Por Ti Seguirei... (61º episódio)
Na casa do Conselho, em parte ardida e com cheiro de farrusco da lareira, Alépio divulgava o segredo que poucos conheciam e pedia que o fizessem saber aos guerreiros apenas no limiar do grande acontecimento. A surpresa seria, pela última vez - esperava -, a arma maior contra o poderio militar Romano. O golpe preparado deveria terminar com as ambições do invasor e dar-lhe sabedoria para nunca mais atentar contra a Ibéria.
Ainda um pouco desconfiados sobre a veracidade do relatado e pouco crédulos nas expectativas da boa vontade de outros, os dirigentes iberos entreolharam-se em silêncio, amarfanharam as peles e outras vestes com que cobriam parcialmente o corpo e ficaram murchos, com algum nervosismo latente. O comandante brácaro contava com outro tipo de manifestação, mas compreendeu que acabara de lhes transmitir algo difícil de digerir ou mesmo de conceber. Era como dizer-lhes que o Mundo ficaria às avessas…
Exortou-os com todo o fulgor: “Algum de vós tem razão para desconfiar de mim? De duvidar de minhas palavras? Por ventura, pensais que crio um logro e vos preparo uma armadilha? Ou mesmo que serei tão ingénuo que caí facilmente na conversa falsa de outros?”
Fez uma pausa, para depois reforçar: “É agora ou nunca: tempo de investir tudo e arriscar, mesmo um pouco às “escuras”! O nó foi criado, temos de o desmanchar, principalmente com esta ponta solta que nos foi proporcionada. Vamos puxar o fio, nem que se parta!! Alguém quer desistir? Não recriminarei ninguém que se queira afastar…”
“Eu vou contigo, Alépio. Nem que sejamos só os dois a descer a montanha contra o incerto, contra o perigo!”
“Seremos três, então!” Rubínia secundou Tongídio.
“Todos iremos! Embora seja uma pequena loucura, e temos tanto de certeza quanto a sucesso como a fracasso. Quem nos vai receber poderá ser o amigo ou a morte, mas todos iremos, não é assim, bravos iberos?!” Exultou Sonim.
Finalmente, ouviram-se os gritos de guerra que se aguardavam. A sorte estava traçada e com ela, o destino daquelas terras e lugares.
Com a decisão tomada, esfusiantes em alarido, com música cadenciada a ritmar o movimento, uma vez mais, os Iberos saiam de portas e, em grossa coluna, desciam até meio do carreiro que levava ao vale. Aí chegados e para que saíssem mais umas centenas largas de guerreiros, começaram a espalhar-se um pouco pelas zonas menos íngremes da encosta. Cerca de 5000 celtas mostravam-se ostensivamente a Quintus Scipius. Um pouco mais de 3000 mantinham-se na guarnição de Ribasdânia para fazer frente às tropas de Fábio e evitar que conseguissem passar para a descida do Padrelas e colocassem, assim, a força conduzida por Tongídio entre o martelo e a bigorna.
O Cônsul, perante o desafio e a investida iminente dos bárbaros, avisado pelas investidas anteriores daqueles, deu instruções para o posicionamento dos aliados na vanguarda. Arevacos, Titos e Belos adiantaram-se e foram colocar-se em fileiras junto ao fundo da rodeira. Um pouco mais atrás, mas algo afastados, Quintus aproximou três coortes pesadas, com cerca de 900 legionários, cada. No total, dispunha de uma primeira força de choque equivalente à maré de Iberos que se preparava para rolar montanha abaixo.
Na sua previsão, o comandante romano, alcançaria a vitória após o desgaste de guerreiros do primeiro embate, mandando avançar, no decorrer da peleja, mais quatro coortes que acabariam o serviço e aniquilariam aquela praga de selvagens.
Fábio também não perdeu tempo. Ao avistar as manobras do adversário, apercebendo-se que um grande número de efectivos marchara para fora de Ribasdânia, mandou apressar todos e lançou as primeiras forças contra as muralhas, enquanto orientou parte dos homens numa tentativa de contornarem a fortaleza e atacarem a coluna de Iberos que descia a vertente.
