Sexta-feira , 27 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (46º episódio)

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Dentro das muralhas, cuidavam-se os preparativos finais. Talauto dava as últimas instruções. Com excepção de meia centena de guerreiros, que se mantinham nos torreões e nas muralhas, sobre a porta principal, a maioria dos iberos concentravam-se no largo terreiro que antecedia a saída da urbe.

Sondaram-se os deuses. A imolação de dois cavalos revelou sinais propícios. Tomaram uma singela refeição e beberam a porção de guerra de hidromel. Votaram-se às divindades mais adoradas e verificaram os arsenais, as caetras, as armaduras e os sagum. Tingiram-se com os pigmentos e os óleos, exortando o espírito guerreiro. Impuseram os torques e as vírias e despediram-se entre si.

Chegado o momento, com o Sol ainda forte, mas mais próximo da linha do horizonte, a bater impiedosamente nos muros que se preparavam pata atravessar, Talauto deu a ordem que todos ansiavam.

Dezenas de gaitas-de-foles, num só tom, muito agudo, começaram a vibrar e a marcar avassaladoramente o espectro sonoro da zona, até bem fundo da atenção romana. O caudilho queria exactamente cativar os olhares dos inimigos. Naturalmente, os legionários pararam com os afazeres e focaram a origem do misterioso e exacerbado timbre que provinha de Obila. Confirmaram-no os das muralhas.

Os guerreiros seguiram as indicações do líder, subindo para as montadas, enquanto desembainhavam as falcatas ou preparavam os dardos e os arcos, para a acção. E só então se entendeu a genialidade de Talauto. Nos muros, os guerreiros começaram a pendurar os escudos polidos de cobre, os quais, por sistema de cordas, num ápice, revestiram a parede exterior da muralha, criando uma espécie de armadura de escamas cintilantes gigantesca. Como o Sol estava de frente e em fase descendente, foi com vigor que atingiu em pleno esta espécie de espelhos côncavos, reflectindo-se e projectando-se para o campo romano como uma luz extremamente intensa e que ofuscava os, então, atentos legionários, “cegando-os” e não permitindo visibilidade para o que quer que fosse que ocorresse junto a Obila.

De tal modo ficaram abstraídos que só se deram conta da surtida dos iberos quando estes, já próximos, lançaram os gritos de guerra, entre o barulho dos cascos velozes de centenas de cavalos. À passagem da onda ibera, os legionários que se encontravam nas linhas da frente não dispuseram de qualquer oportunidade de reacção. A maioria estava a trabalhar nas obras militares. Desarmados e surpreendidos, tombaram pelos golpes dos atacantes ou espezinhados pelos equídeos. As sentinelas ofereceram fraca oposição, dada a repentina e massiva investida dos homens de Talauto.

Entretanto, assim que espoletado o ataque, Zímio atirou-se ao poste fragilizado da cruz e fê-lo cair por terra, com o cuidado de não ferir Rubínia. Soltou-se igualmente, retirando a argola que se fixava em volta do tronco. Com a pequena serra começou a cortar as amarras que sujeitavam a sua senhora. Imersos no combate pelas próprias vidas, os guardas nada atentaram contra os prisioneiros. Entretanto, também Tongídio e Gurri acorreram imediatamente àquele ponto, libertando-os e colocando-os em montadas, prontos para partir.

Talauto atrasou a fuga o tempo suficiente para o socorro aos amigos. Assim que reunidas as condições, pegou na corneta de chifre e deu o toque de retirar. O mais de meio milhar de cavaleiros, de forma desordenada, dirigiu-se para Obila, desaparecendo novamente da vista dos inimigos, a para sossego destes, atrás da cortina de luz, agora já um pouco mais ténue.

Todavia, o comandante vetão assinalou o movimento seguinte, com o entoar de diferente sopro na corneta. À sua ordem, a força de cavalaria – à qual já se tinham somado os guerreiros que haviam ficado nas muralhas – reagrupou-se numa densa coluna, junto às portas da cividade, saudou a valente capital veta, deu meia volta e investiu segunda vez sobre os efectivos das legiões, que começavam a acudir aos feridos da primeira passagem.

Desencadeou-se então um incomparável abalo e maior sobressalto no aturdido inimigo, que calculava o recuo dos oponentes para o interior de Obila. A cavalaria ibera, como praga daquele clarão hediondo do castigo divino, avançou para a secção das defesas romanas, cuja edificação se encontrava mais atrasada, abrindo a passagem a corte de falcata, alargando uma clareira contínua por onde passava e pelo turbilhão desorganizado dos legionários. Sem grandes empecilhos, os guerreiros de Talauto entraram no âmago de 3 legiões, furaram o poderio romano e escapuliram-se para lá do assentamento inimigo, com destino a Ribasdânia.

Para trás deixavam algumas dezenas de baixas, preço quase insignificante – não se tratasse de vidas humanas – comparado com as centenas de mortos e feridos incapacitados, entre as fileiras romanas e arévacas. Trocavam também um povoado praticamente deserto pelo vexame ao invasor, ludibriado e manipulado, como se fosse um exército inexperiente. Conservavam ainda os recursos imprescindíveis para o confronto total e final. Não menos importante, recuperavam Rubínia e Zímio, elementos fundamentais do novo e crescente espírito ibérico!

Quando assente o pó e a situação acalmou, já o Sol desaparecia no horizonte, seguindo os iberos. Quintus Scipius, ainda à distância, observava agora Obila de portas escancaradas, na qual tanto labor de assédio tinha concentrado, obstinado na sua tomada, como ponto-chave da conquista da Ibéria. Esforço em vão. Perda de tempo! Que notícias enviar agora ao Senado?!

Destacou tropas batedoras para as entranhas de cividade. Encontraram apenas alguns pobres de espírito e de ânimo. Da elite dos diferentes povos peninsulares e das riquezas não reportaram quaisquer sinais. Haviam-se sumido! Restos de fogueiras, um pouco por todo o lado, revelavam a política de terra-queimada; deixaram apenas as pedras e o silêncio. Que notícias enviar agora ao Senado?!?

Irado, o General Supremo ordenou a prisão dos informadores arévacos. Somou-lhe mais cinquenta compatriotas, escrutinados ao acaso, e mandou cortar-lhes a língua. Depois, ainda não satisfeito, mandou crucificar os iberos patriotas feridos e cativos, desta vez com o requinte de os cravejar duramente à madeira e, finalmente, mandou chibatar os quatro centuriões responsáveis pela defesa da área por onde entrara e fugira o inimigo.

Demoraram mais 5 dias para levantar o acampamento, queimar as estruturas que haviam já montado e colocarem-se em marcha para Ribasdânia, na peugada dos Iberos. Sabiam qual o destino a tomar, após torturarem um dos vetões que tivera o azar de tombar do cavalo quando passava no reduto romano. Arrancaram-lhe a informação e também a pele…

Em Obila ficava uma guarnição de arévacos: os que saravam da punição da extracção da língua e mais algumas dezenas. Permaneciam também 2 centúrias de legionários.

Com a demonstração de crueza de Quintus, crescia a antipatia dos arévacos com os aliados. O desagrado começara em Pallenda, com a prepotência romana, e agravava-se agora, exacerbada por castigos injustos.

(continua)

 

Andarilhus

XXVII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 20:11
Quarta-feira , 25 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (45º episódio)

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A primeira linha do sítio romano começava a tomar forma a uns bons 100 passos da muralha de Obila. Não era mais do que o conjunto de vários enfiamentos de troncos, um pouco tombados para a frente, com as pontas aparadas, e que servia de defesa inicial à pequena paliçada que crescia atrás de si e em torno do povoado, nomeadamente quanto a ataques de cavalaria. Estas protecções simples assimilavam uma parte ainda significativa das tropas regulares de infantaria, cumprindo turnos de sentinela e de trabalho, na construção dos aparelhos de assalto: balísticas: catapultas, balistas, torres de assalto e um aríete de grandes dimensões.

Aí também tinham instalado os prisioneiros, Rubínia e Zímio, bem visíveis para os iberos. Um pelotão de lanceiros e arqueiros formavam a guarda mais próxima e com ordens para os trespassar ao menor sinal de tentativa de resgate ou ataque do inimigo. Se necessário, a concentração de legionários nas diferentes tarefas garantia a força suficiente para conter qualquer surtida massiva dos sitiados, até que chegassem reforços.

No íntimo de Tongídio adensava-se a luta entre a impaciência e a prudência. O acumular de experiências aportava-lhe uma maturidade acrescida e já não agia apenas por impulsos, sobretudo em situações em que a vida da sua amada e amigos corriam sérios riscos. Viviam uma dessas ocasiões. Sabia-o perfeitamente, sabiam-no todos. O invasor pretendia atraí-los para acções irreflectidas que redundariam na derrota total e prematura ou meramente um pretexto para fazer sofrer tenazmente os prisioneiros e aqueles que contemplavam a sua miséria.

