Por Ti Seguirei... (53º episódio)

 

Os druidas abriram o ventre do animal e retiraram as vísceras determinantes para o oráculo. Analisaram-nas, sulcaram-nas com as adagas de silex e, finalmente, pediram um bacio de bronze com brasas, onde colocaram o fígado a fumegar. Leram os sinais do fumo e evocaram uma vez mais os deuses.

Após a conferência dos 3 sacerdotes, um deles revelou os vaticínios: -“Os deuses são nebulosos na sua vontade. Não há dúvida que querem que alguém – e apenas um - se levante e abrace os povos da Ibéria, protegendo-os como um pai, com afeição igual para com todos. Será o nosso chefe e só ele nos poderá garantir a vitória.

Quanto à nomeação de tão especial pessoa, não há uma designação concreta. O único sinal dos deuses é declarar-vos que só reconhecerão o vosso líder supremo após o sangue ser derramado e, então, o próprio sangue acusará aquele que merece a maior das honras. Temos dito, por bondade dos mestres solares.

Logo se iniciaram os murmúrios. Como poderia ser esta a manifestação dos deuses? Porque não indicam um nome, de forma clara?! E aquele mistério do sangue “falar”? Que enredo estranho e complicado.

- “Será que temos de lutar entre nós para os deuses se decidam na escolha?” Perguntava o candidato asture.

- “Talvez só depois de iniciarmos o choque das armas com os romanos e comece a correr sangue é que teremos a revelação.” Comentava outro.

Multiplicavam-se as opiniões, enquanto os elementos do Conselho se agrupavam num círculo sempre em movimento, trocando impressões, em grande confusão. Rubínia mantinha-se apartada, calma, à sombra de um dos poucos carvalhos que existiam no interior do reduto. Até que se ouviu entre os presentes alguém lembrar que fora ela quem tinha provocado aquela busca pela inspiração divina. Porque não ouvir as suas considerações sobre o desfecho do acto…

Os olhares concentraram-se em Rubínia, aguardando que se pronunciasse. Porém, como também ela continuava a meditar sobre o prognóstico, não tendo ainda uma resposta convicta - apesar de sentir que havia um forte propósito nas palavras enigmáticas dos deuses -, foi titubeando alguns dizeres: - “Bem, temos uma adivinha para desensarilhar. Certamente, as divindades não querem ser esclarecedoras; querem antes que nos concentremos nesta demanda que nos junta a todos. Talvez seja um exercício, não para designar um nome proposto por sacras palavras, mas para nos obrigar a encontrar o melhor entre nós. O sangue será a marca… mas como?

- “Deixem Rubínia sossegada! Se não fosse pela vossa teimosia não estávamos aqui a bater com a cabeça no penedo! Arre que são piores que jericos! Até conseguiram aborrecer o sempre alegre Alépio…” Praguejou Tongídeo, contra os que importunavam a sua mulher. Conseguiu afastar a pressão, como pretendia.

-“Esperem! Esperem! Alépio, reparem em Alépio!” Exclamou Rubínia, que focara o brácaro quando escutou o seu nome.

O mentor estratégico sentara-se num pequeno e afeiçoado cabeço rochoso e aí ficara discreto e algo distanciado da algazarra e da questão que o incomodava vincadamente. Ele próprio não pretendia a distinção de líder; apenas desejava que resolvessem a contenda rapidamente para dar continuidade aos planos de guerra. Perdia-se tempo precioso e o inimigo, não tardaria muito, estaria a bater à porta.

Todavia, de facto, algo de transcendente se passava naquele lugar. O banco de granito de Alépio estava ao nível da pedra do sacrifício, sobre o mesmo plano acentuadamente inclinado do relevo, o que mais adensava o mistério do que se podia presenciar: o sangue do cavalo esventrado escorrera pelas cavidades da pedra, por várias linhas que afunilavam num extremo e tombavam para o solo, numa só goteira e após uma cavidade de retenção. Até esse momento o fluído seguia o trajecto natural de procurar os pontos mais baixos das superfícies por onde passava. Só que, a partir daí e contrariando as regras da natureza, o sangue passava a correr ao inverso, deixando de buscar a pendente, para subir ligeiramente a encosta, quer fosse por capricho divino ou por capricho das rugas do solo e do amparo das ervas, confluindo na direcção do brácaro e acumulando-se em torno da rocha, circulando-a por completo como se fosse um laço. Alépio estava literalmente cercado pelo fluído sanguíneo, e nem se dera conta do mesmo.

O pasmo atravessou o grupo e o próprio observado, que saltou imediatamente da fraga. Estava à vista de todos todos; ficava tácita e silenciosamente decidido: aquele era o sinal evidente dos deuses… Pegaram em Alépio, ergueram-no em ombros e aclamaram-no dirigente de todas as armas ibéricas.

Como agradecimento e acatamento da decisão superior, queimaram o animal sacrificado, ao qual juntaram também duas rolas pela concórdia. Mas as cerimónias não ficariam por ali.

-“Por ora chega de festejos, toca a mexer, seus frouxos! Há muito a fazer, vamos ao que interessa!” Gracejou o Grande Chefe, com um sorriso de orelha a orelha.

Com a mesma alegria, foi obedecido num ápice. Cheio de entusiasmo, Alépio passou a distribuir tarefas. Uns ficariam em Ribasdânia a ultimar os trabalhos previstos, outros fariam uma ronda pelas áreas de concentração dos recursos no conjunto defensivo. Para o périplo convocou os amigos mais próximos.

