os grupos partiram para os seus destinos. O principal dirigiu-se para a montanha. Certamente que os Romanos logo o saberiam, através da sua bem dotada rede de informadores. Era premente ganhar alguma vantagem sobre os que os iriam perseguir.

Com as energias repostas e ansiosos por pôr pé a caminho retomaram a jornada com as montanhas a ganharem crescente dimensão. Os trilhos eram poucos, estreitos e sinuosos, mas bem calcorreados, sobretudo pelos pastores. Seguiam numa estendida fila e, praticamente, todos aos pares, por cada um dos cavalos. Dado o esforço dos animais, acrescido pela inclinação do terreno, decidiram revezar-se na montada. Por todas as razões, a deslocação perdeu dinâmica e tendeu a arrastar-se.

A delonga tinha também a sua vantagem: estavam numa daquelas zonas sagradas de fronteira entre as paisagens já marcadas pela mão do Homem e as áreas elevadas e virgens da natureza, redutos secretos dos Deuses e onde ao ser humano só era permitido aceder por breves momentos, de passagem. A Primavera espreguiçara-se sobre os domínios dos senhores e dos servos, evidenciando mais um ciclo afortunado e abençoado. Regalava a vista.

Durante os 3 primeiros dias, os Celtas não se aproximavam das aldeias que iam encontrando. Passavam à distância e de forma oculta. Quando careciam de mantimentos, nomeadamente, o pão de bolota, enviavam apenas dois ou três elementos para os adquirirem. Todavia, a sua presença era notada por muitos dos que, nas suas actividades, deambulavam pela montanha.

Prestes a entregarem-se aos desígnios que os aguardavam nos picos das serranias, decidiram repousar num dos últimos lugares arborizados. O souto que os recebia era magnífico. Árvores ancestrais, de cintura larga e feições maduras, expunham engalanados os belos e viçosos ouriços, ainda pequenos, mas muito prometedores. Preparavam a recompensa futura, resguardada, em desafio, dentro de uma formidável couraça de espinhos. Lembravam-se os Celtas que deveriam ser como os ouriços, se os Romanos lhes queriam roubar a sua pátria.

Enquanto ai permaneciam e os demais dormitavam, Rubínia divertia-se a entrelaçar flores silvestres, formando coroas, as quais ia acumulando, ora na cabeça de Tongídio, ora nos seus braços e armas. Este, imbuído da mesma felicidade, ria-se e devolvia com a mesma e outras brincadeiras. Pareciam um casal de recentes núpcias.

Num momento de perseguição alegre, em correria - num daqueles em que o predador quer ser a presa -, Tongídio foi o primeiro a ver aproximar-se um cavalo a passo lento. Percebia-se que trazia alguém com o dorso tombado sobre a crina. Pelas insígnias e outros sinais, era Celta! Cerrou o sorriso e correu ainda mais, direito ao animal.

Confirmava-se: tratava-se de Reburrino, um dos guerreiros enviados para espiar o inimigo. Estava moribundo, ferido por duas setas, uma que trespassara o ombro e outra no flanco baixo das costas. Tinha perdido muito sangue e estava inconsciente, contudo ainda respirava.

Tongídio recolheu sobre si Reburrino, com o cuidado de não piorar os ferimentos. Logo outros se aprestaram em ajudá-lo e também a tratar o heróico animal que o havia levado até ali, até aos seus.

Rapidamente lhe fizeram uma liteira e deitaram-no de peito para baixo. Rubínia, a mais experiente no tratamento de feridas de guerra, começou por partir as hastes das setas, enquanto pedia que fervessem água e lhe fossem buscar certas ervas. Depois e aproveitando a dormência compulsiva do ferido, Rubínia, munida de um punhal bem afiado e previamente incandescido no fogo, rasgou o suficiente do corpo do infortunado para lhe retirar a ponta de seta que tinha embebida junto dos rins. A de cima, que tinha vazado o ombro, foi apenas necessário puxar pela frente o corpo do projéctil, através da sua ponta de ferro. Reburrino estremeceu brevemente e continuou ausente. Lavaram-no com as ervas e a água. Ficou a descansar, com um respirar mais natural.

Devido aos recentes acontecimentos, o grupo celta acabou por adiar a viagem e pernoitar naquele lugar, desconhecendo o risco que se abeirava.

Já próximo do raiar do dia, Reburrino começou a manifestar-se, despertando totalmente a semi-dormente Rubínia, que passara toda a noite em vigília e cuidado, combatendo a febre do padecente com contínuos panos frescos sobre o rosto e limpando as feridas lacrimantes, em constância. De tal modo que, pela alba, Reburrino recuperou a consciência e mostrava-se ansioso por falar, apesar da sua frágil condição. Rubínia chamou Alépio e os restantes representantes dos clãs.

Em silêncio, rodearam o convalescido e aguardaram. Não tardou a ouvirem-no. Com os olhos muito vivos, tomou-lhes a atenção com a voz mais firme que encontrou: - “Meus amigos e, entendo agora, minha senhora de guarda, Rubínia, - de quem serei servo de ora em diante e se viver -, é preciso fugir, fugir! Cada movimento do sol no céu é uma oportunidade perdida. Os Romanos estão sobre nós!

Não tivemos tempo de os avisar com antecedência. O inimigo surpreendeu-nos! A perto de meio dia de nos despedirmos, encontramos pelo caminho aquele que parecia ser mais um prisioneiro evadido. Fiquei escondido, enquanto Avelda e Munir foram ao encontro do estranho. Quando os companheiros trocaram palavras com o sujeito ele gritou: “Fujam!”. De imediato, todos os três foram atingidos por lanças e setas. Os Romanos estavam escondidos, em cilada. Já vinham em nossa demanda e traziam um isco.

Queria ir socorrê-los, porém, entendi que era mais importante cumprir a minha missão: avisar-vos. Incitei o cavalo, e quando já pensava estar a salvo, cruzei-me com um bando de Arevacos. Lutei e matei dois deles, evitando escaramuças desnecessárias dada a presença do inimigo principal. Contudo, chegaram mais Arevacos e atingiram-me com flechas. Cavalguei sem parar e mantive a consciência até bem perto deste lugar, até que Bandu toldou a minha visão e me ordenou adormecer.

Sei que os Romanos, talvez com a orientação dos Arevacos estão próximos. Via-os, muitos, ao longe, quando passava em lugar alto, sobranceiro a planície. A Legião, inteirinha, vem aí! Não deve estar a mais de um dia de distância… Temos de seguir. Coloquem-me num cavalo que eu aguento”.

Alépio suspirou. Afinal o destino tinha-se antecipado aos seus planos. Mas nada estava perdido. Tinham apenas de fazer algumas adaptações – pensou - para se focar e orientar os camaradas.

-“Que Avelda e Munir tenham ganho os seus machados sagrados e as graças do soberano do reino ulterior dos guerreiros. A ti, Reburrino, saúdo e venero a tua coragem e padecer pelo bem dos outros.

Partimos pois, que é urgente. Até parece que já sinto o cheiro emproado do respirar dos romanos. Estamos quase a alcançar o rio Ebrol, vamos acompanhá-lo na direcção da sua nascente. Deve haver um sítio onde o possamos atravessar. Quanto mais para o interior e alto da serra arrastarmos a Legião romana, mais possibilidades teremos de sucesso. Lá em cima não têm fontes de alimento, nem conseguem utilizar o seu extraordinário arsenal e táctica militar. Assim como, o número de efectivos terá um valor muito relativo”.

(continua…)

 

Andarilhus

XXV : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 23:11
Sexta-feira , 13 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (16º episódio)

 

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(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/48623.html

Em risada geral, desmobilizaram todos da circunstância enfeitiçada para se entregaram às tarefas que careciam de atenção. Os homens começaram a organizar-se em grupos, de acordo com a afinidade de tribos e local de origem. Eram sobretudo provenientes de clãs Calaicos, Tamagani, Brácaros, Lusitanos, Vetões, Zoelas, Turdulos e Astures. A maioria desejava regressar ao seu povoado e recomeçar a vida civil. Porém o espírito aguerrido e indomável de todos eles instigava-os para as fileiras de Aníbal e a guerra aos Romanos.

Os primeiros contactos de Aníbal com os iberos não decorreram de modo fácil ou pacífico. Os Cartagineses chegaram com ambições de conquista e domínio do território. Pronunciaram-se violentamente sobre alguns dos povos, sobretudo sobre os da meseta central, que resistiram afincadamente. Se tomassem o centro da península e o juntassem à já subjugada orla litoral do Sul, seriam soberanos de toda aquela magnífica e rica terra. Quem sofreu mais com as aspirações púnicas foram os Arevacos, originando o seu enorme ódio e a sua tomada de posição pró romana.