Gurri leu-lhe os pensamentos na expressão facial e acenou a cabeça, transmitindo-lhe acordo e solidariedade: - “Sim, Tongídio. Por muito que nos provoque esta dor aguda, não podemos cair na armadilha dos romanos. Não temos cá o nosso grande estratega Alépio, mas Talauto é igualmente um perito em ideias. Haveremos de encontrar solução, meu amigo e irmão. Rubínia e Zímio estarão connosco novamente…

E tinha razão. O caudilho vetão reuniu os líderes guerreiros no ponto mais elevado de Obila, de onde se podia observar a quase totalidade das imediações exteriores.

-“Camaradas de armas! Estamos próximos de mais um momento em que talharemos os intentos dos forasteiros. Desta vez temos um desafio acrescido que é, simultaneamente, salvar os nossos dois companheiros, que além – apontou - continuam nas garras do opressor. Não será fácil nem a fuga, nem o resgate. Porém, tenho maturado uns planos que poderão resultar. Escutem…” – A estratégia foi traçada ao pormenor por Talauto, recendo algum espanto inicial e depois a confiança e a anuência dos parceiros.

Lá do alto era perfeitamente verificável o formidável engenho dos do Lácio e a organização perfeita do trabalho, promovendo a evolução célere das estruturas e das armas de assalto. Num par de dias já tinham o desenho da disposição dos fortes e a paliçada bem marcado no terreno, os fossos abertos e uma parte significativa da paliçada erguida. Com mais algum tempo a urbe vetã estaria eficazmente cercada. Para tal mantinham-se em constante movimento os milhares de legionários, laborando como formigas.

Rubínia passou o primeiro dia amarrada à cruz sem dificuldades maiores, apesar do Sol intenso. Pela noite começou a acusar a posição imóvel e hirta, e a falta de repouso. Acabou por adormecer de cansaço.

Acordou quando o Sol alteou pelo céu, superando a altura de Obila e a atingiu no rosto com a luz matinal. Sentiu que regressava o pesar e, com o passar do tempo, agravava-se a debilidade. Pela verticalidade máxima do astro solar já começava a ter visões e a delirar. Valia-lhe Zímio que, quase completamente recuperado das suas mazelas, lhe chegava à boca uma esponja embebida em água, espetada na ponta de uma vara. De tempos a tempos, forçava-lhe os pés para cima, suportando-lhe o peso do corpo e permitindo-lhe um leve repouso.

-“Rubínia, Rubínia… segue-me, segue-me…” – Acompanhou a voz doce que tanto a cativava, a desprendia do tronco e a conduzia por uma dimensão etérea, sem solo ou firmamento, até um recanto fresco de uma freicha, onde duas crianças brincavam, junto dos pais. Estavam todos dentro das águas cristalinas do açude, rodeados por ervas e flores policromáticas e carvalhos. Divertiam-se e riam profusamente. Quem seriam? Não os reconheceu até que a figura masculina elevou os braços fora de água, mostrando a tatuagem do urso azul. Era Tongídio! Abraçado a si – Rubínia! Então, as crianças… suas?! Que fortuna!

-“Não desvaneças Rubínia. É este o futuro que te aguarda. Dou-te a garantia da felicidade, porque sempre porfiaste por ela e me és muito dedicada. Honras-me.” – Viu então um vulto de mulher, bela, de longos cabelos claros e tez morena. Pressentiu a divindade. Agora tinha a certeza: era Trebaruna quem lhe falava!

De volta ao despertar no lenho e no ambiente escaldante, olhou para Zímio, que procurava dar-lhe alguma sombra com parte da túnica esfarrapada agarrada à mesma vara da esponja, e sorriu.

-“Meu bom amigo, não há que recear. Agora tenho certeza de que iremos ainda mais além…” - Recuperara o alento e aquela força sem fim que sempre a sustentara.

O final de tarde era como uma bênção de frescura. Zímio também se sentia esgotado. Passara a canícula de pé, procurando valer à sua senhora. Descansava agora deitado aos pés dela. Mesmo naquelas circunstâncias, era um regalo poder apreciar a Lua Cheia a apoderar-se lentamente do manto celeste. Relaxava e quase dormente sentiu uma passagem brusca de ar, seguido de um baque seco, como se fora um dardo a entrar no tronco a que estava encostado.

Ia levantar-se mas tocou com a cabeça em algo macio. Só então viu que, a um palmo acima da sua cabeça, uma flecha estava cravada no lenho. Assustado, puxou o cadeado e afastou-se um pouco. Olhou em redor. Os romanos arrumavam os apetrechos de trabalho e as sentinelas cochichavam entre si, sem lhes prestar qualquer atenção.

Pensou então que a arma deveria ter sido arremessada do lado dos seus amigos. Com movimentos suaves soltou-a. Tinha algo a envolver o cabo. Um tecido muito fino e raro, feito de seda. Desenrolou-o, caindo-lhe no regaço uma pequena serra de sílex, de fino lavor e leveza, mas que lhe conferia muita consistência.

Fora um dos campeões da precisão em tiro com arco dos jogos quem, colocando-se numa posição favorável, fora das muralhas, enviara a flecha a tamanha distância. No pano, desenhos ilustrativos, explicavam a Zímio o que deveria fazer com o utensílio. E este não se fez rogado, iniciando imediatamente o que pictoricamente lhe sugeriam.

Começou por enterrar a seta. Depois escavou à volta do tronco e iniciou a longa tarefa de o serrar. Quando necessitava de descansar ou se aproximavam os legionários, cobria o corte, tapando o buraco e mantendo-o assim abaixo do nível do solo. Durante a noite teve de parar: o som da fricção era muito audível. Só o poderia executar durante o dia, envolvido pelo barulho da azáfama geral.

Zímio repartia o tempo entre a operação de serrar, sempre em contorno, para corroer simetricamente a base da cruz, criando um ponto frágil, mas que resistisse até lhe ser aplicada a força conveniente, e o amparo a Rubínia, dando-lhe a água, o alimento e a frescura possível.

Terminada a empreitada que lhe tinham incumbido, deu o sinal para Obila, ajoelhando-se por terra e tomando a postura de orar aos deuses, com os braços elevados e o olhar no infinito astral.

Cumpria-se, em parte, o pressuposto mais delicado do plano de Talauto. O resto ficava agora a cargo da coragem e da destreza dos guerreiros. Mais um dia de vantagem para preparação de Ribasdânia e concretizariam o golpe de teatro aplicado aos inimigos em Obila.

A cividade ficaria à mercê dos invasores, porém despida de qualquer interesse. Os valores e mantimentos haviam sido levados pelos proprietários emigrados ou estavam a ser metodicamente queimados. Dentro de muros ficariam apenas os pobres e doentes, desinteressados ou incapazes de partir. Esses também não atrairiam a cobiça dos assaltantes: nem para escravos serviam.

De acordo com a vantagem que se pretendia utilizar no instante do abandono generalizado da guarnição de Obila, era imprescindível aguardarem até quase ao final da tarde. Entretanto e antes da chegada desse momento, todos os guerreiros mantinham-se empenhados, sem pausas, à produção das peças-mistério pedidas pelo caudilho vetão. Ficaram prontas no início da tarde.

Nunca se vira nada do género. A partir de dezenas e dezenas de artefactos derretidos e dos materiais das forjas, fundiram, aproximadamente, três centenas de discos redondos em cobre, semelhantes a escudos largos, mas diferentes dos tradicionais, de combate. Estes eram côncavos, perfeitamente lisos e polidos a grão fino. Brilhavam!

Para que serviriam? Para quê aquele investimento em recursos e tempo?

Talauto, ou era um grande inventor ou padecia de loucura incurável…

(continua)

 

Andarilhus

XXIV : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 20:01
Terça-feira , 24 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (44º episódio)

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A situação apresentava-se extremamente delicada. Como fugiriam dali? Entre eles e o espaço aberto tinham milhares de inimigos!

Talauto gritou para o exterior: -“Ao primeiro sinal de ataque vosso, estripamos este pavão emplumado! Pelas insígnias, deve ser um dos vossos maiorais. Querem sentir o cheiro das vísceras dele??!!! Quedem-se quietinhos aí fora!”

No exterior, dezenas de legionários concentraram-se em frente às duas entradas do pavilhão, prontos com pilluns e arcos. Os superiores conferenciavam. Ainda não sabiam bem quem eram os beligerantes, contudo, não queriam correr riscos com a vida de Quintus (embora a ambição de alguns não desdenhasse a morte do Cônsul como alavanca à promoção pessoal), e urgia resolver o problema com rapidez e a maior discrição possível. Uma vez mais, era uma vergonha para as legiões de Roma tais acontecimentos.

