Sexta-feira , 27 de Julho DE 2012

Caminho Português de Santiago: Diário - Dia 4

 

 

 

Caminho de Santiago, Valença do Minho – Compostela, Julho 2012

Diário / Crónica

 

Padrón – Compostela; 16 de Julho de 2012

4º dia

 

A etapa derradeira não era longa em extensão, porém era exigente por motivo do tempo disponível para a cumprir.

Por isso, levantamos tão cedo que, mesmo ocupado algum tempo na higiene, no arrumar da mochila, e no pequeno-almoço (a Pizzaria abria às 5h30 para servir refeições aos peregrinos que partiam), quando nos metemos a caminho ainda a noite dominava. Aliás, tivemos mesmo dificuldade em encontra as primeiras referências de orientação… E o GPS do telemóvel que registava o percurso efetuado negou-se a cumprir a sua parte!!!!

Mas isso não era importante. Na verdade, recuperáramos o possível nas curtas horas de repouso, ao que acrescia a minha preocupação com a lesão e algumas dificuldades também do Luís, atormentado sobretudo pelas bolhas nos pés. Contudo, lá estávamos predispostos a cumprir o objetivo: alcançar Compostela pela hora da missa (12h) era difícil, mas não impossível. Havia cerca de 24 km que nos separavam do desiderato.

Pelas indicações que havíamos reunido, tratava-se de um percurso pejado por aglomerados humanos, uns mais rurais outros mais urbanos. A presença do casario seria uma constante. Assim como a N550 e o caminho-de-ferro.

A pouco mais de 2 km, enveredamos por um caminho antigo, de origem medieval, com inicio em Romeris e que seguia depois por uma sucessão de aldeias.

Passamos então pelo santuário de Escravitude, e aí começou a subida até Angueira de Suso. A descida correspondente levou-nos até Teo (onde existe um albergue) e às proximidades do Rio Tinto, percorrendo uma lata extensão da estrada nacional.

Entretanto, alcançávamos alguns dos peregrinos que também haviam saído de Padrón – o já referido grupo de italianos e um grupo de estudantes de arquitetura da Universidade do Porto -, bem como outros grupos que haviam iniciado jornada do dia, provavelmente, a partir de Teo.

O percurso por Francos e a passagem pelo Rio Tinto trouxe mais um momento de sombra, oferecida pela vegetação.

Por essa altura, adiantei-me ao Luís. A perna mostrava bem as sequelas da imprudência do dia anterior. Estava bastante inchada e fazia-se sentir no movimento de caminhar. Por isso, combinei com o Luís que iria aumentar o ritmo com receio de que o problema pudesse atingir tal proporção que me obrigasse a parar. Por sua vez, também ele se sentia algo indisposto e fazia intenção de ir ao albergue de Teo para se refrescar (acabou por não o fazer, por que começou a sentir-se melhor, entretanto). Faltavam cerca de 13 km para a nossa meta.

Num ritmo quase de trail de montanha, venci a distância até às portas de Compostela rapidamente. Atingido o Milladoiro, a descida para Compostela é bastante inclinada e por um trilho bastante apertado, mas muito bonito.

Entra-se na cidade do Santo junto ao hospital geral e em subida acentuada, logo após se ter atravessado o caminho-de-ferro e a ponte sobre o rio Sareja. Assim que a inclinação se reduz quase à planura, desaparecem as evidências do caminho e ficamos largados no centro de uma cidade com algum movimento.

Porém, o caminho é fácil (sei-o agora): é sempre para cima e a direito! Passam-se duas alongadas avenidas e entramos nas ruelas que enleiam a Catedral do Apóstolo Santiago.

Esta curta desorientação fez-me perder algum tempo, porém, tamanha aceleração desde Teo colocou-me no objetivo cerca das 11h20.

Tive, assim, folga para ir colocar último carimbo na credencial de peregrino. Dirigi-me, então, à Oficina dos Peregrinos, e lá recebi o meu diploma! Bebi ainda a cerveja da praxe, sentei-me no largo em frente ao templo, e pelas 12h entrei para acompanhar os ritos.

Não estava imbuído da fé que muitos carregavam sem peso, porém a sensação etérea e abstrata do dever cumprido, o encontro comigo e com todos aqueles que levava comigo, o diálogo interno e aquele ambiente quase celestial, transbordaram na sensação e vivência da paz e numa calma que já me fazia falta… há muito tempo. Recomendo, e pretendo repetir as vezes que forem possíveis. É um estado de espírito e de se ser humano, únicos e transcendentes.