Aníbal percebeu que os iberos eram indomáveis. Se fossem subjugados pela força, seriam sempre como grossos braços de espinhos a rodearem a cabeça dos vencedores. O melhor era tê-los por amigos, promover as trocas comerciais, partilhar conhecimentos dos vários ofícios e artes e, se possível, cativá-los como aliados. Dessa forma, paulatinamente, os Púnicos, um pouco por toda a Península, passaram a ser recebidos com tolerância e crescente amizade. Tanto mais que outro potencial opressor também já começava a mostrar as suas garras e ganância: os Romanos.

Servia assim a Ibéria de tabuleiro de jogo, onde Púnicos e Romanos desenvolviam as suas estratégias de expansão territorial e alargamento de área de influência, com o fim último da exploração dos recursos naturais e demográficos. Os Celtas sabiam que eram joguetes das potências militares e comerciais. A solução era tomar o partido do contentor menos nocivo para os seus povos. Ficar quieto e neutro nessa luta de Titãs era ter ambos por inimigos. Aníbal tinha algo que pelo menos lhes inspirava alguma confiança: era frontal e directo. De certa forma, honesto quanto às suas intenções. Os Romanos, por seu lado, já haviam demonstrado que eram sinuosos, calculistas, dissimulados, sempre na expectativa de dividir para reinar. Não se podiam fiar nas suas palavras e alianças.

Esta necessidade de alinhamento com as circunstâncias também só ocorria porque os povos da Ibéria não eram capazes de se congregarem em união contra invasores externos. As rivalidades eram tremendas entre as diferentes facções e clãs. Estes ódios internos eram bem conhecidos e explorados por aqueles que pretendiam controlar o território.

Todavia, esta luta de pólos tivera o condão de adormecer as disputas intestinas por alguns momentos, e aquela centena e meia de celtas estava reunida por vontade comum. Indivíduos que, noutra situação, facilmente se esventrariam uns aos outros. Na presente conjuntura, por força do destino, conseguiam reunir-se, comer em conjunto, partilhar a sua vida e os seus pensamentos, colaborar nas tarefas comuns. Alguns até chegam ao extremo de se divertirem no riacho próximo, aproveitando para, ao fim de tanto tempo, pôr em ordem a higiene do corpo e da roupa: as encardidas bragas, túnicas de lã e linho, mantos de tecido e pele, as grossas loricas e as cotas de couro.

Assim passaram o dia. Só pela tardinha é que Tongídio e Rubínia voltaram a aparecer. E, ainda mais tarde, regressaram os tão aguardados esculcas. Tinham cavalgado horas a fio e desfaleciam já em cima dos dorsos dos igualmente esgotados equídeos. Deixaram-nos retemperar forças antes de ouvirem o que tinham a relatar.

Alépio chamou dois representantes de cada tribo para escutarem as novidades e discutirem o futuro. As notícias não eram nada favoráveis. Antes pelo contrário, eram alarmantes. Virian, um Calaico, foi o porta-voz dos enviados.

- “Chegamos ao destino no final da manhã. O fumo era imenso e ainda se viam áreas a arder, dentro e fora do campo romano. Parte da paliçada de madeira a Oeste cedeu ao fogo também. Os Romanos montaram outro acampamento fora da cerca. Fizeram uma pira gigantesca, onde prestavam uma última homenagem aos mortos e os encaminhavam para o Elizium deles. Pelo que percebemos, para os nossos companheiros perecidos abriram uma vala comum. Não nos conseguimos aproximar muito porque o esquema de sentinelas é muito cerrado. Há patrulhas por todo o lado, que se cobrem e desmultiplicam em círculos. Os Romanos são ainda muitos. Observamos algumas dezenas de cativos. Os desgraçados não tiveram êxito na fuga.

Para tentar recolher mais factos, arriscamos e fomos a Sekia. A civitas está praticamente sob estado marcial. Muitos dos mercadores fugiram e a presença militar romana é muito sentida. Mas, continua de acesso franco.

Pelas ruas e nas tabernas onde paramos para beber andamos sempre de ouvidos bem abertos. Por fim, alcançamos aquilo a que íamos: um centurião romano confidenciou com alguns dos seus legionários que, quando chegasse a legião oriunda de Ardósia, Marcus Minucius Rufus pretendia iniciar uma expedição punitiva contra os Celtas, sobretudo os da orla meridional ocidental, os mesmos que haviam provocado aquele incidente. Iria em perseguição dos fugitivos e arrasaria todos os locais que os ajudassem. O Cônsul está furioso e ficou sobretudo possesso quando, a partir das revelações de prisioneiros e de um tal Maxílio, conseguiu juntar as peças e percebeu a trama urdida pelos Celtas. Mandou executar Maxílio.

Ao que parece, morreram muitos romanos e púnicos na revolta. Porém, a maioria dos prisioneiros escapou e dirigiu-se para Sul, no encalço de Nova Cartago.

Aguardam a Legião de reforço no dia de amanhã…”

-“Não temos tempo a perder. Atraímos a atenção da fera e agora só nos resta matá-la ou morrer. Partimos amanhã para o interior das montanhas. Vamos desgastar as tropas de Marcus antes de lhes montarmos uma armadilha de que não se esquecerão. Terá de ser algo retumbante, que assuste os romanos e os obrigue a retirar. Não vejo outra maneira. Em campo aberto jamais os venceremos, mesmo que as nossas tribos se aliem e corram em nosso auxílio”, proferiu Alépio com um brilho muito especial nos olhos de guerreiro, desejando novas e mais grandiosas façanhas.

Tongídio adiantou-se e completou o companheiro: - ” É importante enviar mensageiros pela Ibéria e pedir apoio. Um par dirigido a Aníbal e daí correr o Sul até aos Cónios, outro par enviado aos povos da meseta e tentar parlamentar com os Celtiberos e Turdetanos e, finalmente, um grupo de vanguarda que vá a todos os nosso povoados a Ocidente anunciar a nossa chegada e incite todas as forças para combate ao opressor!

- “Não te esqueças dos Vacceus. Tratarei eu de comunicar com o meu povo.”

(continua…)

 

Andarilhus

XIII : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 08:49
Quinta-feira , 12 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (15º episódio)

 

http://cavaleirodinamarca.webs.com/trista1.gif

 

(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/48328.html)

Enquanto esperavam, Alépio dispersou alguns guerreiros em volta do sítio, por pontos estratégicos de vigilância e convocou uns quantos homens para tratarem de recolher alimento e caçar na floresta.

Tongídio preparava-se para sair com a expedição de caça, quando ouviram a aproximação de cavaleiros. Olharam para os vigias, que deram um sinal positivo. Amigos que chegavam. Era Rubínia e companheiros. Na escuridão da noite não lograram atinar com o local marcado, embora tivessem pernoitado bem perto.

Tongídio, guerreiro austero e maduro, ficou com a expressão de uma criança que recebia a sua primeira falcata, como iniciação para a passagem à formação de guerreiro, de homem. À sua frente estava a mulher de quem o destino o tinha apartado por tão longo tempo. A esposa que deixara em espera, por outro amor: a pátria. A pessoa que mais amava e quem, a cada momento, lhe confiscava o pensamento, com saudades dilacerantes. E ela ali. Atravessara metade da Ibéria, atravessara o perigo por inteiro, só para o encontrar. Saltava agora do cavalo e vinha sobre si, de braços abertos. Era como um túnel aberto no tempo, em que tudo o resto parava à sua volta. Um sonho. O sonho que tantas vezes acarinhara acordado e com ele acabava por adormecer, na gruta fria do cárcere.

O impacto do corpo e do sorriso de Rubínia acordou-o de volta à realidade. Gritou o seu nome efusivamente, prendeu-a de tal forma que parecia que jamais a largaria. Beijou-a longamente, como pessoa querida, como sua mulher.

Rubínia era a encarnação da deusa da felicidade. Depois da provação, das pouco auspiciosas notícias do desastre, dos receios de jamais o voltar a ver, sentia-se aliviada, sentia-se realizada no dever, no direito de não aceitar um destino nefasto na inércia, cumpridos. Sentia-se sobretudo, agora, novamente, inteira. Tinha recuperado a sua outra metade. Sim, os dois eram um todo harmonioso, impossível de determinar ou separar em partes e continuar a existir.

Viam-se finalmente frente a frente, tangíveis, porém, nenhum dos dois conseguia proferir qualquer palavra. Não era necessário. O olhar, os rostos risonhos a própria agitação das mãos, dos corpos, eram eloquentes. Tudo diziam, sem que se ouvisse algo. Tongídio pegou em braços Rubínia e, em passo feliz, entranhou-se na floresta. Tinham muito a pôr em dia.

A cena do reencontro paralisou os presentes. Estáticos e em êxtase, reviam-se no momento e recordavam quem os esperava ou alguém que muito queriam. Sonhavam acordados, também.