Tongídio abraçou Rubínia, ambos com sorrisos lacrimejados, mas sem trocarem palavra. Zímio estava um pouco mais rijo, mas ainda muito débil. O olhar expressava tudo: “”Salva Rubínia e dá-me uma espada; eu atraso-os…””

O sorriso entretanto empalideceu. O lusitano já transpirava por todos os poros: as correntes eram muito fortes e o machado não provocava a menor fenda no metal. Pensou cortar o pilar de madeira, mas isso seria fechar a ratoeira: se o pano do tecto abatesse, ficariam todos enleados nas suas dobras e cordéis. Começou a ficar arrepiado e crispado com a possibilidade de não conseguir libertar a amada e o amigo. Gurri pegou também em machado pesada e cascou com toda a pujança nos elos do laço de ferro. Para terror de todos, não havia forma do material ceder. As armas já estavam rombas e o tempo passava fulminante. Não demoraria muito a que ocorresse uma intervenção dos romanos.

Engolindo em seco e a gaguejar, pela mágoa sentida, Talauto puxou da sensatez e da frieza possível para resumir as circunstâncias: - “Embora não receie a morte, parece-me que devemos viver para podermos salvar mais tarde estes nossos companheiros. Por agora não há mais nada a fazer; temos… temos de os deixar…

As palavras do vetão, como adagas de misericórdia, cavaram profundamente a consciência da realidade. Gurri tapou os olhos e sentou-se ao lado de Zímio. Tongídio, branco como a cal e tremendo de nervos, segurou o rosto de Rubínia com as duas mãos e ouviu desta: - “Dá-me um beijo e vai, meu marido. Tens muitas batalhas para vencer. Nós encontrar-nos-emos novamente, aqui ou em qualquer outro lugar. Sabes que o nosso destino é ficar juntos para sempre. Segue, por mim, por nós…

- “Há que criar uma manobra de diversão, para ganharmos uma pequena oportunidade de fuga. Só com a inspiração dos deuses é que conseguiremos ter sucesso… Esperem, aquelas ânforas enormes parecem ter um óleo verde. Será que é para iluminação? Inflamável?

Experimentaram e ardia com bastante voracidade, logo que bem aquecido. De facto, estavam a tomar contacto com o azeite, resultante de uma experiência romana, por aplicação de técnicas latinas mais desenvolvidas na cultura das oliveiras, cujo estádio evolutivo na Ibéria ainda se encontrava algo rudimentar.

-“Escumalhas! Não sairão daqui vivos. Vou esfolar-vos a todos! Não toquem nesse líquido precioso. Vai ser razão de uma boa exploração destes territórios, sob a Lei Romana!”- Gritou, autoritário, Quintus.

Em resposta levou um murro de Tongídio, no qual reuniu toda a raiva que o consumia, deixando-o sem sentidos.

- “Rápido! Ensopem esses panos com o óleo e arrastem as ânforas para próximo da entrada. Este archote fará o resto. Gurri traz também essas arcas de madeira. Colocamo-los em volta de Rubínia e Zímio e assim estarão a salvo de armas de arremesso. Tongídio despe esse patife que puseste a dormir.”

Talauto afastou, o necessário, a cortina da entrada, fez uma trouxa com vários panos ensopados, pegou-lhe fogo e lançou-a contra os que os cercavam. Depois, replicou o gesto com outras mais pequenas, que atirou para o perímetro que se abria após a porta do pavilhão. Restava apenas colocar as ânforas cónicas a rebolar pelo chão na direcção da barreira de inimigos e das tendas mais próximas do campo. Tanto as mechas de panos colocadas nas bocas dos recipientes, como o azeite que se ia vertendo, incendiavam-se facilmente quando passavam sobre os tecidos ardentes e alastravam o fogo por tudo o que tocavam.

Quando os romanos se aperceberam da estratégia, hesitaram em manter as posições, prontos a disparar, ou afastarem-se à passagem desenfreada das ânforas. Inicialmente, esqueceram-se dos perigos de não travar a deslocação dos tulhas cerâmicas. Porém, assim que assistiram ao embate da primeira com uma das tendas e esta se incendiou como uma tocha, logo mudaram de comportamento, tentando parar os veículos de fogo ambulante.

Apesar de não apresentarem perigo de maior, em pouco tempo, o centro do acampamento romano estava lavrado por pequenos e dispersos incêndios. Concomitantemente, na zona, para além do período nocturno, crescia uma visibilidade cada vez mais escassa, dado o fumo produzido pelos materiais ardentes.

Era o momento de tentarem a sorte. As condições criadas talvez permitissem o êxito do plano. Despediram-se em silêncio e quase solenidade. Aproveitando o alvoroço e alguma folga no bloqueio, rasgaram a lateral do pavilhão e fizeram o possível para serem assinalados ao evadirem-se, no meio da fumaraça.

Os legionários presenciaram plenamente a fuga de dois dos insurrectos, que empurravam à força um outro indivíduo, facilmente reconhecível: Quintus.

O Centurião que liderava a força de resgate e aprisionamento colocou-se à frente dos soldados, formando barreira: -“Não disparem! Levam o general como refém. Vamos acompanhá-los à distância, até que apareça o momento certo de os apanharmos. Se são apenas dois, é porque o terceiro elemento ainda está na tenda! Comecemos por esse. Entretanto, vocês sigam os que se escapam e cerquem-nos. Não devem ir longe.”

Depois de mandar afastar todos os que estavam em redor do pavilhão, ordenou uma saraivada de flechas para o interior, antes de carregar em força. Lá dentro, o que encontraram causou o espanto geral. Não havia sinais de qualquer rebelde. A mulher e o homem iberos estavam deitados atrás das arcas de madeira, imunes das setas que se haviam cravejado naquelas. Com eles e, por isso, igualmente vivo, sacudia-se Quintus, semi-nu e apertado por cordas e mordaça. Haviam sido enganados!

Assim que soltaram o Cônsul, a primeira reacção que teve foi presentear o oficial com um valente soco no rosto, obrigando a cambalear à retaguarda.

-“Incompetente! Quase me abrias a porta para o Elizium, energúmeno. Não me mata o inimigo, mas antes os meus próprios soldados. Com gente estúpida assim, como venceremos alguma vez Aníbal?! Os rebeldes não são patrícios; são celtas dissimulados! E vocês é que são os bárbaros e não eles, que demonstram uma capacidade exímia de estratégia e de maturação intelectual. Mas, chega de conversa e persigam-nos. Capturem-nos e recuperem as minhas vestes e armadura. Vão, que não vos quero ver mais sem que me os tragam… vivos!

Com tanta dispersão e engodo, os iberos percorreram os lugares nevrálgicos do comando em busca de escapatória. Sempre acossados pelos legionários, procuravam desaparecer no labirinto de tendas, todas muito iguais, passando pelos mantimentos, cozinha e áreas de conferência ou os espaços dos diferentes generais. Ora desapareciam aos olhos dos perseguidores, ora voltavam a aparecer mais à frente. Entretanto, livraram-se das armaduras e ficaram apenas com as túnicas grenás. O que confundiu ainda mais os adversários.

Acabaram por entrar num novo pavilhão, já mais afastado do centro. Convenceram-se então que estavam nas graças dos deuses e com a certeza de poderem ultrapassar aquelas dificuldades. Tinham encontrado o espaço dos estafetas! Numa das laterais, confrontaram-se com uma grande estátua, cuja figura – provavelmente um dos deuses do panteão romano – apresentava asas nas sandálias e no chapéu, uma bolsa e um bastão com duas serpentes entrelaçadas e igualmente com asas.

- “Ó paspalhões, não podiam esperar pela manhã para virem admirar Mercúrio? Já não bastava o tumulto que há ali para a frente, ainda aparecem estes por aqui… Amanhã, levantamo-nos antes da alvorada para levar até Sekia as mensagens com destino a Roma. Toca a andar daqui para fora, queremos dormir.

Os iberos olharam em volta e de facto, para além dos 4 cavalos – que, para contentamento, já tinham reparado estarem prontos para partir, aparelhados e bem nutridos -, o que falava e mais 3 indivíduos descansavam sobre estrados revestidos com palha, um pouco afastados dos animais. Assim que os gládios mostraram o brilho e os desconhecidos se inclinavam para eles, os mensageiros esqueceram o repouso e desataram a correr, aos gritos, pedindo por socorro.

