Por Ti Seguirei... 2.4
O crepúsculo era já evidente quando Lualto e seguidores chegaram ao altar-mor de Tanábriga. Aí, concentrava-se boa parte da população, aguardando pelo início da formalidade cerimonial.
A presença de Leuko provocava a dilatação da passagem entre a multidão, fazendo recuar instintivamente os mais próximos à sua trajetória, reagindo com estupefação e algum temor pela presença do lobo.
- O que trazes contigo para os sacros ritos, Lualto? Uma espécie de cão?! Não é nosso costume sacrificar esse tipo de animais. Bem o sabes que deve ser uma rês, e não um predador! - insurgiu-se Aegídio, perante as circunstâncias inesperadas.
- Entendo a tua ira, meu senhor. Porém, por mais que procurasse e perante a inédita situação de não haver animal próprio para a cerimónia, com a alvura que esta especial ocasião exige, este bicho é a única vítima possível para dedicar às divindades. A forma misteriosa como entrou nos nossos domínios, através de Aleutério, é também pronuncio de ser aprovado pelos próprios deuses para os honrarmos…
- Aleutério?! Esse louco?! Que narrativa agoirada nos trazes. Estamos a abrir a porta da desgraça! Assim, não pode ser; sofreremos o castigo com o fracasso e com a morte! - gritou Aegídio, em cólera.
Virou-se para o favo de povo que ruminava à sua frente e elevou ainda mais a voz: - Quem tem um animal propício para ser entregue a este oráculo? Que seja branco ou, pelo menos, praticamente branco?
Mas, Lualto tinha sido eficiente na sua demanda, e não existia tal ser. Os deuses, a natureza, ou o que quer que fosse, haviam manipulado a criação para que tal não sucedesse, logo em momento de maior aperto.
Agitavam-se as gentes, enquanto o Sol escorria ao fundo, acenando já o adeus. Os mais conservadores enjeitavam o sacrifício do lobo; os mais flexíveis defendiam a execução do animal, acreditando que os deuses assim o exigiam, uma vez que também assim o tinham planeado.
Aegídio desesperava. Esgotava-se o tempo e não aparecia solução oportuna e ajuizada.
- Esperem! Não desanimem! – impôs-se Rubínia, repetindo as palavras até que o povo acalmasse, ajudada pelos gestos do chefe e de alguns guerreiros mais próximos.
- Como temos duas posições estremadas e já sem tempo para as debater, proponho que adiemos a cerimónia para o amanhecer. Aliás, quando Endovélico nos providenciar o renascer da luz de amanhã, será até ensejo mais favorável a um tal ato religioso. Entretanto, deixemos o escolhido a pernoitar solto junto ao altar e aguardemos que os deuses nos deem um indício. Se o lobo, pleno de liberdade, aqui estiver pela alvorada, então é porque está prenunciado para vitima. Caso se vá, parece-me que será revelador de que as divindades nos entregam a decisão de escolha de outro animal, mesmo que não seja de imaculado branco. Parece-vos razoável, Aegídio e Lualto?
Concordaram e, de um modo geral, o povo encarou a proposta como atinada e de compromisso. Aos poucos, ainda a manifestar considerações entranhadas, individualmente ou em pequenos grupos, as gentes divergiram para retomar aos seus afazeres quotidianos, preparando-se para a refeição tardia e para passar a noite.
Rubínia afagou Leuko, fitando-o de modo imerso e prolongado. Parecia conhecê-lo de longa data, e que até comunicava com o animal.
Finalmente, afastaram-se os últimos resistentes junto ao altar, com Aegídio, mais brando, a argumentar com Lualto, enquanto aproveitava também para lamentar a forma como apelidara Aleutério, apesar de que a este jamais algum dizer o ofendia ou afetava. Estava já imune à palavra, tal era o memorial de ditos jocosos e vexativos, escutados de muita gente e por tanto tempo…
Para trás e cada vez mais distante, ficava aquele ponto resplandecente na negrura do escurecer cadente.
Assim que os galos começaram a desgarrada do despertar, Lualto, apressado, deixou o calor do colchão de folhelho, ataviou-se, mirou-se no espelho de cobre polido, ajeitou o manto sacerdotal e a pele de raposa que lhe proporcionava maior quentura, calçou os botins de couro entrelaçado e abalou para o exterior, furando entre a bruma matinal, enquanto percorria o caminho que levava ao oráculo.
Não foi o primeiro a chegar. Já lá se encontravam Rubínia e Tongídio. Contemplavam a grande e achatada pedra que servia de pia de imolação. Apesar do frio, estavam rigidamente imóveis. O druida forçava o passo, curioso, já que, ainda à distância e com a cortina de nevoeiro, não conseguia enxergar o que, avassaladoramente, lhes cativava a atenção.
A arfar, Lualto colocou-se a par da mulher, verificando a expressão fascinada dos rostos do casal. Quando procurou a razão, percebeu a maravilha, contendo mesmo o respirar atribulado e espontâneo, transformando-o num longo suspiro…
Na concavidade do altar, encontrava-se deitado sobre as gâmbias elegantes, sereno, um cervo branco, de tal forma imaculado, que era quase perturbador para o olhar que sabia o destino que o aguardava.
