Por Ti Seguirei... (62º episódio)

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Após o breve convívio retomou-se a obrigação, irou-se novamente a investida, em corrida desembestada e ritmada por gritos selváticos e estrondosos. Os deuses favoreceram a união da pátria e todos juntos, instigados pela temeridade de Rubínia, Tongídio, Gurri e Irineu, enfrentavam de pronto aqueles cerca de três mil romanos das coortes de suporte. Pela primeira vez, o número de Iberos era superior às forças romanas mais próximas. Os legionários colocaram-se instintivamente em posição de defesa em formação de “Tartaruga”.

Ainda mal desperto e solicitado pelos elementos do seu estado-maior, Quintus mandou avançar as quatro coortes que colocara de reserva para terminar o “trabalho”, ao mesmo tempo que exigia, em altos brados, que a totalidade de efectivos assumisse formatura e permanecesse em ordem para combate.

Os Iberos carregaram sobre os legionários da vanguarda, forçando-os a desmontar a disposição agrupada, exigindo-lhes o combate individual corpo-a-corpo. As tropas de apoio aproximavam-se em passada rápida e ordenada, mas ainda demorariam a vencer alguma distância que os separava da frente da batalha.

Com esta desagregação do corpo central do exército romano, a parcela que ficava na rectaguarda e protegia o alto-comando latino, limitava-se a pouco mais de meia Legião. Tantos quantos os que passaram a ser o alvo, abrindo nova frente de batalha, da carga inesperada da cavalaria de Talauto, engrossada pelos peões de Montes Negros.

Talauto e os seus, que haviam ficado discretos e acoitados nos montes próximos, no seguimento do ataque em desbarataram a cavalaria romana sob o testemunho de inúmeros castanheiros, apareceu de rompante (confirmara prontidão através do segundo sinal de fumo detectado de Ribasdânia e que decidira Alépio e iniciar o ataque final) e entrou fundo nas fileira inimigas, procurando abater ou capturar o Cônsul rapidamente. Porém, as tropas que formavam o núcleo central romano eram as mais experientes e aguerridas, com elementos que só cederiam posição por morte.

Embora apanhado desprevenido, Quintus Scipius escapava à primeira ronda de assalto da cavalaria ibera. Desprovidos da organização habitual os legionários esforçavam-se por conter a investida dos cavaleiros vetões e dos guerreiros do Sul da Ibéria: Cónios, Batestanos, Túrdulos e Turdetanos.

Perante as novas circunstâncias, seguindo as ordens emitidas por trombeta, duas das coortes que avançavam em auxílio das que enfrentavam a numerosa força que havia agregado os guerreiros de Tongídio e dos Arevacos e outros aliados, inverteram a marcha, em defesa do seu comando central.

Os Romanos estavam completamente desalinhados e desorientados, perante os acontecimentos, não conseguindo manter as razões principais do seu poder: a união e a organização. Alépio conhecia bem os romanos e era um mestre em contrariá-los e a transformar as suas forças em implacáveis fraquezas.

Durante o tempo – que pareceu uma eternidade, sem o ser – em que os dois extremos do contingente militar itálico permaneceram em inferioridade numérica e algo tresmalhados, enquanto as coortes centrais se movimentavam para um lado e para o outro para os acudir, os Iberos aproveitaram para infligir um grosso quinhão de perdas em homens no inimigo. Em vão, os centuriões procuravam manter os legionários alinhados, mas a pressão esmagadora dos oponentes desmobilizava-os de vontade de agrupar ou até de combater. Cada qual tratava de salvar a própria vida, procurando sobreviver à avalanche de golpes. Surgiram as deserções e mesmo as rendições de pequenas bolsas de soldados que eram isoladas.

 

Do alto, Fábia contemplava o cenário e estremecia. Se Quintus não promovesse uma reviravolta lesta nas circunstâncias, estava tudo perdido; a Águia Romana tombaria de joelhos.