O Luís entrou na catedral pouco depois da missa começar e o sorriso que cingia no rosto manifestava todas estas emoções, e provavelmente ainda mais.

Abraçamo-nos na paz do companheirismo. Conseguíramos, e em equipa!

 

Andarilhus

XXVII : VII : MMXII

publicado por ANDARILHUS às 21:27

Caminho Português de Santiago: Diário - Dia 3

 

 

 

 

Caminho de Santiago, Valença do Minho – Compostela, Julho 2012

Diário / Crónica

 

Pontevedra - Padrón; 15 de Julho de 2012

3º dia

 

Pelo 3º dia fomos dos primeiro a levantar, preparar a mochila e a arrancar do albergue de Pontevedra, testemunhando a transição entre o esboroar da noite no caldo da claridade tímida da luz matinal. Quando cruzamos a cidade mal se viam as indicações. Em contraponto, encontramos os derradeiros resistentes da boémia noturna, ainda com grande energia.

Atravessamos a famosa ponte que estava na origem do nome da cidade e deixamo-la ainda sonolenta.

A tarefa a que nos propúnhamos nesse dia era a de maior desafio de todo o plano. Com vista à recuperação do terreno adiado no dia inaugural, e para chegarmos a Compostela pelas 12h do dia seguinte, havia que cumprir os 42 kms que nos separavam de Padrón. Seríamos capazes, sobretudo depois do acumular das distâncias já percorridas? Pelo menos em vontade e esperança já nos sentíamos lá!

Para além do espaço a vencer, a nova etapa começava com um fator menos positivo: saíamos há hora em que alguns bares estavam ainda abertos, mas quanto a padarias ou cafés, todos se encontravam encerrados. Restava-nos umas peças de fruta, uma saqueta de bolachas e barras de cereais para o sustento da empreitada madrugadora.

E pior se tornou após a saída de Pontevedra, não surgindo qualquer estabelecimento com alimentos durante vários km.

Só depois de galgarmos mais de 10 km, passando por algumas igrejas/capelas de referência (Virxen Peregrina, Stª Maria de Alba, S. Caetano) e pequenas aldeias (Liborei, Castrado), sermos abençoados pelo bucolismo de um belo bosque (à imagem das florestas ancestrais), é que alcançamos a aldeia de S. Mauro, onde um oportuno café nos facilitou, finalmente, o pequeno-almoço. E o almoço, pois o bocadillo de queijo dava para várias refeições!

Mais confortáveis das entranhas, colocamos as mochilas às costas e retomamos por uma descida que dava ganas de correr (S. Mauro era o ponto mais alto do perfil topográfico até Caldas de Reis).

Por falar em correr, eu que usava umas meias altas e de pressão, próprias para corrida, acabei por criar uma lesão na ligação da perna esquerda ao pé, por motivo de utilizar inadequadamente as referidas meias, amarfanhando-as junto ao calçado e forçando assim, inadvertidamente, uma zona de garrote, que estrangulou a circulação sanguínea e me provocou um inchaço pronunciado na área afetada e a sua propagação pela articulação do tornozelo. No dia seguinte, o estado da lesão chegou a assustar-me, com receio de “morrer na praia”.

Durante a descida, e antes de entrar em mais uma zona arborizada, passamos numa fonte onde aproveitamos para reabastecer.

Seguiram-se alguns povoados, outros tantos cruzeiros e igrejas, até atravessarmos a ponte de Valbon. Até aí, e sobretudo daí até Caldas de Reis, cruzamos com muitos autóctones a dedicarem-se aos seus desportos matinais domingueiros – bike e corrida – e, claro está, trocaram-se as saudações próprias e amistosas: “Bon camiño!”, “Olá!”, “bons dias!”.

Depois de passarmos mais alguns troços da N550, nomeadamente junto a Briallos (onde há um albergue), cambiados com algumas paisagens rurais, e arribamos a Tibo, onde descansamos um pouco e abastecemos de água numa bonita fonte de 4 bicas, em metal.

