Por Ti Seguirei... (64º episódio)
Novamente reunido o exército romano atrás das barricadas, as perspectivas agravavam-se após a iniciativa fracassada. Tinham causado muitas baixas entre os bárbaros, mas o número de legionários caídos era igualmente elevado, restando um corpo militar cada vez mais reduzido. Dada a deslocação durante a batalha, o vale mostrava-se pejado de corpos e de gente que gritava por auxílio. O rasto da violência oferecia-se bem evidente.
À semelhança do dia anterior, mesmo em vantagem, Alépio não ordenava um ataque final ao abrigo do inimigo. Instruía o reagrupamento dos guerreiros, ficando a aguardar algo que os outros não entendiam, mas que era claro na atitude do caudilho.
Tongídio resmungava, enquanto ia limpando as crostas de sangue seco que acumulava, em fios, pelo corpo: “Acabemos com isto Alépio! E depois vamos todos ao ribeiro lavar-nos e purificarmo-nos… já que as saudosas termas de Obila estão tão longe. E há o festim a realizar! Então, o que esperas?!”
“Calma, Grande Urso Azul. Atenta. Talvez já esteja terminado. Daqui a pouco o saberemos. E, de qualquer maneiro, hoje será o último dia da sobranceria do invasor sobre as nossas terras!”
Fábio dispôs as defesas, para logo a seguir, fazendo-se acompanhar de meia centena dos seus homens de confiança, ainda com os “troféus”, as sujidades e os odores próprios da guerra, se acercar da tenda central do comando. No terreiro em frente, aguardava Quintus e todos os restantes oficiais. A guarnição na área não era muita: estavam ocupados com as defesas externas.
O Tribuno dirigiu-se ao Cônsul. Estacou tão próximo dele, que sentiam mutuamente os hálitos. Entreolharam-se duramente.
“Cônsul Quintus Scipius é intolerável o teu comando. Por tua vontade, definham-se os homens e definha-se o prestígio da Pátria. Serves mal a Roma e ao seu povo. Colocas a Legião em vergonha! Retrata-te, desiste da tua desmesurada altivez e entrega a chefia a Velino Albino, o General mais velho aqui presente…”
Fábio olhou para os aprumados oficiais e não conseguiu decifrar o que iam conjecturando no interior dos seus inexpressivos e pálidos rostos. Assemelhavam-se mais a moribundos do que a gente com sangue nas veias. Por um breve momento desejou assistir à manifestação de alguém, pelo menos de alguém, nem que fosse apenas um. Mas nada… O Cônsul sorria, cínico, já a traçar mentalmente o destino do incómodo e impertinente Tribuno.
Então, Fábio arriscou tudo. Sem dar tempo a mais uma irascível reacção de Quintus, falou bem alto, enquanto puxava o gládio, ainda ensanguentado, da bainha: “A mim soldados! Prendam o Cônsul e todos aqueles que o defenderem! Eu tomo em mãos o destino desta malfadada campanha e serei o único responsável por esta acção de substituição de comando.”
Os legionários não responderam prontamente à ordem. Ficaram apreensivos e titubeantes. Contudo, irromperam rapidamente em socorro do seu chefe quando alguns dos oficiais atacaram o Tribuno. Após alguns golpes breves, dois Generais estavam degolados, os restantes desarmados e dominados. O sorriso sórdido desapareceu da face bexigosa do Cônsul, que espumava tanto da boca, enervado, que quase não conseguia construir frase entendível: “Vais ser crucificado por isto, cão! Escumalha da ralé mais baixa da plebe… Não entrarás em Roma… O Senado quando souber da traição vai enviar a justiça sobre ti e os teus lacaios!”
“Quintus, não te preocupes, saberei assumir todo o ónus desta decisão. Entretanto, vou parlamentar com o Iberos e tentar encontrar uma solução que nos tire daqui sem que percamos mais vidas Como oficiais, estareis todos presentes nas conversações e sereis ouvidos, se marcarem a vossa presença pela compostura e sobriedade.”
Fábio Fulvius reuniu o exército que restava em assembleia magna, falou-lhes dos acontecimentos e entregou-lhes a deliberação final. Apesar de algumas vozes contrárias, a grande maioria compreendeu pacificamente e apoiou a atitude do Tribuno, saudando-o como o novo líder. Perceberam que não seria apenas o chefe mas também o salvador daquela expedição fracassada, trágica para tantos amigos, familiares e, sobretudo, para os desígnios de Roma.
