Por Ti Seguirei... (39º episódio)
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O início tempestuoso dos jogos consumiu praticamente a manhã. Quando a normalidade foi reposta, com cada qual contido no seu lugar e em ordem, para continuar a cerimónia inaugural, Talauto retomou as palavras de acolhimento, recuperando a comunicação no ponto em que havia sido interrompido.
-“Acabamos de assistir a mais uma prova que relembra a previsão que convosco partilhei, sobre o futuro próximo. Os deuses manifestaram-se claramente: só colaborando conseguiremos vencer um inimigo poderoso. Hoje, um touro bravo, amanhã, uma torrente gigantesca de soldados disciplinados e tácticos.
Passemos agora aos jogos. Tenho a certeza que nos irão elucidar, uma vez mais, o quanto poderemos ser maiores, em conjunto, porque, cada um dos nossos valorosos povos é uma das pedras basilares da fortaleza que é a Ibéria. A clarividência e a destreza de cada arte e saber, reunidos, serão o segredo da resistência do nosso baluarte comum. Cada um de vós trará o seu melhor e será complementado pelo melhor aportado por cada um dos outros.
Digam-me: não será importante conhecermos quais os valores distintos que temos para conjugar?
Quais os que estão mais habilitados para a estratégia e a astúcia das manobras e acções, singulares ou em equipa? Quem, entre nós, tem a maior destreza e acutilância no manusear de armas? Onde estão os mais forte e ágeis nas lutas de corpo a corpo? E os de olhos e precisão de falcão, quando se trata de atingir um alvo à distância? Quais os mais rápidos e resistentes à fadiga?
O que poderemos aprender com os mais exímios? Como poderemos reunir tanta aptidão, inteligência e energia em proveito da Ibéria? E como reconheceremos os líderes naturais que potenciem os nossos virtuosismos?
Afinal, o quê e quem és tu Ibéria?! O que queres para o teu advir?!”
O discurso inflamado do vetão cativou mesmo os mais alienados e calou completamente os burburinhos. As pessoas pareciam fascinadas e a visão de outros tempos e de outras formas de existência pareciam mais razoáveis e até aceitáveis. Aquele desafio de procurar os mais notáveis, como exemplo para uma plataforma de congregação, que contribuísse para o interesse geral, era algo estranho, mas que deixava o pensamento em alguma convulsão.
Face ao silêncio da plateia, dominada pelas suas palavras, Talauto, continuou, agora mais prático e de forma a desmanchar aquele feitiço de mudez e seriedade.
- “São variados os jogos que iremos disputar! Eis a relação deles: luta com armas - duelos à espada e jogo do pau; luta corpo a corpo; corrida - a pé e a cavalo; captura de cria de javali; arremesso de funda e arco; jogo da calva. Finalmente, a subida ao pinheiro ensebado. Agrada-vos o programa?!”
A multidão sacudiu-se de gáudio e saiu do aturdimento, resfolegando em gritos e assobios. Talvez fosse do Sol impiedoso, mas o que era certo é que os pensamentos e as sensações agitavam-se numa turbulência desenfreada, como se corressem, libertos das garras de bicho obscuro e medonho, sem saber ainda a direcção que tomavam e qual o destino a que pretendiam chegar.
Talauto ainda não terminara. Com gesto simples para a populaça, já rendida ao orador, mostrou intenção de continuar. Escutaram-no, atentos.
- “Antes do inicio das provas e como a tarde já entrou neste dia inesquecível, convido-vos a descerem ao campo dos jogos e conhecerem os campeões dos diferentes povos, o júri e demais participantes neste evento. Entretanto, dêem também alguma atenção à fome e à sede”. Apontou para o caminho de acesso ao recinto e fez um movimento de termo.
A aproximar-se, em longa fila, vinham carros puxados por vacas, com grossas rodas de madeira, que chiavam agudamente, naquele som característico do gingar do eixo motriz dentro das ganchas de suporte, muito polidos por anos de fricção. Os carros traziam grandes cargas de pão de bolota, castanhas em conserva, carne seca, azeitonas, frutos silvestres, mel e barricas de cerveja.
Com excepção dos arévacos, que empurravam rudemente todos os que se chegavam ao seu alcance, aquela grande massa de gente conviveu entre si, trocando ideias, risos e cumprimentos. E assim se passou a fase de maior canícula.