Daí a Caldas de Reis foi um pulinho. Entramos na malha urbana, acercamo-nos das famosas águas calientes - sem parar -, e atravessamos a belíssima ponte romana sobre o rio Umia (ponte Bermaña), logo após a qual, numa sombra e confrontando o albergue (onde inicialmente planeáramos passar a noite anterior), almoçamos. Estava finda a fase inicial da etapa do dia, com os seus 23 km. Faltavam agora cerca de 20 km, até Padrón…

Para a digestão da singela refeição (mas bem acompanhada por uma Mahou) esperava-nos o vale do Bermaña.

Este segundo momento do dia não deixou muitos registos de memória. Desde logo, é uma fase algo “árida” na paisagem (apesar de acompanhar os rios Bermaña e Valga), agravado pelo tórrido calor suportado. Por outro lado, foi percorrido a forte cadência (havia muita distância a tragar e o tempo escoava-se).

Apesar disso, ficaram retidos na recordação alguns troços da N550, o frondoso bosque junto ao rio Valga e a verdadeira “montanha-russa” que foi vencer o traçado da sua margem. Atingido S. Miguel de Valga, foi reconfortante a frescura da sombra e da água da fonte local.

Por essa altura, eu ia adiantado em relação ao Luís Miguel. Tínhamos combinado que, dada a dureza da etapa, eu seguiria a um ritmo mais forte, por forma alcançar Padrón o mais breve possível, e conseguir assim lugar no albergue e reservar também para ele. O Luís seguiria ao seu próprio ritmo, de modo a concluir a etapa.

Atravessei depois algumas povoações e a paisagem passou a ser cada vez mais urbana, ligando Cimodevilla, Fontello, Condide, até Pontecesures. Seguiu-se a passagem sobre o rio Ulla e entrei em terrenos de Padrón.

Segui junto à margem do rio Sar, até que cheguei ao terreiro da feira. Foi fácil perceber isso pelos múltiplos sinais do evento que ocorrera poucas horas antes. Os papéis, plásticos e caixas estavam espalhados pelo chão, ao sabor das forças eólicas, conjuntamente com outro tipo de lixo, mais odorífico...

Desmontavam ainda as tendas de “comes e bebes”, nomeadamente uma “pulporia” que me despertou um sorriso e um pensamento: “Se tivesse chegado a tempo, sei bem onde teria almoçado ou merendado!”.

No jardim subsequente, uma “estrella galicia” aliviou-me da ânsia de paladares…

Uma última subida com piso medieval, de uns 40 mt, apresentou-me perante a funcionária do albergue. Só havia 6 vagas e não me permitiu fazer a reserva pelo Luís. Fiquei um pouco angustiado e a contar os peregrinos que entretanto chegavam e se inscreviam.

Antes que o corpo percebe-se que havia chegado o descanso, avancei para o banho e regressei pronto para o varandim do edifício granítico. Já o Luís entrara no albergue e procedia à inscrição. Descansei enfim e só então me dei conta da lesão e do agravamento daquela. Tinha a perna e o pé bastante inflamados.

Em Padrón busca os pimentos. E mesmo com a perna e pé a reclamarem, após lavar as t-shirts e as colocar a secar, calcei as sandálias e lá fui conhecer a localidade, e em prospeção de jantar. Percorri Padrón, mas acabei por comer numa Pizzaria próximo do Albergue. A comida tradicional era bem-vinda, mas o esforço exigia hidratos de carbono e… gordura.

Acabei surpreendido com uma Pizza enorme (tamanho familiar, em Portugal), por 7,50€ e muito saborosa. Eu que ficara de levar algo para o Luís jantar (preferiu ficar no albergue), não precisei de comprar nada diferente: a massa discada italiana chegou bem para os dois.

A noite no albergue mostrou-se muito agitada, por motivo diversos, e o descanso de pouca dura. E foi mesmo com agrado que seguimos o grupo de italianos no acordar pré alvorada. Urgia aproveitar bem a manhã.

Andarilhus

XXVII : VII : MMXII

 

publicado por ANDARILHUS às 07:51
Quinta-feira , 26 de Julho DE 2012

Caminho Português de Santiago: Diário - Dia 2

 

 

 

Caminho de Santiago, Valença do Minho – Compostela, Julho 2012

Diário / Crónica

 

Porriño – Pontevedra; 14 de Julho de 2012

2º dia

 

Ao segundo dia, as perspetivas climáticas não eram muito abonatórias. Pelas previsões meteorológicas iríamos encontrar mais chuva, embora com tendência de redução da sua intensidade. E, de facto, S. Tiago deve ter dado uma palavrinha a S. Pedro. Felizmente, apenas aos primeiros km nos foi exigido envergar os impermeáveis, e por pouco tempo. Passamos isentos dos tormentos provocados pela água dos céus no dia anterior.