Incitou os seus homens contra os portentosos muros de Ribasdânia e enviou a parca cavalaria que tinha ao seu serviço, em volta, por Ortas, em socorro dos camaradas assolados pelas hordas de bárbaros, no vale.

Tombemos este bastião! Os vossos companheiros sucumbem como pardais no vale; é nossa obrigação acudi-los!

Os legionários bem tentavam entrar no reduto que Alépio defendia afincadamente, com a, relativamente, pequena guarnição que comandava. Muitos dos guerreiro de arremesso, que se expunham para atirar as setas ou as pedras, haviam já caído, feridos pelos arqueiros romanos. Os que subsistiam concentravam-se em não deixar passar o inimigo para os lados do trilho que conduzia ao vale. Os do lácio, aqui e ali, já iam conseguindo alçar escadas contra as paredes da fortaleza, mas o ânimo dos de dentro votava ao fracasso todos os assaltos.

Alépio segurava Fábio com correia bem afivelada, mantendo-o atraído a um propósito e sem o deixar ir longe.

 

No vale, os acontecimentos desenrolaram-se rapidamente. O encosto das coortes de apoio aos blocos em liça definiu decididamente dois polos de batalha.

Então, do lado de Tongídio, a profusa mortandade entre os opositores iniciais, as fugas e capitulações, acabaram por deixar a recém-chegada força auxiliar de duas coortes em muito má situação. Os bárbaros eram avassaladoramente mais e com a confiança transbordante pela convicção da causa em pugna, que lhes elevava a autoestima.

Do lado oposto, ocorria o inverso no equilíbrio de contingentes, mas Talauto, com a superioridade da cavalaria e sem oposição congénere, com investidas e recuos constantes, mantinha o inimigo em trabalho aturado, concentrado, e preocupado em consigo mesmo.

Já em adiantada tarde, junto ao sopé da montanha, com o braço da tatuagem do urso a brandir a falcata do extermínio, dando o exemplo aos seus conterrâneos, precipitando-os nefastamente sobre as linhas inimigas, os Iberos esgotaram a resistência dos oponentes, provocando a debandada geral dos invasores e a captura dos estandartes e das Águias de ouro de duas legiões. O desbarate dos legionários levou muitos a perderem-se pelas matas vizinhas – seriam capturados mais tarde, se não morressem dos ferimentos ou dos ataques de feras – e outros, ainda em número significativo, a reunirem-se à parte do exército que lutava no outro extremo.

Com a queda daquela ala dos do Lácio, de ambos os cantos do campo romano, agora, campo de batalha, os combates cessaram.

 

Quintus deveria ter evitado a separação das forças e, pelo menos tentado, reuni-las novamente, pensava Fábio.

Acabou! Já há um vencedor. Resta-nos sair desta terra maldita com dignidade. Espero que o Cônsul tenha a clarividência suficiente para enxergar o fim e não permita a continuação deste trucidar dos soldados de Roma. As circunstâncias exigem um pedido de tréguas. O nosso comandante supremo é o verdadeiro véu de morte para os seus subordinados…” Desabafou o Tribuno, para quem o quis ouvir.

Ainda dispondo de um avolumado corpo militar, Fábio deu ordens para recolherem os feridos ao arraial de Ortas e recuou com o seu séquito militar. Aí, deixou a guarnição que considerou suficiente para garantir a segurança dos seus homens mais fragilizados e partiu para o vale com dois milhares dos seus legionários.

 

Alépio entendeu a manobra do dirigente inimigo. Saudou-o ao longe, com certa admiração. Se aquele fosse o Cônsul, a vitória sobre o poderio romano não seria tão simples ou talvez, mesmo, possível.

Deixou o comando de Ribasdânia a um dos seus oficiais, com ordens bem precisas, e desceu ao vale com uma escolta alargada e de reforço. Quando reencontrou os amigos, abraçou-os com afeição. Apesar das pequenas mazelas e do cansaço, tão próprios da liça, todos estavam de saúde e alegres.

Os Romanos entrincheiravam-se à pressa nas antigas posições dos Arevacos, aproveitando pequenas estruturas aí montadas e os muitos materiais e artefactos semeados pelo solo.