Quando sentiu os ânimos mais sossegados, o novo comandante romano alçou uma bandeira sobre um dos estandartes da Legião, como sinal de tréguas e, escoltado por uma dezena de cavaleiros, saiu do arraial, avançando até meio do campo que mediava as duas forças. Ergueu alto o arauto.
“Ainda bem… Já está, tal como eu previra. Os romanos entenderam-se entre si e, pelos vistos, ganhou a facção mais sensata. Pelos deuses, é bom que tenham sido assim inspirados. Já basta de mortos…” Comentou Alépio para os seus amigos.
“Vamos lá ver se tal se confirma e o que é que eles pretendem. Tragam os cavalos. Gurri, Tongídeo, Talauto… enfim, vá, todos vós que aí estais vêm comigo.”
Foram ao encontro dos emissários do inimigo, com passo pausado e atento. Estacaram a uma distância relativa, que permitia a comunicação, mas não um eventual contacto físico imediato.
“Sou Fábio Fulvius, Tribuno nas Legiões de Roma. Neste momento, dirijo este exército. Entendemos que esta guerra se mostra inútil e decidimos oferecer-vos tréguas, terminando com este conflito.
Estais dispostos a ouvir-nos e entabular negociações?”
“Eu sou Alépio, de origem calaica e líder destes Iberos. Digo-te que é curiosa a forma como colocas a questão. Todavia, será interessante escutar os termos em que pretendeis favorecer-nos com semelhante “oferta”. Pessoalmente, estou mesmo curioso naquilo que tendes para dar e que nós não possamos simplesmente tomar. Mas, diz-nos quais são as vossas condições…”
“A colaboração e o entendimento quanto à supressão de mortes inúteis é, só por si, motivo de generosidade e dádiva. Porém, compreendo-te Alépio na tua ironia e reconheço a situação difícil em que estamos atolados… Se concordares com a realização de uma jornada parlamentar, proponho que nos encontremos mais tarde. Trarei os escrivães para assentar em registo os termos do acordo de tréguas e virei acompanhado de todos os oficiais, inclusivamente do deposto Cônsul Quintus Scipius, os quais servirão de testemunhas, mais tarde, perante o Senado de Roma.
De qualquer maneira, apelo desde já à vossa piedade para obter condições que permitam recolher os meus compatriotas tombados, quer os mortos, quer os moribundos. Nós permitiremos que façais o mesmo, sem qualquer oposição ou retaliação.”
“Romano, recolhe os teus companheiros que jazem pelo solo. Cuida das suas feridas ou da sua partida ritual para o além. Da nossa parte faremos o mesmo. Os guerreiros Iberos destacados para esses trabalhos não tocarão em vivo ou morto romano com que cruzem. Contamos com uma atitude idêntica dos vossos legionários. Será um bom teste à boa vontade de ambos. Depois, recolhe-te ao teu campo e passa a noite. No próximo amanhecer encontramo-nos novamente aqui para buscar a paz.”
“Assim seja; cumpram-se as tuas sábias palavras, Brácaro. Despeço-me.”
As representações saudaram-se minimamente e regressaram para as suas posições.
Pouco tempo passado, de ambos os lados saíam grupos apetrechados de padiolas rudimentares e carros puxados por cavalos. Iniciaram a lida de recuperar enfermos e prestar os primeiros socorros, de recolher os corpos chacinados e as armas e outros apetrechos deixados pela enxurrada da morte. O vai e vem constante das brigadas de resgate elucidava bem da carnificina ali provocada.
Por afinidades e parentescos, a incineração dos corpos espalhou-se por largo território. Sucederam-se as cerimónias rituais, colectivas ou individuais, com oferendas e dedicatórias aos deuses, a quem entregavam os camaradas. As centenas de fogueiras realçaram-se com o cair da noite.
Por fim, caia mais um dia da guerra. Porém, as circunstâncias apresentavam-se mais optimistas. Os defuntos estavam santificados e devidamente encomendados para fazerem a passagem para a dimensão seguinte, e os vivos sentiam que, para já, não seguiriam viagem com esses companheiros.
A calma na tempestade e o repouso beneficiavam a reflexão e o regresso de muita da racionalidade perdida no tumulto emocional das batalhas. A alvorada seguinte talvez trouxesse notícias de um futuro diferente daquele que, nos últimos tempos, teimava em criar raízes no solo da Ibéria…
(continua)
Andarilhus
XVI : IX : MMXI