Porriño ficava para trás e apontamos a Redondela como etapa intermédia do dia.

Após alcançarmos Mós e o seu belo palácio, e transposto a subida do monte que se lhe seguia - o Monte Cornedo – o ponto mais levado até às redondezas da própria Compostela – tomamos o pequeno-almoço nas proximidades da capela de Santiaguinho de Antas. Comemos “tostadas e café com leche”, servidos com grande simpatia!

A partir de então a presença ocasional da chuva desapareceu definitivamente.

Daí até Redondela o percurso assumiu uma tendência descendente e rápida. Repousamos alguns minutos junto às portas do albergue dessa localidade (onde tencionávamos passar a 1ª noite, segundo os planos iniciais), aproveitando para conhecer mais alguns peregrinos.

À saída de Redondela, e após mais alguns atravessamentos da N550 e do caminho-de-ferro, abraçamos a subida para o Alto da Lomba, parando num pequeno parque de merendas, já a breve curso do cume. Aí almoçamos e reabastecemos de água fresca na fonte do Outeiro de Penas. Enquanto repousávamos, passaram pequenos grupos de peregrinos, sempre em salutar saudação: “Bon camiño!”

Retomamos. Vencido o pendor ascendente, magnífica se transformou a descida com vistas para a formosa Ria de Vigo e a Ilha de S. Simon. Dado o tipo de trilho e da sua verticalidade, dei pernas ao gosto pela corrida na montanha, apesar do “anormal” peso que carregava na mochila. Ao fundo aguardava a já velha conhecida N550!

Surgiu-nos depois Arcade e, um pouco mais à frente, a famigerada ponte “Puente Sampayo”, que faz a passagem sob o rio Verdugo, e onde os espanhóis travaram as invasões francesas.

Entramos então numa extensão prolongada de caraterísticas rurais, com alguma aldeias, muitos campos lavrados e uma das zonas de floresta mais belas e antigas do caminho. Realce para os cruzeiros – outro dos sinais do caminho – tão caraterísticos, apresentando uma iconografia que representa, de um lado, a imagem de Cristo na cruz e, no outro, a imagem de Sua mãe em zelo pelo seu sofrimento.

Passadas algumas paisagens mais urbanizadas, encontramos a Capela de St. Marta. Templo pequeno, singelo e que disponibiliza ao peregrino acolhimento e o carimbo para apor na credencial.

Após mais alguns povoados, entramos em Pontevedra. Depois de nos registrarmos no albergue e tomarmos um banho, bem como o proceder à lavagem de camisolas e meias, empreendemos nova caminhada ao centro da cidade, o qual ainda distava mais de 1 km. Bonito, por sinal.

Eu e o Luís partilhamos uma tábua de “pulpo à feria” e saboreamos a boa cerveja Galega.

No regresso, compramos fruta e eu, como o pulpo não me bastava, ainda fui em busca de mais um petisco, assentando num “tasco” junto ao Albergue, onde comi tortilha e apreciei o excelente vinho das “rias baixas”. Acabei por embrulhar metade da tortilha em pão, preparando assim o almoço do dia seguinte. E que dia seria esse!

O albergue de Pontevedra tinha excelentes condições, dentro do que é a modesta condição destes estabelecimentos, os quais, de uma maneira geral, disponibilizam uma área para cozinhar, outra para lavagem/secagem de roupa, uma sala de convívio e refeição, os banhos e o dormitório, que é comum, organizado em beliches.

Por esse dia, fisicamente estava bem, apenas com algum cansaço na planta dos pés e o início de uma lesão na perna esquerda, na junção com o pé, a qual se agravaria no dia seguinte por descuido meu.

O Luís, apesar das bolhas nos pés, mostrava que as sequelas e padecimentos do primeiro dia haviam sido resultado de condições anormais. Estava ali para chegar ao fim, ao objetivo.

Mas o dia seguinte seria realmente a grande prova!