- “Olhem lá seus mandriões, acaso não têm alguma coisa para fazer? Há que recolher lenha, tratar dos cavalos, limpar as armas! E vocês aí? Estão à espera que a caça vos venha cair aqui, nos braços? Ou pensam que Tongídio foi caçar e trará as presas sozinho? Ele agora vai deixar-se apanhar, não contem com ele, hehehehe!”, gracejou Alépio.

(continua…)

 

Andarilhus

XII : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 08:51
Quarta-feira , 11 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (14º episódio)

 

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(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/48023.html)

Alinhados pela paliçada Sul, os cerca de 30 celtas tinham a postos muitas pedras e dezenas de flechas, todas munidas com estopa molhada em azeite, para levarem o fogo sobre a barreira até às altamente inflamáveis tendas do inimigo.

Verificada a carência de água e prevendo que a maioria dos Romanos já estaria a tentar o primeiro sono, Rubínia deu sinal para que se carregassem as fundas.

Com a arma preparada para lançar, cada fundibulário marcou uma mira entre as sentinelas. O som característico do movimento circular desenhado pelas fundas no ar ouvia-se em surdina. Saíram da vegetação para campo aberto e soltaram em uníssono os rebos bem afeiçoados que haviam recolhido no rio. Como uma chuva de meteoros e confirmando a destreza dos braços municiadores, os projécteis atingiram em cheio os legionários, tombando-os, uns para o fosso de dentro, outros para o fosso de fora, do muro. Recarregaram com mais pedras e acabaram com os guardas, de torres e paliçada, desse lado do campo, sem que fosse dado o alarme.

Sem perder tempo, trocaram de armas. Três cavaleiros, empunhando archotes, percorriam a linha de arqueiros e acendiam a mecha das flechas.

Sem opositores no muro, chegaram-se bem perto para enviar as setas incendiárias bem profundamente no acampamento inimigo. Sempre a manusear os arcos, recuaram progressivamente para que as flechas seguintes caíssem noutros pontos, propagando assim irremediavelmente o incêndio. Esgotados os objectos de arremesso, pegaram fogo ao mato e correram para os cavalos. Circundaram a fortaleza por Oeste e pegaram fogo também desse lado.

Apanhados de surpresa e com a maioria ensonada, os Romanos esqueceram completamente a disciplina e lançaram-se a apagar os múltiplos fogos, disseminados no interior do arraial. As tendas ardiam como cera e ao tombarem ou através dos pequenos farrapos flamejantes que se soltavam, perpassavam o incêndio nas imediações. Correram ao rio mas, espanto, só encontraram pequenas poças, de onde dificilmente enchiam as cabaças. Pegaram em mantas e, com elas, batiam furiosamente nas labaredas. Todavia, o fogo estava já disperso e faminto.

Dado o alerta, logo as tropas de intervenção se prepararam para sair do campo, ao encontro dos atacantes. Não foram longe: lá fora também tudo ardia. Reforçaram a vigilância da muralha e concentraram-se no fogo interno, tentando salvar o máximo possível.

Com o incêndio a propagar-se para Norte, a maioria dos legionários estacionados desse lado, correram a acudir a catástrofe ou a desmontar as tendas ou mesmo a salvar os bens pessoais.

A vigilância dos prisioneiros e das portas Norte reduziu drasticamente. Ouviu-se então o grito: - “Por Endovélico!”

Era o sinal! Rampa acima, Alépio exortou os cativos para a saída. No topo, os falsos Arevacos já manchavam o solo da Ibéria com sangue romano. Apesar de algumas baixas entre os Celtas, ambos os portões foram abertos.

Por razão do seu número elevado, demorou a vazão de todos os prisioneiros. Estes, à medida que se espalhavam pela área Norte do campo, proviam-se com armas, retiradas aos mortos ou simplesmente abandonadas junto das tendas.

E foi a tempo. Após o desespero inicial, o comandante romano conseguiu formar parte das tropas e marchar sobre a zona da prisão. Percebeu imediatamente qual era o fundamento daquele ataque. Porém, o cenário não lhe era favorável. A ocupação do espaço interior do campo, acrescido de estar tomado pelo fogo, não permitia as manobras e as tácticas de guerra tão características dos latinos. Para que os inimigos não escapassem impunemente, não teve outra solução que não fosse ordenar e dirigir um contra-ataque desordenado e de combate corpo a corpo.

Alépio, através de bandeiras improvisadas com insígnia celta, chamou a si os que pertenciam às tribos ocidentais ibéricas. Conseguiu reunir cerca de centena e meia de guerreiros. Conduziu-os para as portas Norte, agora franqueadas. Gurri aguardava.

- “Vamos, não há tempo a perder, temos de subir às montanhas dos meus aliados Cantabri o quanto antes.”

O caos grassava na fortaleza. O incêndio incontrolável e os encarniçados combates ocupavam os vivos e davam causa às centenas de mortos.

Partiram os Celtas, cavalgando a galope pelas estepes, no dorso dos cavalos subtraídos aos romanos. Já ao longe, num último olhar para o cenário que abandonavam, todo o campo parecia uma enorme bola de fogo. A astúcia vencera a força. Mantiveram o forte ritmo de viagem, durante toda a noite.

Pelo amanhecer, num ancestral lugar que encabeçava uma arriba altaneira, marcado centralmente por um, não menos vetusto, santuário, pararam para descansar. Homens e animais estavam exaustos. Alguns menos afortunados careciam de tratamento a ferimentos colhidos na refrega.

Escolheram também esse sítio sagrado para ponto de encontro com o grupo que perpetrara o ataque do exterior. Após ter executado as acções de terra queimada, Rubínia passou pelas portas Norte, apenas para verificar se os companheiros tinham tido sucesso com a abertura daquelas. Tendo-o confirmado, embora contrariada porque queria participar da liça, avançou para Norte, tal como haviam decidido.

Não tinham alimentos, mas também não tinham lembrança de comer. Saciaram sim, a sede, naquelas águas frescas que mergulhavam serra abaixo.

Já um pouco recompostos, Alépio expediu 3 homens de volta ao centro da peleja, para verificarem o que se tinha passado entretanto e qual era a situação. Os nomeados levaram montadas de substituição, para trocarem e assim cumprirem a ordem de forma mais célere. A hoste descansaria ali e aguardaria o regresso daqueles.

(continua…)

 

Andarilhus

XI : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 08:47
Terça-feira , 10 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (13º episódio)

 

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(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/47815.html)

Dada a sua colaboração, o interrogado teve uma morte rápida e quase sem dor. Suprimiram os cadáveres de todos os seus pertences e esconderam-nos no bosque. Numa bolsa do chefe Arevaco encontraram 2 placas de cera com as credenciais passadas pelo próprio Cordus Paulus Vallis. A impressão do seu anel assim o provava. Podia ler-se na mensagem: “Ave. Eu, Cordus Paulus Vallis, vos escrevo. Estes ilustres aliados Arevacos seguem na nossa vanguarda, para vos alertar do perigo. Chegaremos 2 a 3 dias após lerdes esta missiva. Tratai-os bem, com honras e confiança. São dignos da amizade do povo romano. Saudações.”

Os Celtas tinham de ser rápidos e aproveitar bem a oportunidade que a fortuna lhes havia dedicado. Reuniram-se no acampamento.

Face à vizinhança entre Vacceus e Arevacos, à aculturação recíproca e mesmo à grande semelhança física, Gurri e os da sua tribo vestiram as roupas dos liquidados. Consigo e na direcção do campo romano seguiriam também Alépio e mais 2 Brácaros, num total de 19 guerreiros. Os restantes seriam liderados por Rubínia e Zimio, no ataque ao muro Sul, tal como constava no plano inicial. Abandonaram a ideia de entrar furtivamente a Norte. Agora, possuíam um salvo-conduto.

Assim que terminaram as tradicionais oferendas e preces às divindades, segundo a tradição e o panteão de cada clã, saudaram-se e despediram-se.

Zimio verificava ao pormenor a preparação das armas de arremesso. Rubínia partira com 5 camaradas na direcção na nascente do pequeno rio que alimentava de água o assentamento romano. Já bem a montante, obstruíram o leito do rio, desviando por vários pequenos canais que se perdiam pela terra seca da montanha. A água esgotar-se-ia lentamente a jusante.

Entretanto, o grupo de Gurri acercou-se da entrada principal do reduto Romano. Felizmente eram outras as sentinelas, pensava Gurri, desejando igualmente que Maxílio também não aparecesse por ali, colocando em risco o desfecho da acção. Dirigiu-se aos guardas.

- “Vimos de Ardósia, da parte de Cordus Paulus Vallis. Leva-nos ao teu comandante. Devo entregar-lhe uma mensagem.”

