Por Ti Seguirei... (33º episódio)

 

 

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- “O meu povoado é mais humilde. Não tem tamanha expressão de vida pública e de espaços mercantis fixos, sociais e religiosos. Somos mais agricultores e criadores de gado e, na arte da permuta, viandantes. Obila é apaixonante… mas tenho tantas saudades dos meus lugares e do meu povo…”, deixou escapar Rubínia, entre soluços árduos de conter.

- “Espero que o regresso a Tanábriga já não demore. Esta praga romana que provoca a mudança e tresmalha a paz das pessoas. Porque não ficam pelos seus domínios? O que querem de cá?!”

-“Querem o mesmo que qualquer nação procura quando atinge estádios elevados de desenvolvimento: expansão e conquista. Os Romanos são uma força emergente que dificilmente será travada, sobretudo se continuarem a encontrar oponentes isolados e divididos entre si. E é isto que devemos evitar na Ibéria, para repelir ou, pelo menos, para atrasar as ambições de Roma. Nós, Vetões, apesar de ainda imunes aos avanços do inimigo, não descuramos a vigilância aos perigos efectivos. Temos observado com muita atenção as manobras e simulações dos povos que nos têm invadido. Os Romanos são, de longe, os mais astutos e premeditados. Não dão ponto sem nó. Tenho absoluta certeza de que, neste preciso momento, arquitectam um plano para explorar as circunstâncias. Adivinho que muitas novidades sobre o inimigo surgirão em breve.”

-“E que mal fizemos nós a esses Romanos, Talauto? Sempre vivemos livres neste nosso lindo território. É certo que, por vezes, ocorrem algumas querelas entre clãs, algumas campanhas de saque ou de represália, por motivos de proveitos ou amores. Mas, sempre tudo acabou a bem e os prejuízos são sempre contidos. Agora, esta ameaça externa prepara-se para escangalhar todos os equilíbrios e o nosso modo de viver e gozar as condições que os deuses nos ofertaram. O nosso mundo está em real contingência de desaparecer… E eu que tinha tantos planos para concretizar, logo que resgatasse Tongídio e retomasse as lidas diárias… Desejo ser mãe, por exemplo… Sonho em ter uma grande família e viver calma e tranquila ao lado de Tongídio e dos descendentes que ele me der…”

Rubínia e Talauto continuaram a analisar a situação e a discutir as possíveis soluções para a crise que abalava a Ibéria e anunciava a chegada de uma nova ordem, de um novo mundo. Os costumes e as maneiras de existência e coexistência entre homens e entre estes e a natureza e os deuses, construídos paulatinamente, com grande esforço de inúmeras gerações, enraizados em tempos tão longínquos, iriam, em breve, ser postos à prova e mesmo à sobrevivência.

Ainda na pele de três joviais catraios saídos de mais uma brincadeira marota, Tongídio, Gurri e Alépio, abandonaram finalmente as instalações das Termas. Nem as águas tépidas e tão pouco as quentes haviam sortido efeito de relaxamento e amolecimento dos guerreiros. Pelo contrário, denotavam mais energia e desenvoltura nos corpos. Talvez fosse a leveza provocada pela profunda limpeza a que se submeteram.

- “Seja qual for a razão desses semblantes taciturnos, estão os três convocados, e principalmente Talauto, para a visita às áreas de treino e aquartelamento dos guerreiros!”, gracejou Tongídio.

Com a chegada do grupo, Rubínia apartou as lágrimas e as tristezas, contagiada pela euforia e alegria sorridente que agora a rodeava: -“Apenas recordava que ainda há a resolver mais alguns assuntos para podermos voltar para casa, meu marido. Logo trataremos disso, vamos então apreciar a arte de briga dos mancebos de Obila.”

Não saíram da mesa sem tomar mais uma caneca bojuda de cerveja e, assim recompostos, lá seguiram para o local previsto.

Do largo central alongava-se a rua principal da urbe, por onde continuava a pitoresca extensão de lojas comerciais. Até que, a dado trecho, reduzia a largura daquela e o piso perdia o lajeado para dar lugar à terra batida, polvilhada de pedras pequenas e soltas, convertendo-se então em mais uma azinhaga, entre tantas outras, que serpenteavam em torno das habitações de outra área residencial.