 

Andarilhus

XXVI : VII : MMXII

 

publicado por ANDARILHUS às 21:16

Caminho Português de Santiago: Diário - dia 1

 

Caminho de Santiago - Valença do Minho – Compostela; Julho 2012

Diário / Crónica

 

 

Porto, Valença, Tui - Porriño; 13 de Julho de 2012

1º dia

 

Pelas 6h57 do dia 13 de Julho de 2012 entrava, enfim, na composição de Metro, que me levaria à estação de Campanhã. Chegado aí, encontrei-me com o Luís Miguel e embarcamos no comboio internacional para a Galiza. Partimos pelas 7h55 e arribamos a Valença do Minho cerca de 2 horas depois.

Em Valença colocamos o primeiro carimbo na credencial de peregrino e iniciamos a missão que nos trouxera ali.

Avançamos um pouco ainda em terras lusas, até atravessarmos a ponte internacional e entrarmos em Espanha. Na ponte começamos os registos fotográficos e acabei por perder o meu chapéu de aba larga. Não chegou a internacionalizar-se! “Perdíamos” também 1 hora. Estávamos próximos das 11h30, espanholas.

Se em Portugal a chuva ameaçou mas não perturbou, logo que entrados em Tuí, começou o aguaceiro, que nos iria acompanhar todo o dia. Tratou-se imediatamente de colocar os impermeáveis, cobrindo o corpo e a mochila.

Com as paisagens acinzentadas e cobertas pela borrasca, mergulhamos nas entranhas de Tuí, tomando contacto com os diferentes instrumentos de indicação do caminho – as vieiras, os marcos e as setas pintadas a amarelo. Atravessamos o casco velho da cidade e alcançamos os primeiros troços rurais do caminho, trocando o cimento e o betão pelas pedras e terra, bem mais próximas do mais antigo assentamento do caminho, serventia de muitas gerações e povos e que, agora, seguíamos também: a via romana XIX.

Acabamos igualmente por conhecer outras vias de comunicação que estariam sempre presentes no percurso, quer pelo seu uso ocasional, quer pelo seu cruzamento constante. Refiro-me à estrada nacional N-550, o caminho-de-ferro e, com menos frequência, a auto-estrada.

A chuva fez-se persistente, pelo que, após uns 10 km percorridos, quando paramos para almoçar junto à Igreja de Santa Columba de Ribadellouro, a humidade já deixava as suas marcas.

Reforçadas as energias e trocadas as camisolas, retomamos. Passamos mais uma ponte medieval e chegamos àquela que é a pior parte do caminho: a Zona Industrial de Las Gándaras de Budiño. São alguns km a subir e descer passeios, ladeados por fábricas e parques industriais e com muito movimento de camiões. Algo deprimente.

À pressão da chuva somava-se uma extensão ampla de estrada nacional, com as mesmas condições desagradáveis da Zona Industrial. Parámos para animar um pouco com uma cerveja e tomou-se, então, a decisão de não cumprir o previsto – avançar até Redondela – mas antes ficar por Porríño.

Os níveis de entusiasmo decaíram um pouco com os contratempos desta fase inicial da jornada. O Luís ressentia-se de um joelho e ganhou bolhas nos pés, pela pouca drenagem da água pluvial nas meias e botas. Entendeu que, por segurança e precaução para os dias seguintes, não deveria avançar mais.

Tínhamos planeado juntos a empreitada e projetado realizá-la e finalizá-la em conjunto. Por isso, reformulou-se toda organização do espaço a vencer pelo tempo disponível. De acordo com a implantação dos albergues no trajeto, recalculamos os percursos diários, por forma a recuperarmos as perdas do dia e tentarmos chegar a Compostela no dia 16, pela hora da missa: 12h.

Ficamos no Albergue de Porriño, com 24 km cumpridos (quando se previa fazer 34/36 km). Ficamos também algo apreensivos, sobretudo na expectativa de recuperação do Luís para o dia seguinte. Se durante o repouso noturno não conseguisse corrigir o desgaste que havia acumulado, dificilmente seguiria viagem. Mas, o Luís foi um herói, vencendo a adversidade. Apesar de algum sacrifício - mas já bem melhor­ -, no dia seguinte arrancou para uma etapa de 32 km!

Porriño acolheu-nos com grande simpatia, e num albergue com excelentes condições, dentro da austeridade que os carateriza. Com um banho, a reformulação dos planos e muita esperança na melhoria das circunstâncias, ficamos mais animados.

Tive, então, a “malvadez” de convencer o Luís a calcorrear mais umas largas centenas de metros no reconhecimento da localidade. Jantamos uma pratada de zorza (carne em vinha de alhos) com batatas fritas, plena de calorias, sal e melhor disposição. No supermercado garantimos alguns bens para o dia seguinte.