O Romano reconheceu-os como Arevacos e não suspeitou. Abriu os portões, chamou mais 3 legionários e conduziu-os até ao pavilhão central. Informou os superiores.

Da grande tenda saiu um indivíduo destacável, de porte robusto, tez muito morena e pequenos olhos claros. Era Marcus Minucius Rufus, Cônsul enviado pelo Senado Romano para dirigir o avanço na Ibéria. Encarou Gurri. Este, de imediato, entregou-lhe as tábuas de cera. Leu-as, calmamente.

- “Grande malandro este Cordus Vallis. Desde pequeno que tem a mania que é o grande chefe militar. Ainda não sabe que estou por cá. Bem, se vos quer como amigos, serão também nossos amigos. Instalem-se dentro da cerca, onde bem entenderem. Libertaremos algumas tendas para vós. Da mesma forma, sereis tratados como romanos, em tudo. Agora dizei-me: a que perigo alude Cordus Vallis? E por que considera necessário deslocar para cá outra Legião?”

Gurri desceu do cavalo, fez uma vénia e respondeu: -“Apesar dos nossos maiores esforços uma numerosa coluna militar celta conseguiu atravessar o planalto central da Ibéria, para reforça das forças de Aníbal. O Senhor de Ardósia julga que isso vos coloca em perigo, sobretudo porque a concentração de prisioneiros que aqui tendes poderá ser uma tentação para os púnicos. E, Senhor, talvez isto seja um sinal: quando para cá nos deslocávamos e já aqui bem perto, aprisionamos estes 3 Celtas, que pareciam explorar as proximidades. Eram mais, mas os outros fugiram.”

-“Muito interessante. Somos-vos gratos, amigos. Levem os 3 “cães” para as galerias dos prisioneiros. Mais tarde vamos arrancar-lhes umas unhas, ou mesmo os dedos, para ouvirmos tudo o que deles queremos saber.”

-“Permiti, Senhor, pedir para montarmos o acampamento à nossa maneira. Agradecemos as tendas, mas não lhes estamos habituados.”

- “Muito bem. Sigam os guardas até à área de cárcere. Aí tereis muito espaço para assentar os vossos costumes arraiais.”

Alépio, na figura de prisioneiro, escondeu o rosto na direcção do solo – para que não lhe vissem a expressão – e sorriu. Gurri fora formidável. Conseguira exactamente aquilo que era desejável para o plano.

Pelo pôr-do-sol, os falsos Arevacos instalavam-se lentamente junto da grande fenda. Os pretensos capturados já estavam abaixo, enclausurados. Uns e outros começaram a tratar do que se projectara, para noite dentro.

Alépio, assim que chegou ao fundo do calabouço, procurou os da sua tribo e os das tribos suas vizinhas. Procurou afincadamente Tongídio. Porém, eram realmente muitos e de diferentes partes do mundo. Talvez fossem dois milhares de homens de Aníbal. Nem o próprio General deveria saber que eram tantos.

Apanhado desprevenido pela dimensão dos efectivos, resolveu espalhar a palavra. Pôs a correr de boca em boca que um enviado de Aníbal pedia aos chefes de cada clã, de cada povo, que se apresentasse na galeria maior da fenda, o mais breve possível. Aí, aguardou.

Começou a vê-los chegar: os Numídias e outros africanos, nomeadamente do Magrebe, os Gregos, os próprios Cartagineses, povos itálicos, os diferentes povos da Ibéria, reconhecendo de imediato os seus irmãos.

- “Companheiros de armas, sou Alépio, dos Brácaros. Serei breve porque o tempo urge. Confiai em mim e não coloqueis questões. Estamos a preparar a fuga de todos. Deixar-me aprisionar, faz parte do plano. Em breve algumas armas cairão aqui no fosso, para que haja aqui também gente armada e que posso ajudar a combater os romanos. Temos amigos dentro e fora do campo, prontos para começarem as hostilidades. Quando vos der o sinal, devemos correr pela rampa até ao grande portão. Alguém o abrirá. Daí evadir-nos-emos pelas portas Norte.”

- “E como podemos confiar no que afirmas? Como sabemos que tudo não se trata de um truque romano para nos abater?” Interpelou um “tronco” africano.

- “Porque eu dou garantia das palavras de Alépio. Conheço-o bem, assim como muitos outros que aqui estão o conhecem. É como um irmão. É um dos maiores guerreiros de Aníbal.” Ouviu-se ao fundo, em tom forte e que se aproximava pela multidão.

Era Tongídio. Sem dúvida, também ali era um líder. Aproximou-se de Alépio, olhou-o firme e profundamente. Abraçou-o, fraternalmente.

-“Só um louco Brácaro como tu é que se metia em tamanho sarilho! Deixar-se capturar para se juntar aos que pretende libertar?! Perdes-te o juízo, definitivamente!

-“É bom ver-te grande urso azul. Está cá mais alguém que te deseja ver, bem mais intensamente do que eu…

-“Sim?! Quem? Meus irmãos? Meu pai?

-“Não. Alguém que ainda te é mais importante. Alguém que tem a mesma força e vontade que o grande urso azul… Rubínia, tua mulher.”

-“Rubínia? Aqui? Mas, ela corre perigo, com tantos romanos por perto. Eu que fiz tudo para a afastar da guerra, e agora… Malvada mulher!

-“Calma Tongídio. Os Romanos é que correm perigo com a tua mulher por perto. Se tu a visses a lutar, se tu a visses a dominar os adversários… Mas, para já, ouçam-me todos: avisem os vossos guerreiros e preparem-se. Tudo irá ocorrer muito rapidamente. Vou-vos explicar com mais detalhe...”

Com o escurecer, os Celtas no exterior colocaram-se de forma a terem o campo romano ao alcance dos arremessos das fundas e dos arcos.

No interior, os simulados Arevacos, estudavam as voltas das patrulhas e a posição dos legionários nas redondezas. Traziam muitas armas escondidas. Amarraram-nas a pontas de cordas e, a coberto do lusco-fusco, desceram-nas até às grutas. Eram apenas algumas dezenas, mas já ajudariam, sobretudo os arcos e as flechas. Como aliados, os Arevacos tinham o privilégio de circular pelo campo, metendo conversa aqui e ali. Alguns entraram em amena cavaqueira com os legionários das portas Norte e outro grupo foi para junto dos guardas da prisão. Falavam das casas e das insulae que deixaram em Roma e arredores, das famílias, hábitos e da grandeza da grande capital. Os iberos puxavam-lhes pela língua, elogiando-os, distraindo-os e conquistando alguma confiança.

Concomitantemente, o pequeno ribeiro carregava cada vez menos água. Como ainda ia servindo para a refeição tardia e matava a sede, os Romanos não se preocuparam com a descida anormal do caudal. Em abono da verdade, as trevas da noite também ocultavam substancialmente a redução constante do curso.

Da sorte dependia o sucesso das manobras, mas quanto ao plano, tudo estava a correr maravilhosamente bem e acertado.

(continua…)

 

Andarilhus

X : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 19:50

Por Ti Seguirei... (12º episódio)

 

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(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/47407.html)

Quando chegaram à base de apoio já os seres nocturnos se manifestavam há muito. Alépio e Brági ficaram ostensivamente para trás, como medida preventiva para o caso de serem seguidos. Não havia novidade e, assim, rapidamente se juntaram aos outros num, uma vez mais, frugal e mal iluminado repasto.

De facto, o importante era mesmo o êxito da recente expedição. Alépio estava quase eufórico e, não fora a situação melindrosa em que estavam, até teria ganas de fazer uma festa. Havia visto e reconhecido muitos dos seus homens, entre os prisioneiros. Alguns dos quais, amigos de infância e outros que tal.

-“Digo-vos: todos - os que vi - estavam de perfeita saúde. Algo tristonhos, mas isso é natural. Os Romanos querem-nos realmente em boa forma. Estão a tratá-los bem. São muitos e provavelmente não vi a maioria, porque também, entretanto, aquele tribuno aproximou-se e exigiu explicações para a nossa presença… De toada a maneira, são mais do que os que tinha visto há muitas luas atrás. Devem ter reunido aqui uma boa parte dos prisioneiros que conquistaram a Aníbal.

-“Viste Tongídio?...” Perguntou Rubínia.

-“Não. Lamento. Mas isso não significa que não esteja entre eles. Vou contar-vos o que eu e Brági fizemos, quando nos expulsaste da tenda. Hehehhe, que grande golpe, Gurri! Magnífico!

