Por Ti Seguirei... (47º episódio)
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A hoste de Talauto progrediu rapidamente no terreno.
A única paragem prolongada aconteceu em Sadeana, citânia de médio porte no extremo Norte do território vetão. Para trás deixavam atalaias, para o caso de serem seguidos pela cavalaria romana.
Esta pausa maior devia-se ao facto de ter sido aquele o local acordado para reunião das últimas tropas que os diferentes povoados de Talamo podiam dispensar. Assim que verificadas as unidades, a concentração de guerreiros ficou aquém do que se esperava. Os factores de instabilidade, originados pelo poder e movimento do inimigo, exigiam contenção com as cedências e cuidados com as defesas dos centros populacionais. Na totalidade, Talauto dispunha de 2500 efectivos para adicionar a quase outros tantos que haviam seguido antes para Ribasdânia.
Nessa noite repousaram um pouco mais, antes de retomarem a viagem. Encontravam-se a cerca de metade do caminho e faziam-no saber aos camaradas que os aguardavam através de sinais de fogo, cujas mensagens saiam do cabeço de Sadeana, passavam por vários pontos de transmissão, até serem recebidos no destino. Sobretudo Alépio ansiava por notícias. Empenhava-se com grande autonomia na preparação das defesas, todavia era imprescindível a presença de Talauto, como chefe militar vetão. Talamo, dada a idade, já não se envolvia há muito, directamente, nas questões da guerra.
Exaustos e moídos de tanto balouçar no lombo das montadas, estenderam-se num dos terraços a contemplar as planícies do termo de Sadeana, iluminadas pelo atrevido luar do estio adulto.
- “Tenho a sensação de sentir o odor das searas maduras de Tanábriga. Desde que parti, este é o momento em que mais próxima estou da minha amada terra. E no entanto, tão perto e ainda tão longe… Longe de cumprir o que para mim mesma jurei: resgatar e regressar com Tongídio; Longe de poder recuperar a minha, nossa, vida e dos seus fundamentos simples e tranquilos…” Suspirava Rubínia, enquanto aplicava mais um pouco de uma pasta obtida da maceração de ervas medicinais com óleo de bagas silvestres, sobre as marcas das cordas que a haviam submetido à rigidez aprumada da cruz. A mulher demonstrava, uma vez mais, uma recuperação admirável das mazelas. Zímio estava também completamente restabelecido.
-“Já não faltará muito para que o que anseias se concretize. Por tua causa e pela tua vontade indomável foi possível agitar o entorpecimento da Ibéria e despertá-la para o perigo do dissimulado invasor. Agora que foi desmascarado, resta deitá-lo por terra e espezinhá-lo como víbora venenosa, para podermos alcançar os teus sonhos!” Aconchegou, Tongídio, a sua mulher com um abraço carinhoso.
-“Sem dúvida: não fora a determinação de Rubínia e ainda estaríamos a contemporizar com o inimigo. Nós - e talvez mesmo Aníbal - seríamos, em breve, presas isoladas e fáceis para o predador romano. Deste modo, têm de nos enfrentar no conjunto e de uma só vez. Vai ser mais equilibrado.”
-“Equilibrado para quem, Gurri? Só se for para eles, que vão passar uma só vergonha! Hehhehhe!” Riu-se o descontraído Talauto, logo acompanhado pelos amigos.
No dia seguinte, a longa coluna procurou um ponto de vau ou um passadiço para atravessar o Durius, mais domado e afável naquela fase sazonal.
O povoado de Freixieiro elevava-se num pequeno promontório das arribas do Durius, numa zona em que o rio se espremia mais entre a tangente das margens. Aí existia uma ancestral ponte, suportada por seculares troncos de castanheiro e longas amarras, resultantes do enlaçamento de múltiplas cordas. A tosca passagem dominava o caminho que ligava o centro da Ibéria com o grande mar do ocidente. Foi para aí que Talauto conduziu os seus homens de armas.
Ao contrário do habitual, não encontraram ninguém junto da ponte. Normalmente, seria expectável a presença de militares e até mesmo de gentes locais, que aproveitavam o lugar para encontros e cavaqueira, sempre na esperança de cruzarem com alguém diferente, em viagem, e escutarem as novidades de outras paragens. Para o lado do Freixieiro também não se via qualquer movimentação de pessoas ou animais. Estranho.