O casario localizava-se numa destacada elevação. Abaixo encontrava-se o amplo espaço destinado à disciplina marcial, imediatamente antes da muralha defensiva interior.

Antes de iniciarem a descida, Talauto estacou e apontou para o exterior dos muros da cidade: -“O terreiro em frente, após estas portas da urbe, é o local destinado às actividades lúdicas, desportivas ou de combate, que aglomeram grandes multidões. Ali irão realizar-se os jogos marcados para daqui a poucos dias. Logo a seguir, no horizonte e onde começam a surgir os afloramentos graníticos, existem, desde os primórdios do povoado, grandes altares e monumentos de sacrifício aos deuses, por nós adorados. Haverá certamente ocasião para visitar e honrar esse local sagrado.”

Dada a explicação, retomaram o caminho inclinado, ondulante e escorregadio até ao aquartelamento.

Os guardas colocaram-se em reverência ao seu comandante e deram passagem ao grupo. No reduto das armas, alguns cavaleiros ensaiavam manobras de ataque em formação, movimentando-se primeiro numa aparente anarquia, para depois cerrarem fileiras e investirem como um corpo coeso contra um inimigo imaginário. Os adversários de madeira tombavam com estrondo ao embate das lanças e a passagem dos cavalos.

Os exercícios continuavam, repetindo-se vezes sem conta e integrando jovens guerreiros na força equestre. Talauto levou os companheiros até junto da cerca dos cavalos, mostrando os admiráveis equídeos vetões, adestrados e preparados desde pequenos para a guerra e para enfrentarem os perigos e ameaças, sem recuarem.

Terminados os treinos de cavalaria, entraram na arena os guerreiros peões, aptos ao manuseamento de armas diversas. Os Vetões experimentavam todo o armamento utilizado, especializando-se depois numa arma específica, a qual designava a sua filiação ao corpo respectivo do exército. Estes corpos de guerra praticavam individualmente, mas também em sistema com os restantes, procurando sempre estratégias combinadas do conjunto.

O chefe cicerone convidou os restantes a um pequeno repouso, sentados sobre uns fardos de palha. Dali viam os combates corpo a corpo dos homens de falcata, punhal e machado, assim como o treino de tiro ao alvo de arqueiros e fundibulários.

Entre as dezenas de homens que se batiam no recinto militar, destacava-se um, alto e magro e ainda mais moreno, o qual, com uma espada algo diferente da falcata (ainda mais curvilínea, mas mais fina e leve), desarmava e derrubava os oponentes rápida e destramente, atraindo sobre si cada vez mais adversários e enfrentando vários simultaneamente. Via-se que estava descontraído e com a situação controlada. Dominava plenamente a arte da espada, vencendo sem ferir qualquer dos companheiros.

Como todos os olhares incidiam sobre aquele ponto da algazarra, Talauto, sorridente, apresentou a figura que cativava a tenção: - “É conhecido por Mauri. Encontramo-lo ainda de tenra idade a Sul do nosso território. Julgamos que seja originário das tribos além Mediterrâneo. Terá passado para a Ibéria com a família, aquando de mais um daqueles períodos de miséria dos povos de lá. Estava só; talvez se tenha perdido ou mesmo ter sido abandonado. Foi criado pelo guerreiro que o recolheu e o encarou como filho. Hoje é um dos nossos e, como vêm, um dos mais dotados.”

-“Sim, parece ser mestre no uso daquela espada estranha.”

- “Aquela arma tem por nome cimitarra, Alépio. É muito comum nos povos do deserto do Norte de África. Foi encomendada a um mercador e oferecida a Mauri quando passou as provas de iniciação de guerreiro, pelo seu excelente desempenho e por todos os serviços que tem prestado ao nosso clã.”

-“Tem movimentos diferentes… sem aplicação de grande força. Concentra o combate na agilidade e sobretudo nas fragilidades e erros do adversário… Não vos parece?

-“Sabes Tongídio, todos nós já vimos alguém a combater desta forma e com grande, digamos… desconforto para os Vacceus. Alguém que está aqui. Só vi um guerreiro semelhante em Rubínia, quando enfrentou um dos meus: Urtize!