Gurri, já estava perfeitamente imiscuído com os novos companheiros, alinhado com os seus objectivos e com a mesma vontade obstinada. Agora, já descontraído, soltou igualmente uma gargalhada, em reacção a Alépio. Este prosseguiu: -“Logo que saímos da tenda, pusemo-nos a caminho da paliçada Norte. Assumimos uma atitude descontraída: mãos atrás das costas, ora assobiar, ora a tagarelar. Fomos andando, admirando alegremente a sofisticação romana. Os legionários estranhavam a nossa passagem, mediam-nos com o olhar, mas não nos incomodaram até aí. Chegados ao extremo, viramos a Leste e foi então que vimos uma mudança radical da paisagem. Os Romanos não construíram o campo fortificado por acaso naquele sítio. Há um bom motivo para a sua localização. Pois oiçam e pasmem: a acompanhar uma boa parte do muro Norte, existe uma fossa natural de gigantesca dimensão. Parece que arrancaram dali uma montanha pela raiz, deixando um descomunal buraco no chão. Só alguém poderoso com Larauco o poderá ter realizado. Essa monumental cavidade tem uns bons 8 homens de altura e, dentro, está rodeada de muitas pequenas grutas. É nestas que se abrigam os nossos cativos camaradas. Parece um acampamento lítico. Este cárcere de pedra tem uma só saída a Leste, através de uma rampa serpenteante interna, que desemboca num grosso portão, ladeado por duas torres de vigia. A toda a volta tem uma forte presença da guarnição, com patrulhas constantes, que vão circundando o fosso.”

Brági também interveio: -“Os que estão encerrados não têm qualquer possibilidade de fuga se não forem auxiliados de fora. De cima, os legionários facilmente esmagariam qualquer revolta, antes mesmo que eles conseguissem alcançar o portão…”

-“Por isso, temos de planear bem o assalto e a fuga. Somos poucos e não teremos qualquer hipótese se não conseguirmos soltar os nossos irmãos antes que os romanos tentem reagir”, atalhou Alépio.

-“Só naquele quinhão de terreno devem estar instalados muitas centenas de soldados inimigos. Temos de os afastar de lá. Criar uma manobra de diversão e atraí-los para longe. Só depois, atacar ferozmente e sem piedade, libertando rapidamente os prisioneiros e armá-los também. Então será a debandada geral, dada as diferentes proveniências dos militares púnicos. Nessa altura também teremos de ser lestos na reunião dos que pertencem aos clãs célticos e iniciar a fuga, aproveitando a confusão que reinará nas hostes romanas.” Gurri mostrava a sua sabedoria na arte de guerra.

Rubínia, que já estava a imaginar o cenário da batalha, também quis partilhar a sua visão: - “Exactamente, precisamos de um artifício que engane os itálicos. Vamos ter de dividir a força. Considerando que só nos resta atacar de noite, poderíamos colocar uma vintena de homens no exterior do muro Sul - no oposto do objectivo - a arremessar projécteis contra o campo. Primeiro, com fundas, atirariam pedras aos vigias e, de seguida, disparariam setas incendiárias para cima das tendas. Tenho a certeza que arderão facilmente e produzirão forte efeito. No escuro, e bem munidos de arcos e fundas, iludiremos o inimigo que imaginará que tem um pequeno exército à porta. Podemos também, incendiar a vegetação a Oeste e dar ideia que estamos concentrados no flanco Sudoeste. E, se desviarmos o pequeno curso de água que atravessa o arraial inimigo, eles não terão água para combater o fogo e serão forçados a centrar nisso o seu esforço.”

-“Excelente também, Rubínia!”, aprovou Alépio. – “Agora, só nos falta o plano para entrarmos a Norte, enquanto os Romanos nos procuram a Sul. Vamos ter silenciar as sentinelas, galgar a paliçada e investir em duas frentes, os guardas que permanecerem junto do portão da entrada do fosso e abrir a porta Norte da fortaleza para, por aí, escaparmos posteriormente.

- “Para isso vamos necessitar de cordas, com espigões nas pontas, para se agrilhoarem aos topos dos troncos da paliçada. Alguns dos meus Vacceus são especialistas em movimentos furtivos. Começarão por aniquilar os vigias. Quando a passagem estiver livre, entraremos todos e atacaremos conforme determinou Alépio.”

- “Vamos então repousar. Amanhã temos muito que fazer. Em Sekia encontraremos as cordas, os arcos, as flechas e os outros materiais que necessitamos. As transacções têm de ser feitas sem levantar suspeitas. Seremos mercadores de artigos bélicos. Iremos à civitas em dois grupos: o principal e o de apoio, que estará sempre por perto, mas sem que se comuniquem. Depois preparamos tudo e atacaremos na próxima Lua. Que a Senhora da noite nos seja auspiciosa e benéfica.”

Tal como previsto, deslocaram-se a Sekia. A operação decorreu normalmente. O grupo de seis, com funções de adquirir as mercadorias, cumpriu a sua parte diligentemente, bem como os oito homens que se faziam passar por mercenários se mantiveram sempre prontos para as eventualidades que pudessem surgir.

No regresso, mais um golpe do destino abriu nova perspectiva nos planos.

A comitiva da frente, disfarçada de negociantes, foi abordada pouco após ter ingressado no caminho principal e que levava ao campo romano. Tratava-se de uma pequena formação de Aravecos que seguia um pouco atrás, na mesma direcção. Adiantaram-se a Gurri e aos seus e barraram-lhes o caminho. Cercaram-nos.

O líder iniciou a conversação: -“Quem sois vós que passais tão descansadamente por nossas terras? Não tendes receio de perder as mercadorias, assim tão parcos de homens de armas? Qual é o vosso destino? Serão as paragens dos nossos desprezíveis vizinhos, Iacetani?

Gurri, impávido e sem mostrar qualquer nervosismo, respondeu: - “Somos mercadores, Vacceus. Levamos armas ao campo romano. Há itálicos que gostam de coleccionar armamento autóctone e levar recordações para a pátria.“ Deu um esticão ao cavalo e obrigou-o a fazer um círculo. Viu o que queria, o grupo de Alépio já estava nas redondezas e tomava posição, escondido entre a vegetação.

- “Vacceus? Hum, os guerreiros das tuas tribos andam um pouco desnorteados, sem saber bem o partido que tomar. Continuam com medo de lutar, como se fossem mulheres prenhas. Vamos precisamente para o reduto dos nossos aliados Romanos, preveni-los que um grupo importante de Celtas passou a caminho de Nova Cartago. Preparamos-lhes uma boa armadilha. Contudo desconfiamos que os teus roeram a corda e deram com a língua nos dentes. Sigamos então todos ao forte romano e ver se eles ainda vos compram as armas ou se vos enforcam nas cordas desses arcos que aí levam”, gracejou, o Araveco.”

Uma vez mais, clarividente, Rubínia usou da astúcia. Os ataques às caravanas de seu pai, Físias, resolviam-se muitas vezes atiçando a cobiça dos salteadores. Lembrou-se do que havia aprendido e, num movimento pujante, atirou para o chão a bolsa das moedas, espalhando-as abundantemente pelos pequenos arbustos do caminho.

Os Aravecos menos disciplinados lançaram-se sofregamente das montadas à cata do vil metal. O caudilho dos opressores observou o movimento, ainda sorridente. Quando encarou novamente Gurri sentiu, apenas por breves momentos, a lâmina fria da arma do oponente a embeber-se no seu pescoço, cortando-lhe o ar e a palavra, tombou e não mais se moveu. Os que continuavam montados, também não tiveram tempo de reacção: Zímio, com dois golpes contínuos, rasgou profundamente o peito de um e rachou o crânio de outro; Rubínia empinou o cavalo e quando este descia, também a sua arma caiu tensa no ombro do Areveco que tinha ao alcance; Gurri já tinha abatido um segundo inimigo; e os restantes foram trucidados sem contemplações. Os que estavam apeados, ao verem a carnificina, tentaram fugir para o arvoredo, mas Alépio e os seus sentenciaram o seu destino. Apenas pouparam um, para interrogar.

O Araveco sobrevivente, trémulo, relatou tudo quanto sabia: vinham do campo militar romano de Ardósia, a Norte de Numância, com a missão de informar o campo romano junto a Sekia, onde guardavam os prisioneiros, alertando-os para o perigo potencial de um ataque de Aníbal, face ao incremento das suas forças com tropas celtas frescas. O praefectus legionis de Ardósia, Cordus Paulus Vallis, recomendava inclusivamente que enviassem imediatamente os prisioneiros para Roma. Era demasiado arriscado manter tantos prisioneiros reunidos, mesmo à sombra de uma Legião inteira. De qualquer forma, enviava mais uma legião, das duas que tinha sob seu comando, para reforçar a área de Sekia, enquanto não se livrassem desse peso e chamariz de ameaça.

Na verdade, os Aravecos eram apenas uma chusma de batedores. A Legião de reforço estava apenas a dois dias de marcha.