Com a prudência habitual, o caudilho vetão enviou um grupo de guerreiros na frente, para tomarem pulso à situação. Destes, receberam sinais para avançarem. Retomaram. Um grupo com os líderes entrou na citânia, apenas para verificarem as razões do inabitual, enquanto os restantes aproveitaram para repousar nas muitas sombras que a cerca lhes dava, pelo exterior.
Ao longo das ruas estreitas que levavam ao centro do povoado, as pessoas apertavam-se contras as paredes de casas e muros, abrindo passagem aos cavaleiros forasteiros. Manifestava-se confrangedor o contacto com o silêncio e os olhares atentos dos autóctones, que seguiam o movimento da pequena coluna militar. Mais insólito era o facto de se tratarem apenas de homens adultos e alguns anciãos.
Chegados ao edifício de governo, a comitiva foi recebida pelo chefe da comunidade, Alúbias, pelo seu filho Pardo e por alguns guerreiros e ilustres locais. Todos entraram na residência do Conselho, enquanto Talauto, indirectamente, procurava saber se existia alguma anomalia que justificasse as diferenças à ordem costumeira.
- “Meu pai, Talamo, à frente de um grande número de guerreiros e também de população civil, passou por cá há alguns dias? Estavam bem? Seguiram viagem normalmente?”
- “Sim, o meu senhor Talamo passou por cá. Descansaram algum tempo e prosseguiram viagem, como tinham previsto. Boa parte dos nossos jovens guerreiros também partiu, engrossando a força que reunis contra o inimigo. Por outro lado, acolhemos algumas centenas de civis, que o vosso pai entendeu encomendar-nos, assim como referiu que pretendia distribuir os restantes pelos povoados seguintes, de forma a não os levar para o centro do conflito.”
- “Hum. Então, Alúbias, onde estão essas pessoas que por cá ficaram e, mais, onde está a vossa população? Apenas encontramos varões e já de madura idade.”
-“Bem, senhor. Acontece que…” Tornou-se bastante notório um tremor nervoso generalizado, nos tiques faciais de Alúbias e na inquietude dos seus conterrâneos.
- “… Acontece que… Bem, este é um assunto bastante delicado. Se não vos importais, peço-vos que nos dirijamos àquela pequena sala do fundo para vos narrar algo, a sós. Peço-vos, por Bandua…”
Talauto ainda hesitou, mas aceitou. Estava entre os do seu povo. Assim, enquanto Tongídio, Rubínia, Gurri, Mauri, Zimio e mais dois superiores do exército aguardavam, refrescando-se com alguma água e cerveja, o líder vetão acompanhou o anfitrião até à câmara anexa, que se abria após alguns simples taipais de verga, esburacados, mas opacos, dada a rarefacção da luz.
Assim que Talauto entrou no espaço, tudo ficou turvo e incoerente. Semi-consciente, após a pancada que levou na nuca, exaurido de energias, apenas entendia que estava prostrado pelo chão, agarrado ostensivamente pelos ombros e braços, amordaçado e, à sua frente, Pardo, com um punhal trémulo, mostrava o que pretendia.
- “Vamos Pardo, sabes o que é necessário fazer! Não temos opção!” Incitava, entre dentes, Alúbias. Porém, o filho vacilava, enquanto, dividido, se apunhalava no íntimo, resistindo ao acto de homicídio, por mais justificável que fosse a sua causa.
Pardo aproximou-se e debruçou-se junto ao peito de Talauto. As lágrimas corriam vertiginosamente, caindo-lhe sobre os retesos músculos do braço assassino. Vermelho de ira contra a sua sorte, encarou a vítima com mágoa e arrependimento precoce, e num soluçar salivado, encomendou a sua expiação, em tom quase imperceptível: - “Perdoa-me senhor, mas a tua vida vale centenas de vidas e muitas delas queridas para mim, para nós. Se eu pudesse dar a minha em resgate, já estaria morto e tu poupado…”
Encostou a lâmina ao peito do cativo. Segurou-a com a mão esquerda, enquanto colocou a direita sobre o topo do punho. O golpe seria certeiro ao coração e o falecimento breve. Cada vez mais consciente, Talauto começou a estrebuchar, procurando fazer tumulto para alertar os amigos.