Já com o astro solar numa posição bem menos perpendicular, com as vitualhas esgotadas e após curtos descansos de sesta, os insignes ocuparam a tribuna, enquanto as pessoas se distribuíam pelas encostas que coroavam a área dos jogos. Concorrentes e júri aguardaram pelo início da competição.
Talamo assomou-se à frente do terraço e dirigiu-se aos expectantes: - “A prova inaugural dos jogos será a luta com varapau. Ainda antes de terminar o dia, teremos a luta de espadas e o combate corpo a corpo. Amanhã, pela manhã, sairão para os bosques os grupos da captura da cria de javali e terão todo o dia para regressarem com uma presa, viva e sem qualquer ferimento. Por cá, teremos as corridas, a pé e a cavalo. De tarde, será tempo das provas de pontaria: tiro com arco e funda. No último dia, daremos lugar ao jogo da calva e ao trepar ao pau de sebo.
Toque-se a música de entrada dos competidores e que os representantes das comitivas, em conjunto com os ajudantes da organização, preparem o arranque das provas. Serão os juízes a dar início ao torneio. Que ocorra ao gosto dos deuses e quanto a vós, apreciem.”
Os aplausos soltaram-se, enquanto dois druidas chamavam os candidatos à vitória no jogo do pau. A prova decorreria por eliminatórias, sendo classificados para a ronda seguinte aqueles que alcançassem, primeiro, 3 toques no tronco ou cabeça do adversário ou o conseguissem desarmar.
Os guerreiros, munidos de bastões, superiormente decorados, de madeiras resistentes mas de fibras muito flexíveis, acercaram-se do campo da acção. Segundo as regras, estavam descalços e só com túnica de lã sobre o corpo. O júri começou por fazer o sorteio. As pedras tiradas do vaso cerâmico ditaram as parelhas para combate.
Os designados pelos Turdetanos e pelos Calaicos iniciaram o torneio. Seguiram-se os restantes, em combates rápidos, seleccionando-se os mais habilitados para a 2ª fase. Esta decorreu igualmente sem disputas renhidas. Ficaram para a última ronda os 3 concorrentes que melhor dominavam a arte. Teriam de jogar entre si para se decidir qual ficaria com mais pontos. No fim, após combates muito equilibrados, saiu vencedor o Cantábrico, superando o Asture e o Calaico.
Estava entregue o primeiro troféu. As vírias de prata iam para a montanha!
A prova seguinte exigia destreza similar, mas com arma mais curta: a espada. Apresentaram-se os candidatos, entre os quais, Mauri, pelos Vetões, Tongídio, pelos Lusitanos e Gurri, pelos Vacceus. Quis o sorteio que não se encontrassem na primeira classificação. Já na 2ª eliminatória, Gurri enfrentou o arévaco, Tanino.
A calma e olhar firme de Gurri incomodavam Tanino enquanto, frente-a-frente, se preparavam para o confronto. Com aquele jeito de erva daninha, cuspiu para os pés do vacceu e atirou-lhe, com rancor e soberba: - “Lembras-te dos dentes de Corveio? Hoje vou fazer saltar os teus e obrigar-te a engoli-los!” Gurri permaneceu impávido e sempre com o olhar fixo no oponente.
O druida fez o sinal aguardado. Como um relâmpago, o vacceu ergueu a espada e com tal força a fez tombar sobre a de Tanino, que ambas se quebraram a meio, no primeiro choque, atirando com Tanino pelo chão, embora sem qualquer ferimento.
Interrompeu-se a prova, para munir os beligerantes com novas armas, de gume rombo. Uma vez mais, confrontavam-se. Mas, Tanino recuou um pouco, na perspectiva de novo ataque rápido. Gurri manteve a postura, avançando decidido sobre o adversário. Começaram a troca de golpes, deixando o arévaco em grandes dificuldades para suster o poderio contrário. Todavia, Tanino, rés manhosa, tinha a mão cheia de terra que havia apanhado quando caíra pelo solo e, no momento oportuno de contacto físico com o vacceu, atirou-lhe a poeira para os olhos.