(continua…)

 

Andarilhus

X : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 08:23
Quinta-feira , 05 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (11º episódio)

http://www.french-engravings.com/images/artworks/ART-6776/LQ.jpg

 

(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/47148.html)

Choveu profusamente durante toda a noite e início do dia. Como estavam instalados no topo de um pequeno promontório, não penaram com a acumulação de águas e lamaçal.

O caminho até à castra romana seria bem diferente: o solo estava como uma pasta mole contínua, com grandes poças plantadas amiúde.

Decidiram partir. Optaram por um percurso que, inicialmente, os afastava do destino, para depois tomarem o trilho que ligava Sekia ao campo fortificado, e assim iludir os inimigos.

Estava tudo pensado, dentro do possível. Tentariam entrar no campo com o máximo de elementos permitidos. De todo o modo, quem fosse autorizado a aceder ao reduto entrincheirado dos Romanos deveria absorver e registar mentalmente todos os pormenores do lugar e, sobretudo, descobrir onde retinham os prisioneiros. Este era o ponto fundamental e sem o qual toda a estratégia seria inútil. Se necessário fosse, haveria que despoletar uma qualquer acção que possibilitasse arrastar a presença no campo e por lá deambularem até alcançarem esse objectivo imprescindível.

Embora a dificuldade de completar a distância, tendo mesmo os cavalos ficado atolados por diversas vezes, o séquito alcançou a entrada principal da fortificação romana a meio da tarde. Eram dez: o pretenso casal mercador e oito lacaios. Ficaram um pouco afastados do portão, à entrada da ponte de madeira que vencia o declive do fosso externo.

Gurri fez sinal a um legionário que estava de sentinela, pedindo para se aproximar. O soldado mandou-o avançar.

- “Sou Gurri, o mercador. Procuro Máxilio. Disseram-me que estaria aqui a cumprir serviço.” E adiantou mais: - “Venho de Roma e trago-lhe notícias, enviadas pela família dele.

- “Espero que sejam notícias péssimas. De preferência, que obriguem essa besta a partir. É um verdadeiro animal, até com os camaradas de armas. Não confio nele e, na verdade, não sei se confie em ti também, já que vens da parte dos dele, que devem ser todos uma corja.”

- “Nada tenho com essa gente. Apenas faço o favor – bem pago! – de lhe trazer as novidades. Não te direi quais são, mas talvez sejam do teu agrado…”, disse Gurri, com um piscar de olhos para o interlocutor.

- “Por Saturno, vou já enviar alguém a avisar o tratante”, respondeu a sentinela, com alguma esperança de ver Maxílio deprimido e, quem sabe, mesmo a despedir-se dali. – “Espera junto aos da tua comitiva.”

Não demorou muito a que o próprio Maxílio surgisse na embocadura da cerca. Viu-se que sentia o mesmo pelo legionário que o mandara chamar. Trocaram olhares feros quando se cruzaram. Avançou ao encontro dos Celtas.

- “Cheguei a pensar que o medo vos impedisse de cá vir. Afinal enganei-me. Prossigamos então o que acordamos. Ireis comigo à minha tenda, vós os dois e não mais do que outros dois, como guardas. Teremos de ser breves e concluir o negócio antes que comece a levantar suspeitas. Sigam-me os quatro.

Quando se chegaram ao legionário que permanecia na entrada, Maxílio fez uma cara de nojo e atirou-lhe: -“Estes mercadores vão comigo lá dentro. Vêm de longe e têm muito para me relatar. Vou conceder-lhes um breve descanso e alguns mantimentos.

-“Sabes que isso é irregular. Os civis só podem entrar no campo sob condições muito específicas e com ordem superior”, replicou o outro.

-“Cala-te obtuso, prostituto! Olvidaste que me deves 200 sestércios, perdidos no jogo dos dados?! Queres que tos exija aqui e agora, imbecil?! Neste momento, sou eu o teu superior e digo-te que olhes para o lado e assobies. Vou passar com esta gente e ficas mudo e ceguinho, ouviste?!

O legionário assim fez, virou-se para o Sol e manteve-se calado e quieto. De facto, tinha uma razão muito pessoal para desejar o desaparecimento de Maxílio.

Entretanto, Rubinia não deixava de estar, desta feita, verdadeiramente nervosa. Sentia a presença de Tongídio e receava não se conter se o visse. Teria de ser forte e manter a charada. Logo, logo, estaria nos braços do seu marido. Alépio pressentira-lhe essa fraqueza. Colocou-lhe a mão no ombro e apaziguou-a: - “Tu vais conseguir. Não será agora que deixarás cair essa tua força admirável. Lembra-te que já falta pouco…”.

Dentro do perímetro da fortificação, a organização era perfeita e seguia a regra: As vias cardo e decumanus traçavam os eixos centrais do espaço, segundo as quais, em linhas paralelas e perpendiculares, se dispunham as tendas. Ao centro e na encruzilhada encontrava-se o pavilhão principal, onde se concentrava o governo.

Enquanto percorriam o cardo, para Norte, os Celtas gravavam tudo o que viam. O privado de uma Legião era algo fabuloso e que impunha respeito. Centenas de tendas, exactamente espaçadas umas das outras, perfeitamente alinhadas e, gravitando à sua volta ou ocupando-as, milhares de homens desenvolviam diversas actividades e aprestavam-se a várias artes. Era uma verdadeira cidade.

Já nas proximidades do muro extremo, oposto ao que atravessaram à entrada, viraram numa das vias à direita e continuaram no encalço dos aposentos de Maxílio.

O Romano tinha prevenido os colegas de tenda que fossem dar um passeio e só regressassem bem tarde. Queria ficar a sós no abrigo.

O interior da tenda era absolutamente díspar da ordem reinante no espaço externo comum: pertences pessoais, roupas, armas e demais bens estavam completamente desorganizados, misturados e espalhados por todo o lado.

Maxílio desocupou uma das liteiras, tirou de uma bolsa os objectos de ouro e espalhou-os sobre a superfície de couro que servia de colchão.

-“Cá estão as minhas belezas! Digam lá que não são de fina lavoura? Apreciem e despachemo-nos.”

Gurri disse a Alépio e a Bragi, tratando-os como servos e aproveitando para os enviar para o exterior: -“Vocês os dois esperam lá fora. Rua!”. E depois que saíram sentenciou: - “Não podemos confiar em ninguém. Se nos vêm com muito valor, são bem capazes de nos cortar a garganta enquanto dormimos.”

Depois de se mostrar muito interessado nos artigos, analisando-os cuidadosamente, Gurri fez a sua oferta: - “Damos-te 10 áureos e 50 denários pelos 15 anéis e estes 2 torques. O resto não nos interessa.”

Estás demente, ó Celta?! Só os dois torques valem isso! Tratemos disto de forma ajuizada que eu já estou a perder a paciência!”

O Vacceu, na realidade, queria ganhar tempo, para que os dois companheiros dispersassem a tagarelar, de modo casual, pelo campo. E conseguiu.

-“Talvez tenhas alguma razão. Mas sabes que o negócio não se confere de razão. Apenas se baseia na oferta e na procura. Há neste momento, por causa das guerras, muita oferta. Todavia, está bem, subo a parada: dou-te 20 áureos pelo conjunto. É pegar ou largar.”

-“Raios! És um bárbaro tinhoso, filho de uma mula casmurra! Pensava ter aqui a minha aposentação. Assim, ainda não chega. Hum… está bem, selemos o trato. Tenho de me livrar disto.”

Mal acabavam de fazer a troca, ouviram uma voz: - “Olha lá Maxílio, estes dois passarões Celtas afirmam que estão contigo. Andavam a vadiar pelo campo. Apanhamo-los e trouxemo-los até ti. Por acaso não sabes as regras?

-“Márius, meu bom amigo, ainda bem que os encontraram. Estávamos exactamente aqui preocupados com o que teria acontecido a esses servos deste mercador, que veio até mim, nas graças de Mercúrio, para me trazer notícias da minha saudosa mãe. Está doente, a pobre…”

-“Deixa-te lá de falsas comiserações, que eu conheço-te bem. Põem-nos a caminho extramuros, enquanto não sofres as consequências.”

Maxílio, que já tinha o que queria, apressou os Celtas a saírem do campo.

Quando regressava para dentro, dirigiu-se novamente ao legionário que havia vexado e disse-lhe: - “Olha lá, percevejo de prostíbulo, hoje estou um benemérito: logo vou dar-te oportunidade de recuperares os 200 sestércios, ao jogo. De qualquer forma, aparece, para jogar ou para pagar.” Cuspiu e entrou.

Alépio piscou o olho a Gurri e Rubinia e incitou o cavalo a passo de trote. Já tinha as coordenadas que pretendiam sobre os prisioneiros. Encontraram-nos quando vasculhavam o campo. Enquanto não foram interpelados, embora sempre sob observação desconfiada dos romanos, que os julgavam mercenários a seu soldo, lograram conhecer bem as áreas estratégicas da toca do inimigo.