Fomos descansar. A roupa estava a secar em espaço próprio, as botas/sapatilhas recheadas de jornais para secar a água acumulada da molha, e nós a ocupar um beliche de uma longa camarata, quase cheia, com portugueses, espanhóis e gente de outras nacionalidades.

E é no contacto com estes companheiros de fado, desconhecidos, na sobriedade do albergue, e nos registos da memória das vicissitudes e das emoções vividas durante o dia, recuperados no silêncio da penumbra, que atingimos aquilo que para mim são os entendimentos e os sentimentos associados à peregrinação. Percebemos a alegria do caminho – o já percorrido e o que há a percorrer -, o despojar de tudo o que é acessório, reduzindo a nossa existência material ao essencial, a importância do apoio de conhecidos e desconhecidos, a camaradagem, a amizade, o sentimento de fazer parte de algo simples mas bom e de bem. E, sobretudo, a partilha coletiva não só das condições possíveis, desprovidas do conforto habitual, mas também a partilha do indivíduo com tantos outros com que se cruza.

Descansamos, e antes da alvorada já nos erguíamos e arrumávamos os pertences nas mochilas.

O Luís reagia bem e predispunha-se a continuar. Fiquei feliz por conseguirmos manter o projeto; fiquei orgulhoso pelo companheiro de vontade tenaz e que não desistia, mesmo que tal significasse algum padecimento.

Com a luz tímida que inaugura o novo dia, saímos com destino a Pontevedra.

 

Andarilhus

XXV : VII : MMXII

publicado por ANDARILHUS às 08:10
Segunda-feira , 09 de Julho DE 2012

Por Ti Seguirei... (2.2)

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Cumprida a primeira guerra púnica, e para compensar a perda das ilhas nas águas tirrenas do grande mar interior para o domínio dos do Lácio, Cartago voltou-se para a Península Ibérica.

A estratégia foi confiada a Amílcar Barca. Transitando da Trinacria[1], buscou sucesso com a conquista de boa parte do território do Sudeste da Ibéria, apoderando-se de zonas ricas em minerais e outros importantes recursos, na mesma proporção que acumulava inimigos entre os povos autóctones.

Amílcar morreu jovem, tombando em combate após um ataque fulminante dos Vetões a mais um dos sucessivos acampamentos de acantonamento das tropas durante a sua campanha pela meseta central da península.

Sucedeu-lhe o genro, Asdrúbal, líder com uma visão menos violenta e mais construtiva. O novo General cartaginês criou condições de tolerância e cooperação com os Iberos, e assinou tratados com os Romanos, estabelecendo as áreas de influência e ocupação de cada qual. A partir daí focou a sua política colonialista essencialmente na exploração e desenvolvimento económico da Ibéria, fundando também a grande base naval de Nova Cartago.

Porém, expirou às mãos de um celta, em ato de vingança pela morte do seu chefe tribal (apunhalado por soldados do General, no decurso de uma escaramuça de embriagados).

Substituiu-o o jovem Aníbal Barca, seu cunhado e filho do pioneiro Amílcar.

 

Aníbal herdara a mesma índole belicosa e a tenaz ambição do pai, fermentando em si o sonho de recuperar os territórios perdidos e vingar duramente a afronta romana, derrotando-os e submetendo-os aos desígnios de Cartago. Odiava-os, simplesmente. Aliás, o seu pai instigara-o e exigira-lhe juramento.

Assim que investido do poder, concentrou as tropas disponíveis, arregimentou por soldo um vasto número de mercenários ibéricos e solicitou a Cartago que enviasse um novo exército das costas magrebinas. Pretendia exterminar o inimigo e arrasar a sede da República concorrente – Roma – enquanto aquela praga não solidificasse e rentabilizasse as conquistas obtidas.

Com a impaciência própria da juventude inflamada, antes de receber os soldados esperados da cidade-mãe, atravessou o Ebrol, rasgando os compromissos de Asdrúbal e, arrojado, procurou surpreender os Romanos galgando os Montes Pirenaicos longe das rotas mais vigiadas.

Contudo, corrompidos pelos sestércios e ambiciosos na perspetiva de tomarem as rédeas do governo das possessões ocidentais de Cartago, alguns dos oficiais do seu alto comando entregaram os ousados planos militares ao inimigo.