Quando, finalmente, lhes prestaram atenção e as tropas confluíram para o estábulo de Mercúrio, já os iberos abalavam à rédea solta, deitados ao máximo sobre o lombo dos cavalos para evitar alguma flecha dedicada, e desapareciam na noite.

A confusão, a distância para as cavalariças principais e inexistência de paliçada o muros altos facilitou a fuga a Tongídio e amigos que, apesar de saltarem o pequeno talude e fosso para a liberdade, deixavam atrás parte de si, cada um deles na sua dimensão específica.

Dirigiram-se aos passos escondidos para o interior da gruta que levava à cisterna, e daí ao poço. Retomaram os bens pessoais, deixados sob protecção de umas sarças, libertaram os cavalos e entranharam-se na passagem secreta.

Ainda a remoer na tristeza do fracasso da operação de resgate, mais custoso foi, pela manhã, quando abeirados dos limites dos torreões principais da cerca de Obila, contemplaram a reacção cruel dos romanos: na vanguarda das estruturas de defesa dos latinos, erguia-se um poste, com um segundo tronco em plano transversal, próximo do topo, no qual haviam amarrado Rubínia, pelos braços – abertos -, pelo pescoço, cintura e pernas - cruzadas. Um pequeno encaixe com um galho forte permitia firmar minimamente os pés. Tinham-na colocado na posição de desprezível criminosa, sendo a crucificação, umas das formas horrendas de punição. Porém, não a fixaram pelos membros através de cravos de ferro, como era hábito: queriam-na viva por, pelo menos, alguns dias, para evitar novas ousadias dos iberos enquanto não terminassem as linhas defensivas. Zímio estava agrilhoado ao fundo do madeiro…

(continua)

 

Andarilhus

XXIII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:37
Segunda-feira , 23 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (43º episódio)

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Todavia, a estratégia não ficaria apenas por aquelas actividades e manobras. Antes mesmo de raiar o dia, umas centenas de cavaleiros vetões assomavam a Obila, oriundos de Ulaca, a praça-forte principal da tribo, do território a Leste.

Ainda mal despertos, mais atónitos e persuadidos ficaram os arévacos sobre a vontade de resistência do adversário. O inimigo entrincheirava-se e reforçava a guarnição da defesa. Para eles, naquele recinto amuralhado, estava concentrada a maior parte do exército vetão, secundado com tropas dos povos visitantes. No conjunto seriam uns bons milhares de guerreiros.

Na verdade, Talauto dispunha agora de cerca de 800 homens, experimentados no esforço de guerra, bem armados e excelsos cavaleiros, com os quais se propunha atrair e reter as atenções do inimigo até que Ribasdânia estivesse preparada para enfrentar o poderio bélico romano.

 

Não tardaram também a arribar os primeiros batedores romanos. As legiões estavam a menos de meio dia de marcha. Com eles, adiantada, vinha também a maioria dos aliados autóctones. Logo diligenciaram para recolher e difundir as informações que os vigias arévacos ansiavam por comunicar.

Conhecedor e convencido da veracidade dos factos transmitidos, o alto comando militar romano decidiu criar duas áreas castrejas distintas: uma no local onde se construíra o recinto dos jogos, aproveitando o terreno limpo, e a outra posicionada no extremo oposto de Obila.

Começaram imediatamente a elevar as bases de duas fortificações rudimentares, baseadas num fosso e numa elevação de terreno com a terra resultante da escavação. Nos dias seguintes, sequencialmente, passariam a erigir uma paliçada de madeira, a qual reuniria os dois fortes e circundaria Obila, de modo a aferrolhar o cerco ostensivamente. Aliás, era esta a prática e táctica comum da legião para a logística de estado de sítio: isolar completamente os assediados do exterior; impedir as comunicações, os reforços e os abastecimentos.

Os planos da aliança ibérica alimentavam-se sobretudo na demora de tais empreendimentos, na ocupação e concentração do inimigo sobre a Obila e na grande expectativa – quase dogmática - de resolverem a conquista da península de um só golpe.

As legiões dividiram-se pelos assentamentos, formando também postos de controlo e patrulhas constantes, a toda a circunferência da cividade.

Os trabalhos desenvolviam-se a bom ritmo e no final do primeiro dia de cerco, já os acampamentos, com a tradicional organização – também aplicada no forte junto a Sekia – em arruamentos orientados pelos pontos cardeais, estavam repletos de tendas e todos os apetrechos característicos. O fosso ganhava forma e os taludes cresciam a olhos vistos. Os milhares de legionários transpiravam colectivamente nas obras, com excepção dos que estavam destacados para guarda ou caça e recolha de alimentos e lenha.

Dentro das muralhas, enxameadas por todos os guerreiros disponíveis - para manter assim a trama -, Talauto e os amigos avaliavam a evolução do campo inimigo, perspectivando o momento ideal para passarem à fase seguinte da estratégia. Por aquela ocasião, Ribasdânia já estaria a receber as intervenções iniciais de preparação para a grande batalha.

Tongídio mantinha-se tristonho, sempre dividido entre as palavras cautelosas dos amigos e o seu instinto feroz e compulsivo que o instigava a arremeter pelo meio do inimigo e arrancar a sua amada às negras garras daqueles hediondos canalhas.

-“Temos de tentar salvar a minha mulher e Zímio, custe o que custar. Darei com prazer a minha vida nesse intento!

-“É difícil sabermos a sua localização exacta no vasto campo adversário, meu amigo. Carecemos desse conhecimento para realizarmos com êxito uma eventual investida relâmpago.”- Lembrou Gurri.

-“Ainda assim, é nosso dever tentar. Rubínia não só habita em nobreza os nossos corações e pensamentos, como também é um símbolo da resistência e um trunfo muito importante, depois das recentes aventuras e contrariedades provocadas ao inimigo. Assim como Zímio, claro.

Existem algumas passagens secretas para o exterior do povoado. Sairemos em missão pela noite, testando a nossa sorte e beneficiando do cansaço geral dos invasores.” Opinou Talauto, para grande alegria e vivas de Tongídio.

Pelo lusco-fusco, desaferrolharam a grade maciça, desceram as escadas circulares do poço central de Obila. Entraram na grande cisterna, atravessando-a a nado e deixando-a para trás, através de uma passagem para uma mina, no outro extremo. Seguiram o minguado curso de água que fornecia o reservatório (os do Lácio já tinham tratado de cortar o abastecimento).

O túnel freático era acanhado e fresco. Obrigava a alguns contorcionismos, mas foi superado, umas centenas de passos à frente. Saíram para o exterior entre uns silvados, numa encosta íngreme, em cujo pequeno parapeito havia sido talhado o canal aquífero. Plenos de cautela, tanto com o abismo que se abria sob os pés, como com a possível presença do inimigo, foram percorrendo a linha ténue até solo mais firme e amplo.

Pela lógica, deveriam procurar pelos amigos no arraial estabelecido no antigo campo de jogos. Porém, não seria fácil circularem sem serem identificados. A lei marcial imperava e era exigente em todos os pormenores.

Só havia uma forma para passarem despercebidos nas fileiras hostis: era vestir-lhes a “pele”. Assim que foi possível isolar 3 legionários, com estaturas similares, Tongídio, Gurri e Talauto confrontaram-se com a dificuldade de se acomodarem nas vestes e armaduras romanas. Deixaram as suas roupas e armas escondidas, e avançaram confiantes para o covil do inimigo. Tiveram o cuidado de amarrar os longos cabelos e escondê-los no interior dos capacetes, assim como enlamearam ligeiramente as barbas e bigodes para lhes dar uma tez mais escura.

Após infiltrarem-se entre os inimigos, misturando-se em mais uma coluna militar que chegava, encenaram que haviam ceado rijamente e bebido ainda mais e, sem atrair maiores atenções (porque tal levantaria suspeitas em tempo de campanha bélica), os celtas arrastaram-se pelo local, amparando o vacceu, que representava um estado de embriaguez absoluto e de inconsciência. Quem os via, deixava-os seguir, confiante de que já só buscavam um canto para dormir. Passaram por 3 patrulhas e o cruzamento decorreu normalmente. Era relativamente cedo e havia ainda muitos legionários a terminar diferentes tarefas.

Ao que vinham a terreiro hostil é que não produzia efeito. As tendas cumpriam maioritariamente a função de camaratas e só as viam ocupadas por legionários. Iluminados pelas múltiplas pequenas fogueiras e tochas, foram-se aproximando do centro do lugar, espaço reservado às chefias e comando. Já viam, não muito longe, alguns pavilhões mais destacáveis, quando passaram por nova patrulha. O decurião da ronda olhou-os fixamente e abrandou. Parecia tentar recordar algo. O trio passou naturalmente e continuou no seu périplo. Quando afrouxaram num pequeno largo do epicentro do campo, ouviram atrás de si o som de tilintar acelerado de várias peças metálicas.