 

(continua…)

 

Andarilhus

V : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 08:25
Quarta-feira , 04 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (10º episódio)

 

http://web.quick.cz/remsikj/Stradonice-oppidum-m.jpg

 

(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/47017.html)

 

Sekia situava-se numa zona de quase terra de ninguém, entre os territórios celtiberos, governados pelos Aravecos, a partir de Numância, e os domínios dos Iacetani, povo que adoptara os Montes Pirenaicos para sedentarizar.

Apesar dessa espécie de orfandade de pátria, Sekia sempre fora um entreposto de muitas culturas e encruzilhada de muitos destinos. Tinha agora os Romanos a fazer-lhes sombra.

A mescla civilizacional estava bem exposta na cidadela. Os motivos e construções orientais interagiam espontaneamente com a cultura grega e romana e tudo “esculpido” sobre o cenário autóctone, ibero. Pelo mesmo diapasão, as gentes também não escondiam os seus traços de origem. Quem diria, um lugarejo daqueles, perdido na geografia das potências da Terra, tinha a capacidade de atrair tão eclética presença humana.

O povoado era simples, composto sobretudo por áreas habitacionais, espaços de pequenas lojas e tabernas, locais religiosos e demonstrava pouca inspiração militar.

A zona comercial era particularmente movimentada e colorida, sobretudo pelos rabiscos engenhosos e jocosos, de sátira objectiva, que despontavam nas paredes, como heras e arbustos da época. Bem curtida pelo Sol, patenteava a confusão de aromas misturados de comidas exóticas e perfumes orientais, carregava a acuidade visual com a sobreposição de criativas e muito ilustradas tabuletas publicitárias. Os metais brilhavam descaradamente, ofuscando os olhares mais interessados. As mais belas armas da Ibéria, sobretudo, e de todas as partes, em geral, reluziam na imaginação dos aventureiros que passavam. As tabernas vendiam jarros de convívio e canecas de boa disposição, ainda mais acalentadas por uns belos nacos de veado assado ou javali cozido. O pão de farinha de bolota era rei por aquelas mesas e meigo às mãos de todos. Muitos dos negócios aí se concretizavam, entre duas goladas e um aperto de mão.

Foi numa destas vendas que parou o nosso grupo. Num recanto exterior, sentaram-se e pediram cerveja, para refrescar.

- “Nunca tinha visto nada assim. Isto parece outro mundo!”, disse um dos Vacceus de Gurri.

- “Shiuuu! Mantenham-se distraídos e naturais. Vêm aí os Romanos…”, sussurrou Zimio, ele que estava sempre vigilante como um falcão.

Eram sete. Talvez fosse uma patrulha que, ao passar próximo da civitas, resolvera escapulir-se ao serviço para acomodar a virtuosa fome e a excelsa sede.

Sentaram-se na mesa imediata, grasnantes e ansiosos por serem servidos: -“Ó taberneiro, seu imundo, isto é tábula que se apresente a clientes tão ilustres?! Vem cá pôr isto em ordem e asseado”, gritou, enquanto lançava um olhar sobranceiro e escarnecedor para a mesa de Alépio e dos seus. – “Vem servir Maxílio e a nata mais fina das gloriosas legiões da magnífica Roma!” Insistiu no olhar…

Já enjoava os Celtas. A vontade era cortar-lhe a garganta…- “Quietos, ninguém se mexe sem que eu diga tal”, impôs Alépio, numa movimentação suave dos lábios.

Quando se aproximou o taberneiro, o Romano esqueceu a mesa do lado e concentrou a sua azia naquele: -“Isto parece uma pocilga. Até a cloaca de Roma está mais limpa do que esta tábua onde serves as vitualhas. Pergunto-me como será a tua comida! Anda lá, passa esse pano untuoso e traz-nos vinho… do bom, senão sentirás as garras da águia!”.

Devido à crescente presença romana, o vinho começava a entrar nas vias mercantis da Ibéria e a aparecer nos estabelecimentos de comidas e bebidas do Nordeste.

Mesmo ainda sem os efeitos potenciadores de desregramento do álcool, Maxílio era inveteradamente desmedido no comportamento e na verbalização, sem se preocupar com o que dizia e com quem o ouvia.

-“Tenho de me desfazer dos objectos de ouro que extorqui aos prisioneiros – aqueles cães púnicos! – antes que alguém dê com a língua nos dentes e o optione descubra o que se passou. Hehehehe, alguns gemeram bem para me entregarem os bens! Sobretudo aqueles que tinham os anéis muito apertados. Mas deram-me trabalho: depois de lhes cortar os dedos, tive de lavar o sangue daquelas preciosidades, malditos!” Soltaram todos uma audível e prolongada gargalhada.

O espírito de comerciante de Rubínia tomou-a num ápice. Viu ali a grande oportunidade por que aguardavam. Com os próprios companheiros perplexos e sem reacção, deixou tombar ruidosamente - num gesto simuladamente inadvertido e ingénuo -, a trouxa onde carregava os objectos metálicos, espalhando-os sobre a mesa e remexendo ostensivamente sobre os de ouro, enquanto os embrulhava novamente, de forma precipitada.

De seguida e deixando escapar algum (falso) nervosismo, pela forma enleada e demorada com que abriu uma generosa bolsa, onde se podia apreciar uma avultada maquia em moedas de grande quilate do mesmo metal, solicitou em voz clara: - “Taberneiro quanto é a nossa conta? Temos de seguir caminho. Temos negócios a realizar ainda hoje…”.

Os companheiros entreolhavam-se admirados: ainda não tinham acabado a bebida e não tinham planos para seguirem… Mas, logo perceberam o que motivava Rubínia.

Maxílio, velha raposa, não perdera um só momento do que se havia passado na mesa ao lado. Arreganhou os dentes, como se acendesse a lucerna das ideias. Levantou-se abrupto e dirigiu-se ao grupo: - “Então Celtas, sois comerciantes? Que artigos transaccionais? Será Ouro?”.

Rubínia, com a mão pelas costas, segurou a espada de Zímio dentro da bainha. Ia falar, porém, Gurri, entendendo agora o objectivo da mulher e para manter a farsa bem montada, assumiu o papel de líder viril da caravana. Ergueu-se rapidamente, em simultâneo que puxava o braço a Rubínia e a orientava para que se sentasse: - “Sim Romano, somos comerciantes Vacceus. Cambiamos sobretudo ouro em moedas por ouro em peças de ornamentação. Pareces interessado: queres comprar ou vender?

Maxílio fez uma careta de desconfiança. Por uns segundos pensou que urgia realmente libertar-se dos bens que havia roubado. – “Sentemo-nos”, disse.

Completamente alheado da possibilidade da sua conversa anterior com os camaradas ter sido escutada, retomou num tom, para si incaracterístico, de quase segredo: -“Digamos que poderei ter alguns objectos valiosos. Legado de guerra, retirado àqueles que se atreveram desafiar as águias de Roma e que, por isso, tombaram nos braços da morte. Pagais bem?

- “Se os objectos que afirmas que poderás ter forem de qualidade e boa arte, avaliaremos e pagaremos bem o espólio.”

- “Muito bem Celtas. Vou dar-vos algum crédito. Porém, se houver alguma trapaça, pagareis ainda mais caro… E para que não haja dúvidas, amanhã, tu e a mulher, devereis ir ao nosso campo militar, que fica a alguns centos de passos deste lugar. Aí chegados, avisai as sentinelas que quereis falar com Maxílio. Se vos perguntarem o que vos leva à minha procura, direis que vindes do porto de Óstia e tendes notícias dos meus familiares. Levai bom dinheiro, porque será necessário. Ave!

- “Vamos, seus calões, toca a levantar! Temos uma patrulha para concluir! O Centurião e o optione ainda aparecem por aí à nossa procura e depois temos de lhes pagar umas ânforas de vinho!” Nova gargalhada acompanhou o movimento alvoroçado de arranque dos legionários.

Alépio e os demais mantiveram-se quietos e relaxados, com a satisfação estampada no rosto: com a mestria de Rubínia, tinham acabado de conseguir um salvo-conduto para o interior do campo romano…

 

(continua…)

 

Andarilhus

IV : VIII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 18:05
Terça-feira , 03 de Agosto DE 2010

Por Ti Seguirei... (9º episódio)

http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/img/asterix6.jpg

 

(continuação de http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/46631.html)

No alvorecer daquele dia tão aguardado todos mostraram a costumeira destreza no arrumo do arraial e retoma da posição de marcha. Sem grandes demoras com as necessidades do organismo, puseram-se em curso, a passo ligeiro.

Na comitiva de resgate de Tongídio e companheiros, Alépio contava com 3 dezenas dos seus homens, acrescidos de Gurri e dos seus 15 Vacceus, aos quais se juntavam ainda Zímio e Rubínia.