Como as passagens laterais entre os píncaros superiores da montanha e a cidadela, ou entre esta e o declive vertiginoso, eram muito estreitas e sempre ao alcance dos de dentro, os esforços de a contornar saíram infrutíferos e causaram pesadas baixas. Alépio instigava fundibulários e arqueiros a constantes e ininterruptos lançamentos, o que redundava num grande massacre de todos os que procurassem a nesga do sucesso para os intentos de avanço. Mesma sorte se atravessava na frente daqueles que procuravam acercar-se dos muros, para os galgar.
Com o crescendo de abatidos, os Romanos decidiram então, primeiro, construir pequenos refúgios em madeira, oblíquos, que os apoiassem e protegessem dos projecteis junto da fortaleza.
Do cimo do baluarte e após divisar os traços de fumo que se volatizavam para os lados de Montes Negros, Alépio deu instruções para que se propagasse o som do sinal de ataque a Tongídio. Estava tudo pronto; todas as peças da estratégia tomavam a disposição prevista.
O lusitano seguiu as ordens e iniciou a descida final com os seus guerreiros. Primeiro a passo lento, acelerando depois, progressivamente, ganhando uma velocidade alucinada, direitos à barreira de lanças dos iberos traidores que os esperavam.
Abaixo, os Arevacos ajeitavam as armas em riste e enrijeciam os braços nas correias dos escudos. As coortes romanas de apoio também ficaram de sobreaviso. Muito atrás – havia recuado para o fundo do reduto latino – Quintus colocava-se com o restante exército a salvo de artimanhas manhosas dos bárbaros.
Quando já os Celtas vertiginosos erguiam as armas para as desferir nas primeiras linhas adversárias, Tongídio entoou a corneta e estacou a corrida e com ele, já na borda do vale, ao longo de uma fiada paralela aos que aguardavam o embate, todos os seus comandados. As duas massas oponentes estavam a dois passos uma da outra. Os guerreiros que se confrontavam olharam-se por alguns instantes… Sentia-se um burburinho nervoso no ar. Estaria o trato bem acordado, tal como planeado? Sim, Gurri e Irineu cumpriram plenamente a missão!
Os beligerantes baixaram as armas, afastaram escudos e correram a abraçar-se fraternalmente. A Ibéria estava plenamente unida a partir desse momento!
O Cônsul ao longe não queria acreditar. Aliás, julgava-se com alucinações provocadas pela distância. Os rancorosos inimigos pulavam, gritavam em confraternização, como se fossem amigos de longo tempo. E eram.
Quando, anteriormente, no curso da investida inicial da cavalaria de Talauto sobre o campo romano, os Iberos se acercaram do assentamento arevaco, permitindo que uma dezena de cavaleiros saltassem das montadas e se perdessem pela multidão caótica, preparava-se uma das estratégias cruciais da guerra.
Entre essa dezena de guerreiros estavam Gurri, Urtize e mais dois Vacceus, acompanhados de Irineu, líder dos rebeldes Arevacos e alguns compatriotas. Não foi difícil alcançarem os seus propósitos. O comportamento dos Romanos para com os seus aliados abriram feridas enormes e haviam minado não só a confiança como a simpatia. O azedume e a repudia aos comportamentos déspota e humilhante do invasor grassavam entre a maioria dos Arevacos. Por isso, com alguns golpes de punhal aplicados nos caudilhos que, por interesse egoísta, insistiam na amizade e aliança com os do Lácio, Irineu conseguiu converter facilmente todo o seu povo e, ali, o exército, contra o invasor estrangeiro. Titos e Belos acompanharam os vizinhos na mudança táctica e afectiva.
O sinal de fumo avistado de Ribasdânia era a confirmação aguardada ansiosamente por Alépio, porém poderia ser também uma armadilha, caso a congeminação não tivesse sortido êxito.
Andarilhus
VII : IX : MMXI