 -“Vocês, os três odres, alto! identifiquem-se! Já vos vimos há bastante tempo a deambular nesses preparos, no extremo Sul do campo. O que se passa? Porque tardam a recolher-se aos aposentos? Já agora vão também explicar esse estado de embriagues, tão censurável, sobretudo neste período!

Os Iberos estacaram e continuaram a simular apatia e alienação ébrias. Na verdade, percebiam o sentido da interpelação, mas não conheciam boa parte dos dizeres latinos.

A explosão verbal atraiu 4 oficiais de alta patente – via-se pelas armaduras excepcionais que ostentavam -, para fora do pavilhão maior. Tratava-se de Quintus Scipius, Cônsul enviado por Roma para reorganizar e comandar todas as forças romanas na Ibéria, e o triunvirato dos seus coadjuvantes do estado-maior.

-“Decurião, a que se deve esta altercação? E estes três cachos? Como é possível tamanha negligência disciplinar?! Prendam-nos! Marquem-lhes bem o lombo com 20 chicotadas a cada um, para que não se esqueçam do seu juramento ao Senado e ao Povo de Roma!”

A tenda do comando ficara com a porta de manta entreaberta. No interior era visível uma grande concentração de móveis, objectos e armas e, algo bem mais importante para os interceptados iberos: encostados à base do pilar central, que sustentava o pano de tecto, estavam acorrentadas duas pessoas. A boa iluminação revelava as figuras de Rubínia e Zímio. Tinham-nos encontrado! As circunstâncias é que estavam longe de ser propícias…

A patrulha moveu-se para cumprir as ordens de imediato. Tinham de reagir e Tongídio deu voz à ideia de todos: -“A única saída é para dentro! Rápido!

Como javalis acossados, investiram sobre os oficiais, apanhando-os de surpresa. Os romanos nem tiveram tempo de desembainhar os gládios. Gurri, arrancado da letargia, ganhou velocidade e lançou-se sobre dois dos generais seniores, tombando-os pelo chão. Talauto fez o mesmo sobre o terceiro e Tongídio abraçou e empurrou Quintus, usando-o como peso de choque contra a sentinela que guardava a porta do pavilhão. Acto contínuo, agarrou o Cônsul por um braço puxou a si, elevando-o do chão e encostando-lhe o punhal à garganta. O vacceu e o vetão deram uns quantos esticões aos adversários aturdidos e projectaram-nos contra a patrulha que já acudia, contendo-a. A sentinela estava desmaiada com o impacto recebido. Não trazia qualquer perigo, por ora. Introduziram-se no pavilhão, arrastando o General Maior e tapando a entrada com a manta.

-“E agora?! Que fazemos? Tongídio tens ali um machado: tenta libertar Rubínia e Zímio. Passa-me esse tratante, vou amarrá-lo!”

(continua)

 

Andarilhus

XXII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 08:07
Terça-feira , 17 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (42º episódio)

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Certificados de que não eram perseguidos, os arévacos tomaram a direcção do Urze. Aí, juntaram-se os elementos que guardavam Zímio.

Durante a curta pausa, retiraram Areatavo e Tanino do transporte para liteiras improvisadas. Levantaram as duas pranchas de madeira longitudinais do centro do sobrado visível do carro. Sob aquele, Rubínia mantinha-se completamente imóvel, tenazmente enrolada em fortes cordéis. Estava com braços e pernas dobradas para trás e presos entre si, amordaçada e amarrada ao fundo do carro através da passagem das cordas por pequenos buracos no tabuado. Aguentara essa posição rígida e impossível de contrariar por longo tempo, embora facilitada pela dose da poção que a obrigaram a ingerir, mantendo-a sedada na fase inicial em que abandonaram Obila.

Já distanciados de potencial perigo de qualquer movimento ou suspeita que originasse alerta, os carcereiros decidiram aliviar a tensão e o excesso de segurança exercido sobre a prisioneira. Tanto mais que tinham de partilhar o espaço da masmorra ambulante com mais um cativo: Zímio.

Puxaram-na para fora e desmancharam os nós que obrigavam os pés contra as mãos. Libertaram-lhe os membros inferiores e levantaram-na. Dentro dos possíveis, Rubínia esticou-se e espreguiçou-se como um felino. Viu então Zímio, mantido de pé pelos carrascos e marcado duramente pelos maus tratos infligidos e pelas mazelas do combate. Arrepiou-se, olhou em volta e começou a distribuir golpes com os pés pelos guerreiros que tinha ao alcance, apesar do pouco equilíbrio resultante dos braços acorrentados. Atirou com alguns por terra, mas logo foi dominada. Após receber uma sacudidela forte e um tabefe robusto, aplicados com raiva, sentiu uma vertigem e deixou-se cair, sentando-se. Pegaram-lhe como se fora um fardo de feno e atiraram-na novamente para a clausura. De seguida, fizeram o mesmo com Zímio, semi-inconsciente por razão do seu fragilizado estado físico.

Ainda com a mordaça, a mulher tentou chamar por Zímio. Este tinha consciência do que o rodeava, contudo o corpo não reagia e não conseguia articular palavra. Apenas rumorejava baixinho. Aproveitando a parca liberdade de movimentos, Rubínia conseguiu soltar o medalhão da Senhora das Águas, recebida da saudosa Bolota e, com o rosto, foi empurrando-a para uma frincha do fundo do carro. Deixaria um sinal para Tongídio, se o símbolo sobrevivesse à passagem e atenção da guarda da retaguarda da comitiva. Finalmente a sorte acompanhava-a: uma pequena pedra projectada pela pressão de uma das rodas tapou parcialmente o objecto.

A caravana prosseguiu ao encontro do conforto dado pela proximidade das legiões do Lácio, que se abeiravam, vindas de Sudoeste. Tinham bastante folga de avanço sobre o grupo que, sem o saber ainda, levavam em encalço.

Acompanhando a pista deixada pelo veículo de rodas, os perseguidores ficaram com absoluta certeza do cativeiro de Rubínia: Tongídio encontrou o sinal por ela deixado. Apanhou o medalhão e, fervoroso, apertou-o na mão, beijando-o.

A falange avançada do corpo expedicionário romano estava a poucos dias de marcha de Obila. Apareceria de surpresa, e em simultâneo com o restante exército, que se deslocava do Norte, para apertar a tenaz sobre a capital vetã. Pelo que, quando Tongídio e os companheiros, do alto de uma das maciças torres naturais das franjas dos Hermínios, avistaram ao longe os rastos poeirentos dos arévacos, também descobriram que, em frente, a uma pequena jornada daqueles, se acercava um mar imenso de luzes brilhantes. Só poderiam ser os romanos, nas suas couraças e elmos de ferro polido. Estavam prestes a encontrar-se.

Esta contrariedade obrigava-os a regressar sem cumprir, para já, a missão. Enfrentar milhares de inimigos seria suicídio e mostrava-se um fracasso mesmo só em conjectura. Por outro lado, tinham o dever de ajudar no êxito de Obila e de tanta gente que contava com eles. Irritados com as ocorrências, regressaram à cividade a galope. O tempo urgia.

 

Em Obila, Alépio, na sua eficiência habitual, coordenava o plano encoberto de deslocação do grosso da população, bens e outros recursos para local remoto. Discretamente, os mais velhos, crianças e mulheres, foram paulatinamente orientados para saídas secretas da urbe, enquanto continuavam os jogos, com a incursão pelos bosques das equipas de guerreiros com o objectivo de capturar, ileso, um bácoro de javardo. Tarefa que exigia força, astúcia e entrosamento entre os elementos do grupo.

O evento principal do torneio iria durar todo o dia, pelo que no recinto dos jogos, enquanto aguardavam a sorte dos caçadores, aplicaram-se noutros exercícios do domínio da pontaria ao alvo. Todas as tribos apresentaram concorrentes para as vírias da vitória no arremesso com arco e com funda.

Desta forma, entretinham-se e distraíam-se também os poucos guerreiros arévacos que permaneciam em Obila. Uma dezena saíra em busca da presa de javali e os restantes 5 ou participavam ou assistiam às provas de lançamento.

De regresso ao povoado, Talauto assumiu o comando dos preparativos. Após anuência do Conselho de Anciãos, com a grande parte dos civis já em curso para outras bandas, fez partir a elite do poder militar, político e religioso, acompanhado da maioria do exército na direcção de Ribasdânia, incluindo o seu pai. Ficou com uns meros 200 guerreiros a terminar a operação. Da mesma forma calculada, os chefes das diferentes comitivas deram ordens para o desmantelar dos arraiais, enviando os civis de regresso aos seus territórios e integrando os combatentes na viagem dos vetões para o grande baluarte de defesa do Noroeste.