Momentaneamente, quase cego e fragilizado, Gurri ainda susteve as investidas iniciais do arévaco, que sorria e escarnecia do oponente. Por convenção, o combate terminava quando um dos lados tocasse o peito do outro com a espada. O atacante conseguiu finalmente encostar a arma ao corpo do indefeso Gurri. Porém, como a arma não tinha gume e não provocava ferida, Tanino insistia em repetir os golpes e a usar a espada como martelo, mesmo após ter sido declarado o fim da disputa.
Tongídio correu do seu lugar para assistir o amigo que estava numa situação muito perigosa, perante aquele rufia desejoso de vingança. E a bom tempo o fez. Naquela situação, o vacceu perdeu o equilíbrio e tombou pelo chão, ficando ainda mais exposto à fúria do outro. Tanino, depois de empurrar o membro do júri, preparava-se para bater com toda a violência na cabeça do prostrado: - “É agora que vamos contar os teus dentes todos!!!”. Tongídio lançou-se de longe sobre o arévaco, frustrando-lhe as intenções. Entretanto, chegavam diversos guerreiros que dominaram a situação.
Rubínia trouxe água e lavou os olhos a Gurri, que continuava sem se queixar ou dizer palavra. Alépio fazia um grande esforço para controlar Urtize e os restantes elementos da comitiva vacceia. Mais no epicentro da acção, muitos braços seguravam Tongídio que queria arrancar a cabeça ao arévaco. Este, por sua vez, ainda ria e apontou para o Lusitano: -“A seguir serás tu! Heehehehhe!!!!”.
Mas não foi. No seguimento de grande discussão entre os constituintes do júri, ficou decidido dar oportunidade a Tanino para continuar na competição, apesar do comportamento impróprio. Por seu lado, Tongídio venceu o seu adversário Cónio, assim como Mauri derrotou o Vascão. Os 3 continuavam para a ronda final.
Começaram o Lusitano e o Vetão. Curiosamente e tal como no treino, terminaram com um empate, com um toque em simultâneo. Abraçaram-se como irmãos.
Em continuação, Mauri enfrentou Tanino. Este não era par para o Vetão, que em poucos movimentos o desarmou, voando a espada para o meio da assistência. De lá, atiraram uma outra espada, vinda do seio dos arévacos. Este exemplar não era rombo, pelo contrário tinha a lâmina bem afiada. Porém, só alguém muito perto é que poderia avaliar esta mudança.
Ingénuo, Mauri continuou o combate dentro dos limites que tinha por certos para o torneio. Só quando começou a sentir uns ardores nos braços e pernas é que se deu conta que já tinha vários golpes bem entranhados na carne e largava pequenos fios de sangue. O sorriso sórdido de Tanino e um olhar mais atento para a sua arma, explicou tudo. Tomou consciência que lutava pela vida. Assumiu outra atitude de defesa, a qual sairia muito cara ao – agora - inimigo. Tanino já não lograva as facilidades de atingir Mauri como até ali o fizera. O Vetão, por seu lado, não queria simplesmente ganhar a contenda, queria mesmo dar uma lição completa ao arévaco. Por isso, atrasou o desfecho e golpe após golpe, foi marcando o corpo de Tanino de nódoas negras e alguns ossos partidos, excepto o peito. Tanino perdeu o sorriso e também os dentes de um dos lados do rosto, gritava por socorro e cambaleava. No crescendo da fadiga já não conseguia reagir a tempo com a arma e defendia-se expondo ao choque a parte do corpo que menos lhe doía. Era já um trapo disforme de humilhação humana.
Mauri também já não estava nas melhores condições. O esforço e a sangria lenta roubavam-lhe as forças e o discernimento. Com uma estocada fez ajoelhar o arévaco, agarrou-lhe os cabelos ruivos, puxando a cabeça para trás e expondo-lhe o pescoço. Abriu em grande angular o braço da arma e descarregou-o com toda a força sobre o peito do infeliz jocoso. Tanino aspirou e desfaleceu, com o externo esmigalhado, mais morto do que vivo. Mauri também ajoelhou e tombou para o lado, de fraqueza.
O Vetão não poderia disputar a vitória com Tongídio, pelo que a queriam atribuir a este. Contudo, o Lusitano não aceitou e desistiu da prova, garantindo que as vírias de prata fossem entregues a Mauri.
Andarilhus
XIX : IV : MMXI