Na manhã seguinte, deslocaram-se para Sul, inspeccionando Montes Negros, Serapiscos e um ponto intermédio, pelo qual se fazia a ligação da malha de protecção, e que não era mais do que um outeiro com um talude de terra a coroar o topo, a que deram o nome de Argemel. Regressaram à fortaleza central pela noitinha.

A necessidade da presença de Alépio em Ribasdânia ocupou-os dois dias, após os quais, foram ao encontro dos camaradas no outro extremo das posições fortificadas. Partiram ainda de madrugada, mas logo pararam, ao sinal do guia, passado um curto trecho de percurso. A manhã anunciava-se para breve.

-“Quero mostrar-vos outra obra que mandei construir a homens de confiança, em segredo, até ao momento. As muralhas e as torres altaneiras são para a guerra, mas achei também preponderante rasgar um pequeno templo, para colher os favores dos deuses e marcar religiosamente estes tempos e estes lugares. Ides ver a adaptação do santuário de Obila à dimensão destas paragens.”

Encontravam-se numa das ilhargas privilegiadas do Padrelas, verdadeiro balcão sobre o grande vale a Este. Aí, à ordem de Alépio, tinham rompido a talhe a penedia, criando duas fossas para sacrifícios e oferendas, e sulcando, paralelamente, um escadario de pequenos degraus laterais para cumprimento das cerimónias. Atribuíram-lhe a designação de “Santuário de Argerez”. A disposição da edificação respeitava os trâmites tradicionais, recebendo, em prumo com o horizonte, os primeiros raios de Sol da aurora. A consagração já havia sido realizada pelos sacerdotes, através dos ritos próprios, a Bandua, deidade dos laços mágicos, de sangue, da honra e da união dos homens. Símbolo do compromisso ibérico.

- “Tal como Talauto nos recebeu e favoreceu em Obila com uma oferta no altar universal, eu gostaria de retribuir e tomar gesto igual em vossa honra, meus amigos, empenhando-me em laços de verdadeira amizade e irmandade convosco e pedindo a Bandua que vos proteja nas façanhas que surgirão com uma das próximas manhãs. Sois de clãs diversos, mas sois minha família. Admiro-vos e acarinho-vos no meu dedicado coração.” Alépio abraçou e beijou a face de cada um dos amigos, retirou um anho muito jovem de um saco de estopa que corria justaposto ao lombo da montada, aplicou um golpe rápido e decidido à vida do animal, retirando-a sem dor. Quando o Sol já irradiava as primeiras ondas de suave ardor, acendeu brasa e ervas aromáticas, votou a vítima imolada ao deus e rezou baixinho as suas preces. Os restantes acompanharam o momento, concentrados e em profundo respeito.

Reservaram o quinhão sagrado e dividiram a restante carne assada. Com cerveja consagraram à mãe terra, através de libação, e tomaram a refeição purificadora e de reafirmação dos vínculos da amizade.

Foram directos a Pentões, passando ao largo de Ortas, cuja visita ficaria para o regresso. O local de defesa mais a Norte era um dos cumes elevados da cordilheira montanhosa. Até os cavalos tinham dificuldade em chegar ao vértice íngreme. A ousadia de vencer o trilho a passo, tirava o folgo ao mais arrojado e determinado. Certamente que os legionários, sob o peso das armas e protecções metálicas, desesperariam se o tentassem tomar. Na longa e penosa subida de acesso, seriam presa fácil para os de cima. Por esse motivo, Pentões dispunha de uma guarnição bastante reduzida, empenhada apenas na vigília e, eventualmente, no atraso da progressão de alguma aventura romana.

De toda a maneira, Alépio incitou ao armazenamento de grande número de pedras, sobretudo, das mais arredondadas, para serem atiradas pelo monte abaixo, se tal fosse preciso. E se a situação se agravasse, então, poderiam tentar deslocar as grandes rochas que serviam de tapamento geológico, natural. No limite, a fuga estava garantida pelo lado contrário, ao longo da crista do Padrelas.

Enquanto procediam a semelhantes trabalhos, Tongídeo e Rubínia resolveram dar um passeio, descendo até uma zona intermédia da encosta, na qual se formava uma área menos inclinada, quase em patamar, e que patenteava uma vegetação muito colorida.

No início da descida, para que os guardas pudessem controlar qualquer aproximação e ataque, a vegetação fora cortada imediatamente abaixo do reduto de Pentões, utilizando-se os troncos para preencher as falhas na barreira de penedos. A área arborizada aparecia novamente intacta a uns 40 passos abaixo.

O casal de celtas saíra o mais possível desprovidos de peso, deixando as armas maiores e portando apenas uma adaga. Deixaram também as couraças, tudo para contornar melhor as dificuldades da morfologia do terreno. Começaram por saltitar pelos caboucos do arranque das árvores, pelas reminiscências de ramagens, cascas e pelas raízes que foram deixadas para trás, até que alcançaram a floresta e nela se embrenharam.

Com a folhagem surgiam a frescura e as cambiantes luminosas provocadas pela multiplicidade de cores e pelos cones espaçados de maior claridade, gerados no jogo de sombras e luz da entrada dos raios solares pelas falhas do escudo vegetal.

(continua)

 

Andarilhus

XXI : VII : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 07:58