Repentinamente, as colinas do recinto dos jogos começaram a esvaziar-se de gente assistente, bem como as figuras da organização do evento e júris. Terminavam assim, abruptamente, os jogos. Como já não havia forma de continuar a disfarçar a situação, o caudilho vetão ordenou a prisão dos surpreendidos arévacos, que por ali deambulavam, procurando perceber os motivos do êxodo geral. Entretanto, aguardariam pelos compatriotas destes, que cumpriam ainda a expedição pela floresta, para manter a estratégia consistente e bem urdida. E assim foi.

Pelo entardecer, foram chegando as equipas concorrentes. Alépio tinha tudo preparado ao detalhe. A farsa mantinha-se e deveria espoletar uma forte convicção nos arévacos. Convence-los de uma realidade que não correspondia à verdade.

Os arévacos, quando de volta e ainda com bastante luz, durante a aproximação, constataram o desaparecimento dos acampamentos das tribos, o recinto dos jogos abandonado e a ausência de vivalma. Entenderam enfim que a chegada das legiões e o assédio que preparavam a Obila tinham sido descobertos. Depois, já dissimulados no arvoredo, assistiram a dois cavaleiros alarmados e a convocarem os grupos das tribos, indicando-lhes que entrassem rapidamente na urbe.

- “Definitivamente, já o sabem e estão desfeitos em medo! Fecham-se na cividade, atrás da cerca. Agora já é tarde, vão ser esmagados atrás das suas próprias pedras! hehehehe! Quanto a nós, o melhor é ficarmos escondidos até à chegada dos aliados e vigiar os preparativos de defesa. Vamos controlar o que fazem por Obila.”

Parte importante do estratagema dos iberos patriotas estava exactamente na capacidade de observação do inimigo. Iriam regalar-lhes os olhos e a imaginação com o mais doce dos engodos, dos encantamentos: o rato, em vez de fugir, mantivera-se na armadilha, à feição das garras do gato.

Numa encenação fabulosa, os arévacos conseguiram presenciar uma multidão avultada, entre civis e guerreiros, histéricos e manifestamente em terror, a gritar profusamente e a acudir com desespero para o interior da muralha. Viram grupos de cavaleiros que entravam e saiam de Obila, carros de bois carregados com mantimentos, madeiras, forragem para animais, pedras, armas e tudo o mais que lembrava à gente aflita. Verificaram também que os topos da fortificação estavam já semeados de homens armados.

Na verdade, as duas centenas de guerreiros de Talauto, bem coordenados e melhor posicionados, num constante vai e vem, criavam uma perspectiva teatral que parecia o caos entre várias centenas de indivíduos. Para maior realismo, alguns vestiram-se com indumentárias femininas e com outros apanágios que recriavam as castas sociais ou as classes de mesteres e ofícios.

A certa distância da acção, o inimigo não lograva motivos para desconfiar e, crédulos, confiaram nas circunstâncias que absorviam.

O delírio de circulação durou até à entrada da noite, quando - como recomenda a prudência de quem espera um assalto - se encerraram as portas da fortaleza, recolhendo-se todos no seu interior.

Os arévacos ficaram convencidos de terem a presa na toca. E que presa: os líderes de boa parte dos povos; milhares de escravos; imensas riquezas e artefactos, de Obila e comitivas… o poder e governo da Ibéria!

(continua)

 

Andarilhus

XVII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:47
Quinta-feira , 12 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (41º episódio)

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Na base do monte, os animais permaneciam no local onde tinham sido amarrados. Rubínia e os vetões é que não apareciam. Tongídio bateu as cercanias, sem encontrar a mulher. Voltou ao ponto inicial, quando os restantes companheiros também chegavam.

- “Tem de haver alguma pista. Não podem simplesmente sumir-se no ventre da Mãe Terra! Ajudem-me a procurá-la, a procurá-los…

Foi quase no extremo oposto à posição dos cavalos que Salpi deu com os corpos dos seus compatriotas. Prestou-se a confirmar os óbitos, atestando de imediato que o primeiro evidenciava ausência de suspiro de vida, com tamanho buraco que lhe trespassava o peito até às costas e que lhe levara parte do coração e do pulmão esquerdo. Já o segundo, tombado de lado, ainda respirava, apesar da longa ferida aberta na zona abdominal, que lhe expunha parte das vísceras. Virou-o para cima e deu-lhe algum conforto no amparo da nuca. Saciou-lhe a sede com a pequena cabaça de hidromel. Já com os restantes presentes, o moribundo entregou as últimas palavras e encomendou a vida ao seu deus mais venerado: - “Que Endovélico ilumine o caminho que o meu camarada já leva e que eu, em breve, acompanharei, pelos montes sagrados. E que socorra Rubínia e Zímio nas garras dos algozes.

Tossiu umas golfadas de sangue e, enquanto com forças, continuou: -“Apareceu um grupo vasto de arévacos. Tentamos distraí-los, fugindo na noite, atraindo-os para longe das montadas e do destino do alto do Urze. Eram tantos que nos conseguiram cercar. Lutamos como pumas encurralados. Ferimos alguns deles, até que nos dominaram. Prenderam Rubínia e levaram-na na direcção de Obila. Quanto se apercebeu que o separavam da sua senhora, Zimio ficou louco e atirou-se ferozmente aos inimigos. Reacendemos o combate, num último esforço. Silvádio foi vazado por um dardo pesado e eu sofri vários golpes. Zímio também, mas manteve-se de pé, até que perdeu os sentidos, quando recebeu uma pedrada na cabeça. Não sei o que lhe fizeram…”

Salpi deu-lhe os últimos golos de bebida e deixou que se finasse sossegado. Entendia-se perfeitamente a estratégia do inimigo: utilizariam a mulher refém como arma de arremesso ou moeda de troca. Tongídio não sossegava; estava capaz de rasgar um canal pelo meio da montanha.

Entretanto, surgiu Alépio e dois guerreiros. Tinham seguido o grupo que aprisionara Zímio, para acompanhar a sorte deste.

-“Estiveram a interrogá-lo. Torturaram-no com grande crueldade. Aguentou, não suplicou e nada revelou. Perdeu a consciência e deixaram-no, convencidos de que nada sabia do que perguntavam. Assim, que estiver novamente desperto, vão levá-lo daqui. Pareceu-me perceber que o fariam entrar furtivamente no acampamento junto a Obila.”

-“É onde deve estar Rubínia! Vamos rápido, aos cavalos!” Incitou Tongídio.

Com o arrastar dos acontecimentos, acabou por despontar a primeira luz matinal. Em breve recomeçariam as actividades relacionadas com o torneio. A algazarra e o movimento das centenas de pessoas tornariam difícil uma averiguação discreta no campo dos arévacos e sobretudo sem que a mesma não alertasse a população e não descambasse em pânico.

Talauto adiantou um mensageiro, para pedir a seu pai que convocasse com urgência os chefes das tribos. Em breve chegaria para comunicar assuntos gravíssimos, que exigiam uma resposta célere. Entretanto, iriam tentar localizar e resgatar Rubínia, desaparecida e provavelmente sequestrada.

Com cautela aproximaram-se do reduto dos arévacos. Tal como ocorria com os restantes acampamentos, o frenesim do dia já se tinha iniciado. Gente que acendia fogueiras, outros que carregavam pequenos molhos de lenha, a atenção com alguma higiene pessoal e sobretudo com a preparação da primeira refeição. Bem como, alguns actos religiosos matinais. Ali, a única diferença para as demais tribos residia no facto de só existirem varões e todos guerreiros maduros. Nos rostos, era notória a presença de indícios de parco repouso e acumulação de muita actividade e mesmo bebida entre muitos daquela, quase, centena de indivíduos.

Com Areatavo ferido, era agora Eridário o chefe da hoste. Recebeu as autoridades vetãs com modos mais afáveis, mas de igual calculismo.

- “Que a Alvorada vos traga sapiência e saúde. A que se deve a vossa visita e… tão numerosa?

- “Desapareceu uma mulher dos celtas lusitanos. Estamos a indagar por ela”. – Respondeu Talauto, solene. – “Tens conhecimento sobre este assunto ou presenciaste algum movimento anormal que possa justificar este enigma? Alguém, entre os teus, saberá algo sobre o que agora te pergunto?

-“Hum, agora perdem as mulheres?! O que perderão a seguir? Não sabemos nada sobre qualquer desaparecimento. Estivemos noite dentro por aqui, a festejar os jogos, como aconteceu nos outros arraiais. Estivemos também a tratar os nossos feridos – Areatavo e Tanino – os quais vamos enviar, daqui a pouco, de regresso a casa, num carro de transporte que construímos entretanto.”