Pardo demorava-se demasiado. Sentindo a situação a complicar-se e a perder-se a oportunidade, Alúbias desembainhou, sem ruído, a espada, decidido a cumprir aquilo que o seu filho não tinha coragem. Segurou-a com as duas mãos, e lançou a estocada descendente sobre Talauto.
-“Não, não podemos executar este ultimato! Não podemos trair os nossos…” – Gritou Pardo, atraindo também as atenções dos presentes no salão maior. Porém o seu pai estava obcecado e não o ouvia já, determinado a cumprir o que, para si, era imprescindível. Puxou acima novamente a espada para a investir freneticamente… mas não concluiu a sua intenção. Alúbias tombava, ferido mortalmente pela mão de seu filho. Face à intransigência louca do pai, Pardo não tivera outra solução, chorando-o agora, ajoelhado ao lado de seu corpo inerte.
Assomaram entretanto Tongídio e os companheiros. O lusitano queria passar à falcata os traidores, mas Talauto, ainda um pouco combalido, deteve-o. Começou por dar ordens para que o exército ficasse alerta e ordenou patrulhas em volta de Freixieiro.
Mais guerreiros se juntaram ao seu chefe. Novamente instalados no salão nobre e com condições mais estáveis, foi procurado a Pardo os motivos daqueles comportamentos e as razões das estranhas circunstâncias do povoado.
- “Uma coisa e outra estão directamente associadas à mesma causa: os romanos. Após a passagem de Talamo, vimo-nos cercados por aquilo que deve ser uma legião. Não tivemos tempo de derrubar a ponte e eles facilmente entraram em Freixieiro.
Pouparam-nos… mas com condições. Queriam a cabeça de Talauto e dos seus amigos, os quais já perseguiam há muito. Dessa forma, seria fácil acabar com a resistência ibérica…
Como penhor levaram todas as mulheres e crianças, centenas e centenas, vizinhas e as que Talamo nos recomendou. Vão arrastá-las para o campo fortificado de Sagunto, onde os terão cativos durante o tempo do frio que se aproxima. Se até lá não cumprirmos o acordado, vão passá-los como escravos, conjuntamente com outros, para Roma, através do Grande Mar Interno. Os nosso queridos estão cativos e em má fortuna! Por isso este plano desesperado, quando vos vimos a aparecer ao longe… Parecia que os deuses estavam coniventes e vos entregavam em nossas mãos… mas, não fui capaz…”
- “És digno e valente, um verdadeiro patriota, Pardo. Desculpo-te o ocorrido e compreendo a irredutibilidade de Alúbias. Afinal, ele era o responsável por toda esta gente. Que se junte aos nossos maiores no além e que tenha as exéquias próprias de um guerreiro. Certamente que viveu uma vida honrada e de brio.
Digo-te, Pardo: seja Codua benéfico com as nossas armas e assim que arrasarmos com os romanos aqui, vais realmente levar as nossas cabeças até Sagunto, mas ainda em cima dos respectivos ombros e a liderar um exército salvador para os nossos compatriotas. Tens a minha palavra! Agora acompanha-me até ao grande combate. Tenho em ti a maior das confianças. Serás um dos meus próximos, a partir de agora.”
A descompressão e o sorriso suavizaram aquelas faces trigueiras, rudes e marcadas pelos elementos atmosféricos e pelas experiências e pelo génio humano. Ouviram-se algumas vozes de aprovação e convicção em mais um momento de reforço da união.
- “Caros amigos, o nosso caminho deve seguir de forma decidida, mas cautelosa: temos de enfrentar mais uma legião, ou pelo menos um grande corpo de soldados romanos, soltos e beligerantes em solo da nossa querida Ibéria, sem sabermos de onde apareceu e qual a sua real valia e dimensão. Se necessário, ser-nos-á colocado mais um trabalho: atrasá-los, para dar mais tempo a Alépio, na montagem das defesas em Ribasdânia.”
Andarilhus
XXI : VI : MMXI