A primavera mostrava já o seu magnífico esplendor. Os dias, sob os auspícios do avanço indomável da criação, ganhavam cor e calor, o que alegrava o turbilhão de vida, nas suas múltiplas formas e na proliferação de novos e carnudos odores. A natureza parecia mais composta, mais cheia, mais plena, com outras vestes vegetais e animais.

 

Tinha passado mais de meio ano desde que os Romanos haviam desbaratado o exército de Aníbal. Após a batalha principal, perseguiram os fugitivos por 3 ciclos completos da Lua, atacando as bolsas de resistência que entretanto se iam formando em sistemas de defesa muito rudimentares e votados ao fracasso, face ao poderio do predador.

Tongídio foi capturado numa dessas rixas finais. Lutou como um urso que vê as suas crias em perigo. Devido à sua prodigiosa força e furiosa determinação, os legionários fizeram o possível para o capturar vivo. Seria um esplêndido despojo de guerra e proveitoso escravo. Porém, pagaram caro a ousadia: todos os que se aproximavam demasiado e ficavam ao alcance da falcata de Tongídio conheciam o fio de corte da sua arma; sentiam os músculos a separarem-se e os ossos a quebrarem; ficavam toldados e jamais saiam das trevas da morte. No entanto, com o prolongamento do combate (os Romanos pareciam formigas a sair de um buraco do chão), o crescente cansaço e a acumulação de várias feridas, Tongídio começou naturalmente a perder faculdades, sobretudo na guarda. Posicionados no topo de um rochedo, dois legionários lançaram uma rede sobre o valente guerreiro, emaranhando-o em cordas. Assim que o conseguiram atirar por terra, todos os que o cercavam projectaram-se sobre ele, dando largas à sua raiva e dor, pela resistência do caudilho, deixando-o muito mal tratado, moribundo e exangue. Não foi todavia abandonado para repasto de animais necrófagos. Trataram-no e alimentaram-no, na perspectiva do futuro rendimento pecuniário.

 

Com o Sol na fase inicial de descida para Poente, o grupo viu, ao longe, primeiro uma e depois mais, colunas de fumo. Quando se aproximaram um pouco mais, confirmaram a existência de uma grande fortificação.

- “Alto! A partir de agora temos de manter o alerta em extremo. Os Romanos podem ter patrulhas exteriores ou postos de observação em pontos altos. Vamos repousar atrás daquele promontório. Depois iremos ver as cercanias e assegurarmo-nos que estamos e nos manteremos fora das notícias do inimigo”, disse Alépio.

As suas instruções foram seguidas, sem demora.

Entre o local em que se encontravam e o campo romano distava cerca de mil passos. O terreno de permeio tinha algumas mudanças suaves de relevo e áreas bastante arborizadas, o que facilitaria o avanço furtivo.

Sob um poderoso pinheiro discutiram as operações a realizar: Alépio iria, com alguns dos seus guerreiros, sondar a área à esquerda na direcção do assentamento romano e Gurri, da mesma forma, com os seus investiria pela direita. Combinaram evitar usar para já a força, a menos que surgisse algum motivo maior que tal o exigisse. Tratariam apenas de bater o terreno até ao inimigo, para o conhecer bem. O grosso do grupo aguardaria naquele sítio pelo regresso dos companheiros. Sairiam quando o Sol já quase tocasse o horizonte e regressariam pelo início da noite.

Foi dado o sinal. Em silêncio, partiram seis guerreiros, divididos em dois grupos. Deambularam em direcção da castra inimiga. Á aproximação correspondia também um desvanecer da luz do dia. Já com a noite por véu, os valentes de Gurri arriscaram-se a chegar mais perto. De tal forma que conseguiam enxergar nitidamente a paliçada, as torres de vigia e as sombras das sentinelas, recortadas pela iluminação das fogueiras do interior do campo defensivo.

A chegada de uma patrulha romana criou alguma tenção entre os que espiavam, mas também permitiu, com a abertura das portas, observar parte do interior da fortificação. Parecia confirmar-se a presença de uma legião completa. O objectivo não seria fácil de alcançar…

Todos os enviados regressaram sem sobressaltos ao ponto de encontro.

Os que aguardavam tinham preparado alguma coisa para aconchegar o estômago e, enquanto comiam, passaram a relatar tudo o que tinham presenciado e descoberto.

- “Quanto à zona coberta pelos Vacceus, não nos surgiu qualquer dificuldade. Encontramos uma vegetação frondosa, que nos permitiu chegar praticamente às portas do inimigo. Há apenas um espaço aberto de cerca de 30 paços até à cerca. A fortaleza é robusta e ostenta torres com muitas atalaias. Possui também um fosso a toda a volta. Não foi possível verificar qual a sua profundidade. Por dentro também parece bem organizada e julgo ser guarida de uma Legião inteirinha…

Alépio assentiu com um gesto da cabeça: - “Sim, também me parece. Tanto mais que estamos na rota Pirenaica, bem próximos dos portões da montanha. Este é um ponto estratégico para os Romanos, sem dúvida.

Também por isso, deparamo-nos a Poente com um povoado. Não é comum um posto militar ter uma civitas civil tão junto: Nem quinhentos passos distam um do outro! Talvez seja por força do comércio e da protecção dos comerciantes. Por esta rota circulam produtos de todo o mundo”.

- “Se se trata de comércio, então é comigo. O negócio corre-me nas veias!”, disse Rubínia, com os olhos a brilhar.

Alépio sorriu e continuou: - “Pelo que conseguimos apurar, o povoado parece ser de passagem livre. Inclusivamente, é frequentado pelos próprios itálicos.

Não entramos, porque a hora tão tardia poderia levantar suspeitas. Porém, amanhã, se verificarmos que é de salvo-conduto, iremos a Sekia – assim ouvimos a ser designada – e aí começaremos a gizar o plano de assalto à Castra.”

- “Proponho juntarmos alguns dos nosso trapos e quinquilharias em braçados de mercadoria. Escondemos neles as nossas armas, e passarmos assim disfarçados de pequena caravana mercantil vacceia”, sugeriu Rubínia. – “Eu e Gurri seremos um casal de comerciantes, seguidos pela guarda de segurança e servos que tratam dos bens. O que opinais sobre tudo isto?”

Enquanto Gurri franzia as sobrancelhas, Alépio enalteceu a formidável ideia da mulher, sem que deixasse escapar um sorriso maroto.

Como ficou acordado, trataram dos preparativos cuidadosamente. Cada um contribui com uma pequena bugiganga ou mesmo jóia. Juntaram o máximo de peças de vestuário possível, amontoadas apelativamente. Carregaram tudo em cavalos e partiram em comitiva: pretensos senhores e guerreiros montados, e supostos servos apeados, conduzindo os animais da carga.

Não foram todos. Seriam demasiados e despertariam curiosidade em demasia. Uma vintena de pessoas seria o suficiente, para a simulação e para uma qualquer, rápida, eventual fuga.

Rubínia, vestida desta feita com indumentária mais propícia ao género feminino, despertou a admiração de todos e suscitou mesmo alguns piropos brincalhões, que a fizeram corar e rir. Zimio, sempre muito grave e exacerbado no zelo pela sua senhora, rosnou qualquer coisa e projectou um olhar fero à sua volta. A risada foi geral, desanuviando assim a pressão da partida para a nova aventura.

Sekia era uma civitas posicionada numa suave e ampla colina. Tinha um ligeiro sistema defensivo e facilitava, de facto, passagem franqueada a quem quisesse ultrapassar os seus portões.

Pelo caminho que conduzia à entrada do povoado, marejava gente que oferecia todo o género de produtos e serviços. Abundavam os altares de circunstância, as promessas de cura de todas as maleitas e as ladainhas mágicas que trariam os favores dos deuses. Adultos afeitos a vender crianças para a condição de servos. Pedintes e mais pedintes, que mostravam miséria, corpos amputados e chagas sujas e purulentas, carregadas de moscas. Havia-os também com a lábia sabiamente apurada para decorar bem o conto do vigário, com promessas de fortuna, jóias e ouro falsos e com todos os esquemas possíveis e imaginários para ludibriar os mais argutos. Já para não falar dos angariadores de prostíbulos…

Estes eram os proscritos daquela pequena cidade. Viviam no centro do negócio, mas à margem do comércio. O comércio, esse, era para os mercadores autorizados e viajantes (que mostrassem seriedade; caso contrário, eram atirados para junto dos do caminho), dentro de portas.

Após toda aquela confusão e alarido, frenesi gestual, poeira e odores agonizantes, da subida, o grupo entrou por fim em Sekia.

 

(continua…)

 

Andarilhus

III : VII : MMX

publicado por ANDARILHUS às 17:50

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