-“Assim sendo, não serás contra o cumprimento de uma vistoria rápida às vossas acomodações”. Sem aguardar resposta, passou por Eridário e avançou para o interior do arraial, dando ordens bem audíveis. – “Vamos, procurem e questionem os homens sobre a nossa missão”.

Eridário ainda protestou, mas logo se apercebeu que estavam determinados a passar o local por crivo apertado. O olhar de Tongídio denunciava o que lhe ia, em vontade, pela alma. Era temível (e não produzia ainda efeitos porque Gurri o acalmava amiúde). Enfrentar e contrariar o grupo de busca não era razoável; a diferença de forças desaconselhava-o. Por isso, o que lhe restava era acompanhar a revista e tentar obstruir e atrasar ao máximo a acção.

Em breve, o assentamento arévaco estava cercado e absolutamente vasculhado. Para além de todo o tipo de imundices e exemplos de desleixo humano patentes, nada de suspeito descortinaram sobre os acontecimentos no Urze ou Rubínia.

Tal como afirmara Eridário, prontos para partir, os feridos já estavam instalados no carro de transporte. O veículo demonstrava dotes de boa carpintaria: com quatro rodas fortes e altas, era robusto, amplo, profundo, e parecia ter um conforto aceitável. Completavam-no 2 possantes cavalos, aparelhados.

Tanino mantinha-se inconsciente, enquanto Areatavo, sempre agitado, mas em silêncio, corrigia as ligaduras.

-“Que os teus dias melhorem.” - Atirou-lhe Talauto. Não obteve resposta.

Entretanto, Tongídio corria ainda a insistir na procura e a interrogar os guerreiros. Mas, nada.

O carro iniciou a jornada, levando consigo uma parte significativa do efectivo dos celtiberos do planalto central. Com Eridário, permaneciam apenas uma vintena de homens. – “São os suficientes para ganharmos os jogos que faltam!” aventava ele sorridente e bem menos tenso, enquanto a coluna militar se afastava.

Talauto e os amigos assistiram à despedida daqueles sem poderem retê-los ou acusá-los de coisa alguma, mas com um forte travo de incredulidade na mente. Os factos não encaixavam com as circunstâncias… Apartaram também.

Já na sala nobre do palácio, perante os líderes, com excepção de Eridário – que ignorava de todo a reunião -, Talauto passou a explicar as ocorrências e o ponto da situação. Concluiu, dizendo que não demoraria muito até que sofressem o assédio dos latinos e seus aliados. E que o tempo era bastante curto para abandonarem Obila e deslocarem toda a população em segurança. Tinham, portanto, de responder ao embuste montado pelos romanos com astúcia superior.

Por esta altura já todos rimavam na mesma vontade. A adesão dos povos representados à resistência aos invasores foi unânime.

Alépio, a pedido de Talauto, passou a expor o plano forjado: - “Eridário continua por cá a assegurar a mascarada, para poder iludir-nos e, simultaneamente, vigiar os nossos movimentos. Temos de o usar como trunfo. Sob a fachada dos jogos, vamos preparar a fuga dos civis mais frágeis, quer de Obila, quer dos acampamentos, e boa parte dos guerreiros. Ficaremos apenas os suficientes para centralizar e atrair o esforço do inimigo e assim permitir a segurança da retirada.

As tropas partirão para Noroeste, evitando cruzar-se com o corpo legionário que se aproxima por essa área. Vão para Ribasdânia, o baluarte fortificado dos vetões, onde concentraremos todas as energias e recursos, para aguentaremos a pressão inimiga até à reunião dos diferentes exércitos. Proponho que cada um de vós envie emissários aos vossos territórios, para agremiar os guerreiros disponíveis e os encaminhar ao nosso encontro. A batalha final está próxima: ou libertamos a Ibéria destes parasitas estrangeiros ou seremos cães açaimados da Lei romana, por longos tempos!”

Os apoios à estratégia foram ostensivos e guturais. Com as manifestações de aliança, terminava a assembleia. Cada qual saía compenetrado, a pensar nos tempos que se aproximavam e na sua participação no plano acordado.

Tongídio, a passo lento e taciturno, continuava tão alheado como o estivera na sala nobre. Estacou. Os amigos, seguiam adiantados e só então repararam no atraso do lusitano. Voltaram-se a tempo de o ouvir, primeiro, em tom baixo e depois em grossos brados: - “O silêncio do “palrador” Areatavo… O relaxamento de Eridário depois da partida dos conterrâneos… O carro!!!!!! O carro era muito profundo, anormalmente profundo. Deve ter uma segunda plataforma ao nível dos eixos das rodas. Um espaço escondido. Era aí que levavam a minha mulher! Desgraçados! Podem encomendar a alma aos demónios da fenda de Vornea, porque eu vou tratar de os mandar para o além!”

-“Realmente, o carro era demasiado alto para o usual e o necessário. As tábuas laterais e dos topos podem tapar um espaço secreto, facilmente. Atrás deles! Já passou quase meia manhã desde que saíram; temos muito a percorrer para os topar. Junta tropas rapidamente, Talauto!” - Pediu Gurri.

Tongídio já não escutava. Correu para o cavalo, arrancando antes dos demais e sem esperar por quem quer que fosse.

Antes de partirem na peugada do lusitano, o chefe vetão deixou instruções para prosseguirem com os jogos e respeitarem as indicações de Alépio, quanto ao desenvolvimento paralelo do plano de preparação do confronto com os romanos.

 

(continua…)

 

Andarilhus

XII : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:04
Quinta-feira , 05 de Maio DE 2011

Por Ti Seguirei... (40º episódio)

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O jogo derradeiro desse memorável dia foi o da luta corpo a corpo. Neste domínio revelavam-se mais os povos do Sul. Não foi assim com surpresa que se anunciou a vitória do concorrente Batestano, ganhando na final frente ao Túrdulo e ao Cónio.

A noite chegou com muita alegria e convívio pelos diferentes arraiais. As comitivas reuniram-se em festins colectivos. No banquete do palácio, o ambiente também tinha melhorado muito. Inclusivamente, já não ocorria de forma tão rígida a ordem das diferentes tribos ao longo da mesa. Os comensais misturavam-se, trocavam brindes, recuperando antigos conhecimentos e desenvolvendo novas amizades.

Das janelas do baluarte, regalavam-se os sentidos no mirar vasto das inúmeras fogueiras, envoltas pela escuridão, ao redor de Obila, e escutar os sons de comemoração e diversão.

O grupo de velhos amigos conversava num dos balcões exteriores mais amplos. Tongídio e Rubínia estavam a um canto, namoriscando na brisa amena dos serões do estio. Alépio explicava como teria esventrado Tanino, se tivesse tido ocasião para lutar com ele, reprovando efusivamente os golpes traiçoeiros usados contra Gurri e Mauri. Logo Talauto, brincalhão, abanava o vacceu, procurando desembruxá-lo daquela letargia triste, que o consumia por não ter recuperado da visão antes de Mauri ter enviado o maldito arévaco para trabalho aturado dos curas. Se os deuses lhe tivessem dado essa honra, Tanino estaria agora derretido pelo fogo, na pira fúnebre. Zímio mantinha-se contido e sonolento, na sua vigilância contínua.

Pensavam já no dia seguinte, desafiando-se uns e outros para o melhor desempenho na captura da presa, pelos bosques do termo de Obila, quando entrou um conjunto de guerreiros, pedindo para falar com o seu comandante. Talauto escutou as novas e enviou os homens com ordens de contingência. Dirigiu-se aos amigos.

- “As novidades são aquelas que já prevíamos. O nosso posto de observação no penhasco de Aleata recebeu sinais da fogueira central do castro de Corajata, alertando para a movimentação da legião romana a Nordeste. Estão neste momento algures entre os territórios astures e vacceus e dirigem-se rapidamente para posições a Norte de Obila. Tudo indicia que nos vão atacar em breve. Não deixo de estranhar ser uma única legião; ou estão imensamente confiantes, ou têm alguma tramóia preparada. Tanto mais que havia notícias da chegada de mais legiões à Ibéria. Se sempre vieram, onde é que param? Não temos quaisquer notícias delas.”

Alépio que conhecia melhor do que ninguém a astúcia dos latinos, não deixou de insistir: - “Tem de haver algo em curso para nos surpreender. Disso estou absolutamente certo. Não há outros postos de observação? E das patrulhas, o que se sabe?