Todos se viraram para a mulher, que ruboresceu e encolheu os ombros com um olhar sorridente.

-“Gostaria de experimentar esta forma de luta. Poderei combater com Mauri, Talauto?

-“Julgo que sim, desde que não te sintas afrontado se não conseguires a vitória, Tongídio. Vou chamá-lo.

O Vetão adoptado aproximou-se, baixou a cabeça em sinal de obediência e respondeu afirmativamente ao solicitado. Recuou para a arena e avisou os companheiros para se afastarem. Ficou a aguardar pelo Celta.

Tongídio, apertou um pouco mais a couraça, tirou todos os adornos desnecessários e empunhou a falcata, aproximando-se de Mauri. Frente a frente, trocaram sinal indicativo de estarem prontos.

O Celta, sempre intrépido, tomou a iniciativa de ataque. Elevou a arma sobre Mauri, que se limitou a desviar e a aproveitar o desequilíbrio contrário para investir a espada curva. Desta vez, foi Tongídio quem, com igual flexibilidade, se desviou do contra-golpe. Prometia.

Novamente, o visitante apontou a arma e projectou-a em frente, obrigando o outro a fazer ressoar o metal, desviando o gume afiado. Mauri defendia-se bem das investidas e procurava contra-atacar nos momentos em que Tongídio perdia algum do prumo posicional. Porém, este, energético, recuperava bem das exposições momentâneas. Prolongou-se o combate nesta igualdade de forças.

Entretanto, todos os guerreiros haviam parado os exercícios para acompanharem o duelo que opunha um dos seus campeões ao estranho.

Raramente Mauri encontrava rival à sua habilidade. Desta vez, o adversário não se vergava pelo simples engenho. Tinha de fazer algo mais. Obrigar o Celta a um desgaste físico fulminante não seria solução; ele mostrava-se robusto e incansável. Apanhá-lo com um golpe de surpresa também parecia não resultar. A única forma de o vencer passava por se esmerar na destreza de movimentos, procurando desarmá-lo.

A leveza da cimitarra rasgava o ar de forma graciosa e quase imperceptível, pela sua velocidade de deslocação. Só muito concentrado, Tongídio obstava e se defendia do brilho frio e repentino da arma de Mauri. Quando podia, atirava com pancadas fortes da rija falcata sobre a aparente fragilidade do outro ferro. Mas aquele também não demonstrava mossa e aguentava firme. Não se adivinhava desfecho e assim foi passando o tempo, com cada vez mais gente a assistir a tão interessante embate.

Cada qual foi dirimindo as suas múltiplas técnicas, de força, de coordenação de movimentos e até de subtileza. Quando algum dos beligerantes parecia enfraquecer, logo reacendia o empenho e passava para o domínio do combate.

Transpiravam e a poeira levantada agarrava-se ao corpo, colorindo-os como pequenos espectros alvos. A boca de ambos estava seca e a voz já rouca. Os cabelos encrespados e grossos pela fuligem de terra.

O crescendo cansaço produzia algumas abertas na concentração e tornava os movimentos menos calculados e mais instintivos. Mauri conseguiu tombar Tongídio pelo solo, porém aquele, num movimento de pernas, rasteirou e levou o primeiro a igual queda. Ergueram-se como gatos, ambos rodaram em busca do oponente e, quando se confrontaram, estavam bem próximos e cada qual com a arma adversária a fazer pressão sobre o pescoço. Um empate. Após uma luta emocionante, os deuses haviam decidido que nenhum sairia vitorioso daquele momento memorável.

Passaram-se alguns momentos, de respirares silenciosos, até que a multidão começou a gritar em êxtase e a aplaudir, aproximando-se dos contentores, que continuavam na mesma posição de impasse. Tongídio e Mauri olhavam-se ofegantes mas inertes. O Celta piscou o olho ao Vetão, que sorriu. Deixaram tombar as espadas e abraçaram-se, elogiando-se mutuamente.

- “Tenho de voltar às Termas!!!”, gritou Tongídio para os companheiros, que corriam para ele.

 

XIV : I : MMXI

Andarilhus

publicado por ANDARILHUS às 09:35