 

Perdido o segredo, a surpresa foi sim preparada pelos do Lácio, emboscados nos escarpados e sinuosos trilhos que rasgavam passagem difícil pelas misteriosas entranhas pirenaicas.

Aníbal e os seus homens entregaram-se à mercê da morte como cordeiros tresmalhados no meio da alcateia de lobos. Foram desbaratados, expirando aos milhares, deixados simplesmente para os abutres da montanha, enquanto os restantes se atropelavam pelas rodeiras sinuosas da fuga, de retorno aos sopés de arranque do malogrado assalto. Destes a maioria escapou, dirigindo-se para Sul, em busca do refúgio de Nova Cartago, e aí reagrupando com o seu comandante.

No entanto, muitos guerreiros acabaram capturados, após perseguição das matilhas da Legião, entre os quais se contavam grande número de mercenários ibéricos, incluindo Tongídio.

Para Aníbal a derrota não fora definitiva. Pelo contrário, servira-lhe de experiência para organizar nova investida e acrescera-o de novos ensinamentos, preciosos para a excelência da preparação para o expoente de estratega castrense que almejava ser.

Estava realmente convencido de que o seu plano resultaria. Aquela era a táctica certa para ferir de morte o coração de Roma.

Após os preparativos necessários, voltaria a tentá-lo, da mesma forma e pelo mesmo caminho…

 

Entretanto, o General Cartaginês via-se favorecido por um desenrolar de acontecimentos inusitados na Ibéria, os quais ninguém adivinharia ou ousaria sequer imaginar que pudessem ocorrer, mesmo por atrevimento jocoso dos deuses.

A intrépida Rubínia, esposa extremosa e imparável perante os obstáculos, garantira-lhe tempo e espaço, facilitando-lhe – sem saber – a tarefa de refazer o exército e delinear a expedição seguinte.

A mulher celta, por amor ao marido, Tongídio, sustentando sofregamente a vontade tenaz de o recuperar, obtivera dois triunfos espantosos: inflamara os iberos, unindo-os numa causa comum, e conseguira destroçar, humilhantemente, as poderosas legiões romanas, contrariando a invasão e a conquista dos do Lácio.

Áh, Aníbal sabia bem o quanto lhe tinha valido a insurreição dos Iberos contra os invasores. Estava-lhes eternamente grato e contava com eles para aniquilar o poder dos itálicos. Tê-los-ia por parceiros de igual direito, e devolver-lhes-ia todas as possessões cartaginesas na Ibéria assim que concretizasse os seus objetivos.

Em breve, o General descendente da linhagem dos Barca estaria em condições de retomar os seus desígnios. Aproveitaria o revés dos Romanos perante os Iberos e não permitiria que se reorganizassem ou reforçassem posições. Sabia bem onde lançar a segunda vaga da ofensiva: a cidade aliada do inimigo e seu refúgio, Sagunto. Aí seria o primeiro campo de batalha do reinício da segunda fase da guerra púnica (como lhe chamavam os latinos).

 

Sagunto era também a confluência de todos os pensamentos e preocupações de Rubínia e companheiros.

Ultrapassado o choque inicial das notícias, e espalhado o seu conhecimento até ao recanto mais extremo de Tanábriga, reuniram-se os anciãos, os dignatários e os representantes da casta dos guerreiros, na casa do Concilio dos Ilustres.

- Faz já algum tempo que, em condições igualmente críticas, recebi Alépio. Assombrado, escutei as trágicas novidades que me aportava então. Porém, senti igualmente uma serenidade e até descontração, contagiado pela força e pela convicção que o nobre Brácaro emanava, confiante na reviravolta dos azares da guerra. – recordou Aegídio, introduzindo o difícil problema com que se debatiam:

- Depois, foi Rubínia: como um furacão estival rasgou a terra em busca de Tongídio, inspirando e precipitando com êxito a crença de Alépio e de tantos outros. Uniu a Ibéria e determinou a derrota dos seus invasores.

Eis-nos, contudo, novamente em provação… E Alépio, o bom Alépio, o fulgor celta por um ideal, perdido nas mãos do inimigo sem sabermos qual terá sido a sua sorte.

Alépio não abandonou os seus irmãos de sangue, e nós não abandonaremos Alépio e os restantes filhos da pátria que possam ainda estar vivos e à mercê dos romanos. Tanto mais que temos de concluir a missão despoletada por esta mulher – apontou a Rubínia -, gerada pelo amor matrimonial, e que nos fez despertar a todos para um amor à nossa terra, à Ibéria!