Com o equivalente de efectivos a uma Legião, tendo pela frente mais do que o dobro de adversários, Quintus estabeleceu o posto de comando num pequeno outeiro e distribuiu os legionários em redor do mesmo.

 

Bem, vamos a isto, antes que os “romanitos” ergam defesas mais sólidas. Reparem que nem se preocuparam com os seus moribundos espalhados por estas pastagens de morte; temos de ser nós a dar-lhes o golpe de misericórdia! Vamos, cavaleiros celtas, ao ataque!

A cavalaria ibera arrancou novamente, para castigar ainda mais os cansados e desmoralizados inimigos. Talauto, sempre afoito, manteve a pressão sobre as franjas das defesas latinas, investindo sempre sobre os pontos mais fracos, evitando riscos maiores.

Os arqueiros cartagineses, bem afastados e sem o receio de represálias, enviavam chuvas sucessivas de flechas para as trincheiras do inimigo, infligindo grande mossa entre os legionários, os quais numa constância entre o alerta nos perigos do horizonte e o elevar na vertical os escudos, para se protegerem, não tinham sequer um momento de menor ou mais rudimentar sossego.

Os guerreiros apeados confluíram ao epicentro do combate, cercando quase completamente o exército Romano. Após um derradeiro assalto da cavalaria, para fragilizar as linhas da frente do adversário e abrir pequenas brechas, a multidão de iberos correu em massa e abruptamente para as arruinadas defesas latinas. O choque foi tremendo, devastando profundamente as orlas do aglomerado que protegia Quintus e os seus superiores.

Os iberos mais bravos ou enfurecidos quase chegaram ao centro do comando, levando todos os obstáculos à frente do gume da espada ou do machado. Porém, pagavam caro a ousadia, uma vez que se movimentavam como ilhas no grande mar latino, despegados da sua força principal. A maior parte dos mais audazes foi aniquilada, depois de levar o alvoroço quase até aos pés do Cônsul. A Legião derradeira tremia, mas aguentava-se, mediocremente.

Num último esforço, os verdadeiros líderes dos legionários – os Centuriões – concentraram-se na coesão possível, cerraram fileiras e conseguiram rechaçar o massivo ataque.

Os iberos recuaram para reagrupar e ganhar novo fôlego. Uma nova investida daquela envergadura e o inimigo ficaria arrasado. Os corpos que pejavam o chão e o enlameavam com o sangue tinto eram tantos que quase formavam uma paliçada de defesa. Os efectivos de Quintus sucumbiam em bandos e diminuíam significativamente, mas o arrogante magistrado não poupava vidas com a sua ambição e teimosia. Morreriam ainda muitos até que ele, por fim, se desse por vencido. Ou jamais o faria e morreria também.

Talauto nos seus esquadrões equestres e Tongídio com os seus guerreiros peões tomaram posição para a carga decisiva. Desta vez não recuariam até que houvesse um vencido e um vencedor.

 

O Lusitano já chegava à boca o corno de boi forrado a fino couro e ricamente ornamentado, para entoar a incursão, quando sentiu a mão de Alépio a interromper-lhe o movimento: “Espera, meu amigo. Eis que chega Fábio. Talvez esta terrível obrigação de aniquilar outros seres humanos termine por aqui. Aguardemos um pouco.

E depois virando-se para os guerreiros que ocupavam o flanco por onde se aproximava o Tribuno, gritou, para se fazer ouvir: “Deixem passar os romanos que aí vêm e não dificultem a que se juntem aos que ali estão acantonados. Talvez estes não sejam nossos inimigos…

Os homens da Ibéria riram-se a pensar que o Grande Chefe ironizava e procurava, na verdade, juntar mais adversários para a matança. Afastaram-se, abrindo um amplo corredor, por onde passaram Fábio e o regimento que o acompanhava. O silêncio e os olhares de soslaio imperavam…

 

Andarilhus

X : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 10:02