- “Até ao momento, é o conhecimento compilado. De facto, as patrulhas do Sul estão demoradas com relatórios actualizados. Quanto aos postos que vigiam o Sul e o Oeste nada têm relatado. Temos de aguardar. Entretanto, já dei ordens para, de maneira cautelosa e sem atrair atenções, se tomarem as medidas previstas para contrariar um cerco. Desde esta noite, vão começar a armazenar provisões e a carregar os arsenais. Vou orientar o inicio desses trabalhos. Querem acompanhar-me?”

Desceram aos terreiros e dirigiam-se às portas principais, sendo então confrontados por um guerreiro que conduzia, adiantado, um grupo alargado de gentes. Vinha alterado e ofegante. Respirou fundo e ao ritmo das batidas do coração, foi dizendo: -“Vêm duas legiões de sudoeste no nosso encalço. Julgo que têm por destino esta nossa capital. Sou Barvasco, 2º comandante da patrulha do Sul. Ateneu, responsável pelo corpo expedicionário foi morto em combate. Fomos traídos pelos arévacos e caímos numa cilada dos romanos. Dos cerca de 150 homens, restam apenas uma vintena, e uns quantos em muito mau estado. Durante a fuga, encontramos esta caravana de mercadores, que nos ajudaram com os feridos.”

Um homem de respeitosa idade e longas barbas aproximou-se, formando uma vénia antes de se apresentar: - “O meu nome é Oldegário, de Lacobriga. Sou mercador. Trago uma caravana no trato do negócio. Segui a costa até ao estuário do Tagus. Aí enveredei para Este, no alcance dos vossos domínios, foi quando encontrei estes vossos militares. Prestei a assistência que me foi possível, com os recursos que trazia na viagem.”

- “Mas, tu és o meu bom amigo, de longa data! Chamava-te “Tário”, quando era pequena!” Exclamou Rubínia. Correu a abraçar o ancião.

- “Lembras-te de mim, Rubínia, filha de Físias, teu companheiro de sortes?! Recebemos muitas visitas tuas em Tongóbriga. Trazias-me sempre uma oferta. Ansiava com as tuas visitas e as tuas surpresas. Depois de me mudar para Tanábriga nunca mais estivemos juntos. Há quanto tempo…

- “Mas, claro! São nítidos os belos traços de tua mãe, Edúnia, e o espírito e o ar de rebeldia de teu pai, meu bom amigo Físias! O que é feito de ti, rapariga? Como cresceste!

Ficaria para mais tarde a narração das vivências de cada um. Naquele momento era essencial lidarem com o perigo que se apresentava a curtas jornadas. Os maiores receios concretizavam-se. Por relato de Oldegário, souberam então que os romanos traziam duas legiões de Este, com as quais varreram toda a costa Sul da Ibéria - obrigando Aníbal a atravessar as colunas de Hércules, para pôr a salvo o exército que tentava recuperar -, reuniram-se aos arévacos a Norte do território Cónio, nas margens do Tagus, encontrando-se depois com um corpo de soldados mais reduzido, mas com tropas bem treinadas, que as galeras haviam trazido para desembarque na costa de Olissipo. Encorpavam-se em quase 3 legiões. As populações estavam alvoroçadas e procuravam refúgio, abandonando o terreno por onde passariam as tropas estrangeiras.

A conquista romana da Ibéria estava em marcha e ia apontar ao local onde se encontravam reunidos os cabecilhas das forças que podiam dificultar as ambições expansionistas dos latinos: Obila. Não havia dúvida, seriam cercados por um grande exército, em efectivos, táctica e experiência.

- “Certamente que os povoados enviaram mensagens à nossa atalaia do monte Urze. Porque que é que os vigilantes não nos comunicaram já destes movimentos? Algo se passa!” Desconfiava Talauto, exteriorizando o pensamento.

O caudilho vetão agradeceu ao mercador e deu instruções para que fosse acolhido como amigo do clã, com todas as honras. Reuniu um punhado de guerreiros, aos quais se associaram os amigos, fez erguer o cavalo nas patas dianteiras e gritou: - “Vamos verificar o que se passa no alcantilado do Urze!

Saíram do povoado sem levantar suspeitas, em pequenos grupos. Passaram longe dos acampamentos das comitivas. Essas precauções e os festejos que ainda se viviam permitiram que desaparecessem no escuro sem serem notados. O alto que buscavam ainda ficava afastado. Via-se ao longe, demarcado na penumbra pelo magro luar.

No topo do alto penedio, a atalaia cumpria duas funções principais: uma estava na vigia do território a longa distância; a outra residia na comunicação, através de sinais de fogo, produzidos a partir das labaredas de uma gigantesca fogueira, acesa todas as noites, com outros pontos com igual sistema de transmissão de mensagens. Conjuntamente com o envio de aves mensageiras, esta era a forma mais expedita para passar as notícias entre povoados, por vezes a longas distâncias, através do uso sequencial da rede de pontos de emissão e recepção.

Guiavam-se pelo foco luminoso, cada vez maior, criado pelas labaredas do píncaro afiado. O sopé do monte, coberto por erva macia, permitia uma aproximação com os cascos dos equídeos abafados. Subiram o dorso do Urze até onde foi possível manter esse silêncio. Assim que o cascalho tomou o lugar ao tapete verde, desmontaram e seguiram apeados pelo trilho longo e circundante ao complexo rochoso. Rubínia e Zímio e dois vetões ficaram de guarda aos cavalos.

Após já prolongada multiplicação de passos cautelosos, começaram a ouvir os primeiros sons do que parecia ser um frenesim. Música de flautas, cantares, gritos, precursão de vários instrumentos, chegavam cada vez mais retumbantes ao grupo que se acercava. Pelos indícios, ali também festejavam rijamente e mostravam-se pouco alerta nas funções em que estavam incumbidos.

Alcançada a plataforma do cume, dispersos e escondidos atrás das rochas, deram conta da situação: perto de uma vintena de guerreiros foliavam em volta da grande fogueira, tocando, cantando e dançando ao som de modas, algo estranhas e num dialecto pouco perceptível, resultante do barulho do crepitar das chamas e das vozes já pouco claras por efeito dos excessos. A comida e a bebida eram abundantes pelas mantas que se estendiam pelo chão. Mantiveram-se ocultos e a avaliar a situação.

Um dos pândegos de maior estatura, desengonçado e aos tropeções, abalou, dirigindo-se atrás de umas moitas de giesteira, para dar vazão às necessidades fisiológicas. Gurri, que estava escondido a alguns passos do local, agarrou-o, tapou-lhe a boca e, com uma pancada seca na fronte, deixou-o sem sentidos. Apesar de pesado, levou a ombros o corpo inerte até junto dos companheiros, em área mais reservada.

Talauto olhou bem para o indivíduo e, nem ele nem os demais vetões, se lembravam daquela figura. O que não era normal, tanto mais que tinha uma fisionomia bastante estranha. Procuraram então pistas que ajudassem a identificar o homem desmaiado. Assim que o libertaram das vestes mais grossas, exteriores, puderam verificar que o antebraço acusava a sua origem: SPQR! Um romano. O posto fora tomado pelos romanos e, decerto, pelos arévacos também. Era um golpe para esconder a chegada das legiões, e quase o conseguiam. Uma busca mais apurada nas redondezas revelou os corpos de 7 vetões, chacinados por aquele grupo hostil de assaltantes.

Colocava-se agora a questão de atacar aqueles meliantes ou manter a situação tal como estava, não deixando de sobreaviso o inimigo. Talauto e os seus conterrâneos pretendiam desmembrar cada um dos que grasnavam lá acima, depois de terem assassinado os seus irmãos. Contudo, Alépio, ponderado e dissuasor na retórica, demoveu os aliados de uma acção imediata. Ficariam assim com a vantagem… para vingarem o sangue derramado dos que haviam morrido. Quanto ao romano capturado, a bebedeira era de tal ordem que ele, na manhã seguinte, não se lembraria de nada do ocorrido.

Quando já desciam pela vertente estreita, atalharam caminho e foram forçados a ocultarem-se novamente, perante o ruído de deslocação e conversa de gente que arribava pelo Urze. Toparam com uma mescla de guerreiros com vestes arévacas e que traziam alguém acorrentado. Era Zímio. Mesmo na sombra daquele período tardia, mostravam-se bem patentes uns quantos ferimentos que lhe cobriam a roupa de sangue.

-“Quieto Tongidio, não deites tudo a perder! Temos de saber o que se passou e onde está Rubínia. Deixemo-los passar. Zímio sabe tratar de si e depois viremos por ele”. Sussurrou Gurri, colocando a mão conselheira no ombro do amigo.

Logo que o grupo que ascendia se encontrava a distância razoável, o celta lusitano desapareceu na noite, correndo pelo trilho, em vertiginosa descida, no encalço do seu desfecho.

(continua)

 

Andarilhus

V : V : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 19:16

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