Eu, Aegídio, chefe de Tanábriga, digo-vos que temos de completar e encerrar o capítulo da presença de invasores na Ibéria! Vamos atirá-los ao grande mar interior e arrasar com todos os rastos que eles tenham deixado por cá!!!

 

Empolgados, na assembleia desembainhavam as espadas, ao mesmo tempo que acusavam sonoramente o assentimento e a concordância com o orador, intercalando as manifestações com palavras de blasfémia e impropérios ao inimigo.

Tongídio, sempre imponente, ergueu-se sobre um dos longos bancos e confluiu as atenções sobre si. Pretendia falar. Ergueu o braço e amansou os vozeirões.

- Alépio e Talauto merecem o empenho do meu sangue, pois partilham-no em irmandade. Partirei para Nascente em seu socorro e em resgate de todos os iberos que se encontrem oprimidos pelo inimigo; irei acompanhado ou mesmo só. Embora saiba que alguns estarão comigo. – disse-o, enquanto encarava Gurri com olhar decidido.

- Juntaremos forças com todos quantos queiram dar braço às palavras sábias de Aegídio: é urgente atirar com a corja dos Romanos ao mar, antes que eles se agigantem novamente!!

Reacendeu-se a assembleia, com todos os presentes a opinar e a fidelizarem-se com as diferentes ideias de intervenção militar que iam sendo desfiadas para a discussão. Cada um mais arrojado do que o outro, os planos para libertar os compatriotas e suprimir a presença dos estrangeiros apontavam todos para efeitos heroicos e de execução sobre-humana.

Gurri, que se mantivera sereno e em silêncio, olhou para Rubínia e depois para Aegídio. Este entendeu os pensamentos do vacceu.

 - Silêncio; terminem com o burburinho! Vamos ouvir como este aliado e amigo pensa dos acontecimentos e o que nos pode sugerir para resolução das presentes dificuldades. – entoou Aegídio, para reclamar a atenção dos mais exaltados, passando de seguida a encarar Gurri, que se movimentou de modo a ser visto e escutado por todos.

- Para quem não me conhece, sou Gurri, chefe de clã vacceu. Amigo do vosso povo; irmão de alguns dos vossos valorosos.

Não devo intrometer-me nos assuntos internos de outros povos, mas parece-me que este problema afeta toda a Ibéria, uma vez mais.

Escutei-vos. A vossa revolta é justa e entranha-se no espírito de todos nós; a vontade de resolver tudo de forma limpa e rápida germina até no coração do mais duro. Como guerreiro entendo bem esta euforia desmedida em atacar a adversidade e o inimigo.

Naturalmente, sois livres na determinação das vossas decisões e na entrega às respetivas consequências. Deixem, no entanto, defender um pouco as causas da deusa da prudência, e ouçam um pouco da racionalidade que consegui acumular com a experiência de muitos episódios de vida.

As circunstâncias dizem-nos que os Romanos são ainda muitos: mais do que uma Legião; estão bem entrincheirados em Sagunto, o que lhes garante o acesso ao grande mar interior e, com isso, a possibilidade de receber reforços ou tomarem o caminho da fuga, em segurança. Julgo que apostam mais em guarnecer-se com mais efetivos e de forma célere. Sabemos por fonte credível que já o solicitaram a Roma. Assim como já começaram a enviar para o Lácio os nossos infelizes conterrâneos.

Deste modo, neste momento, é um risco fazer preparativos intempestivos para marchar sobre o inimigo, uma vez que desconhecemos a sua verdadeira força e mesmo da condição dos prisioneiros. Os próprios Alépio e Talauto poderão já ter sido embarcados.

Já pensaram que tudo isto pode ser mais uma armadilha daqueles filhos de ratazana?!

- Se não te conhecesse, diria que és exageradamente comedido, meu amigo. Mas, a memória não se esquece que foi a tua calma que nos salvou um punhado de vezes de enrascadas muito complicadas. Certamente, terás uma visão atinada para enfrentarmos esta embrulhada, com êxito. Adianta… conta-nos como julgas ser a forma mais fria de abordarmos a situação. – atalhou Tongídio, sustentando a exposição de Gurri perante os presentes.

 

Andarilhus

IX : VII : MMXII



[1] Trinacria: nome arcaico da Sicília. As “três Montanhas”.

publicado por ANDARILHUS às 22:47

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