Por Ti Seguirei... (24º episódio)

 

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(Continuação de: http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/50464.html)

Tongídio nem estava vivo, nem morto; delirava semi-inconsciente. Assim que perfurou a corrente do Ebrol, a intrepidez do salto também levou a que uma língua de rocha mais afiada lhe rasgasse profundamente a lateral, um pouco acima da cintura. A água quase gelada amorteceu a dor do choque e manteve o caudilho desperto para os acidentes de percurso do rio, evitando afogar-se.

Foi encontrado na margem, já junto a Pellenda, cambaleante e desvairado. Gritava: -“Rubínia, Rubínia…”. Ainda deu luta aos guerreiros que o capturaram. Só quando recebeu uma pancada seca na face, provocada com um escudo, é que terminou a sua resistência. Levaram-no amarrado a um toco, pelas mãos e pelos pés, como se fosse um animal caçado.

Prenderam-no ao tronco de castanheiro ancestral que marca o centro do povoado, debaixo de injúrias e agressões da multidão que ali se juntara para apreciar o maligno Celta do Poente. Muitos tocavam na tatuagem azul e escarneciam da sua condição humilhante. Tongídio, alucinado, ouvia-os, como se estivessem muito afastados e na entrada da caverna onde se imaginava. Encontrava-se realmente bastante mal tratado e carecia de cuidados, que ele próprio não conseguia executar.

Bolota, sensível ao pedido de Rubínia, dirigiu-se aos seus líderes e reclamou, fingindo-se muito desagradada: -“Já não era suficiente ter de tratar daquela mulher repugnante e ainda me incumbis de velar pela criatura asquerosa que está lá fora?! Demito-me das minhas obrigações e não aceito as vossas ordens. Com Cardo morto, pouco me importo de morrer ou ser banida! Odeio aqueles Celtas e todos os seus clãs! Para quê curá-los e gastar alimento com eles? Deixai-me cortar o pescoço aos dois, isso sim!!!

Arregalou de tal modo os olhos que os chefes Arevácos a julgaram ensandecer. Não ousaram calá-la, temendo que se perdesse de vez para o mundo dos loucos. E Bolota aproveitou para continuar, cada vez mais grave e alterada: -“Se os quereis guardar para os Romanos, deixai que cheguem os curas da legião para os tratar. Ou então... sim, isso é que é o mais acertado: obriguem a feiticeira a cuidar do outro. Ela já está o suficientemente bem para o fazer. Ela que se preocupe e tenha o trabalho!

O Conselho local reuniu logo ali, informalmente, e um deles respondeu a Bolota: -“Tu, viúva de Cardo, um dos nossos valorosos, liquidado por esses malditos Celtas, tens a razão contigo. Assim seja, a partir de hoje, a prisioneira será obrigada a tratar do enfermo. A ti pedimos-te apenas que lhe faças chegar o essencial para sobreviverem. É importante mantê-los vivos até os entregarmos aos nossos aliados do Lácio. Aliás, já enviamos mensageiros para os pôr ao corrente da situação”.

A mulher saiu a murmurar entre dentes e sem que a ouvissem: -“Se eu pudesse, amarrava-vos a um carvalho e pegava-vos fogo…”. Acelerou o passo na direcção da casa onde permanecia Rubínia.

-“Trago uma boa e uma má notícia. A má diz respeito aos Romanos. Tanto os aquartelados em Ardósia como a Legião que anda em expedição à vossa procura saberão em breve que estais aqui. A boa é que podes, desde já, tratar do teu marido. Anda, vou levar-te até ele e ajudar-te a recuperá-lo da doença e das feridas.

-“Agradeço-te do coração e não te esquecerei jamais, Bolota. Toma, dou-te algo que me é muito importante: a imagem de Trebaruna. A excelsa deusa tem-me ajudado sempre e julgo que sem ela nunca teria chegado tão longe. Recebe-a e que te proteja, tal como tem feito comigo. Tongídio aguarda-nos, vamos…”

Com um pano amplo, cujas pontas amarraram, de um lado, ao poste de castanho e, do outro, a duas varas, fizeram um pequeno abrigo para o enfermo, para o aliviar do forte Sol e da aragem fria da noite. Foi igualmente possível colocar uma manta forte no chão, para servir de leito.

O guerreiro estava mesmo naquele equilíbrio precário entre o ficar e a eterna despedida. Não reconheceu Rubínia nem reagiu ao seu abraço e beijo. A mulher ficou em pranto. Bolota consolou-a e obrigou-a a agir: -“Então? Não vês que no estado em que está dificilmente tem consciência do que o rodeia? Temos é de o tratar o mais célere possível. Trouxe uma pequena mó de pedra: macera essas ervas, que há pouco fui colher ao prado. Vamos preparar uma infusão e um unguento para o ferimento maior. Há que lancetar e expurgar bem a ferida, antes de o coser. Fica aqui nestas tarefas que eu vou buscar uma lâmina de sílex, uma agulha de osso, fio de linho e uns panos limpos.”

Rubínia lembrou episódios similares, difíceis, passados com seu pai, Físias, e retemperou o espírito, concentrando-se no lavor de salvar o seu amado. Tóngídio era duro e robusto. Poderia superar aquele momento de infortúnio.

Quando Bolota regressou com os utensílios, as duas mulheres consumiram a tarde toda a cuidar do prostrado. Aplicaram as ervas e ligaram a zona da costura com um tecido muito fino. Depois dos cuidados com o exterior do corpo, passaram ao amparo e reforço do organismo. Semi-desperto, o guerreiro foi tomando pequenos golos da infusão e depois de um caldo com mais substrato nutricional.

Rubínia foi atendida no pedido que formulou para pernoitar junto ao combalido e assim lhe proporcionar a assistência que fosse necessária. Acorrentaram-na igualmente ao lenho e ali permaneceu. Encostou-se à base rochosa e colocou a cabeça de Tongídio sobre as suas pernas, para que melhor repousasse. Estava cansada e ainda muito dorida dos ferimentos, todavia não conseguia adormecer. Admirou as estrelas e as figuras que com elas desenhava o céu nocturno. Sentiu necessidade de trautear uma música do seu povo, à qual foi adaptando as palavras do seu sentir:

“Este céu de estrelas

Que sobre mim ilumina

Meus tristes olhos,

É o mesmo manto de fogueiras

Que, feliz, contigo tantas vezes vi

Quando, nas colinas belas

Deitados em erva fresca e fina

Trocamos beijos em folhos,

Juras de amor que fugiam

Traquinas,

Pelas ladeiras,

Da nossa terra, onde contigo sempre vivi,

E morrerei…”

As lágrimas começaram a correr pelo seu rosto, contornando as mazelas. Deixou de cantar e conteve os soluços. Respirou fundo e sussurrou: - “Meu querido Tongídio, não me deixes. Temos ainda muito caminho para fazer. Recupera, abandonemos estas paragens e regressemos a nossa casa, onde tantos nos aguardam com a felicidade. Por ti seguirei, como sempre. Porém, a tua luz não se pode extinguir. Seria a minha cegueira, a minha desorientação…”.

Foi nessa altura que uma figura envolta numa grossa capa de lã, da cabeça aos joelhos, se aproximou e a questionou: - “Rubínia, como está o nosso bravo?

(continua…)

 

Andarilhus

XVI : IX : MMX

publicado por ANDARILHUS às 20:38