- Foi o Leuko que o trouxe; ainda os vimos a chegar. O animal seguia o lobo pausadamente, como se com ele formasse alcateia. Isto é, sem dúvida, obra dos enigmas divinos. Sabemos agora qual é a oferenda desejada pelos deuses. Talvez nos permitam obter as respostas para estes acontecimentos tão estranhos. – proferiu Tongídio, em tom arrastado e incrédulo.
Uns após os outros, os habitantes de Tanábriga assomaram ao altar mor e formaram a assembleia religiosa. Já ninguém arriscava uma explicação para os fenómenos que se iam multiplicando. Simplesmente, deixaram-se embalar pelos ritos e cânticos próprios da solenidade sacra que entretanto se iniciara.
Enquanto Lualto invocava os nomes das entidades superiores que presidiam às vicissitudes da vida e da morte na tribo, um dos acólitos preparava o pequeno cervo, dando-lhe a beber uma infusão de ervas relaxantes e anestesiantes, e lhe escovava a, já de si, lustrosa pelagem.
Leuko manteve-se sempre junto da pia do sacrifício. Ninguém ousou enxota-lo.
O druida mantinha a ladainha com voz pausada e em timbre natural. Ingeriu dois goles de uma beberagem encantatória, que libertava o espírito do corpo e abria os portões da clarividência, promovendo a comunicação com os deuses, recebendo deles as orientações que acompanhavam os presságios, interpretados pela leitura das entranhas dos animais imolados.
- Mãe Atégina, que estás prestes a começar o caminho em reencontro com o teu amado, e por nós muito reverenciado, Endovélico, confirma-nos e acompanha-nos na jornada a que nos propomos… – recomeçou a liturgia, Lualto, erguendo os braços e medindo o horizonte que se abria à sua frente, para poente, enquanto o ajudante colocava o animal em posição.
- … E contigo, se acerquem Bandua, com os laços mágicos de honra e de sangue, que nos unam a todos nesta causa comum, e Laebo e Reva, os maiores guerreiros, dando-nos o exemplo da força que nos mantenha empenhados na senda da vitória. E, quando cansados ou em provação, pedimos a graça de Nábia, com a sua frescura e génio de águas estimulantes, e nos acuda na sede, durante a agrura das poeiras das batalhas… - mantinha em ritmo brando, a evocação, e já retirava a lâmina sagrada da bainha, aproximando-se do cervo.
- … E Nábia, quando chegar o momento da nossa partida para o mundo dos mortos, indica-nos, diligentemente, o pórtico para o reino do nosso maior Senhor, nosso pai primordial, Endovélico. Encomenda-lhe que nos dê nova oportunidade…
O punhal entrou como relâmpago cirúrgico no peito da vítima, talhando o sopro da pequena vida, num acutilante e breve estrebuchar do coração arrombado. O cervo caiu inanimado sem emitir som. Numa sucessão de golpes rituais, o sangue corria pelos canais inscritos no bloco lítico, confluindo para a fossa central.
O druida ajeitou o manto e a grinalda de azevinho que sustinha sobre as grossas e longas cãs, e acercou-se do limiar da plataforma, sobre a qual se erguia o altar. Desceu os curtos degraus que desembocavam num terraço abaixo, onde se encontrava embebida, por talhe, a fossa, recetáculo do fluido sagrado. A uma vintena de palmos à frente abria-se a queda a pique, numa verticalidade que terminava junto ao pano interior do sistema amuralhado.
Amparado à testa de pedra do socalco superior, Lualto observava a queda sucessiva do sangue e a dispersão dos círculos que os pingos grossos do mosto denso provocavam no líquido acumulado. Na assembleia, os da frente vislumbravam apenas a mão morena agarrada à pedra cinzenta e plena de líquenes; os restantes perderam-no de vista, de todo. Uns e outros aguardavam o início das “leituras” e interpretações, enfim, das revelações. O silêncio deixava pairar os múltiplos pensamentos e rezas aos diferentes deuses, conforme a estima e veneração de cada um.
Enquanto se perspetivava o retorno do líder espiritual para junto do altar, a multidão ocupara todo o espaço mais próximo do centro da celebração, cerrando fileiras. A expetativa e a ansiedade granjeavam pelos presentes. Tanto se apertavam, que os da dianteira já se sentiam comprimidos contra o alicerce rochoso do culto.
Mas, rapidamente, a pressão e o aperto do povo cedeu perante uma sucessão de eventos, assustando-os para lugar mais recuado e de maior sujeição e receio individual.
A voz, aquela voz cavernosa, de grotesco timbre, simultaneamente feminino e másculo, ouriçou as guedelhas e as pelugens dos mais arrojados. A um arrepio coletivo, seguiu-se o instinto geral de mover alguns passos à retaguarda.
O som vinha do lado contrário do recinto, onde se encontrava Lualto. Deste, já nem a mão se via. Era terrível: alguma figura lendária enviada das profundezas - jazida das vidas - por Endovélico, furioso com os seus súbditos, começara por aniquilar o elo de ligação com o além…. E agora, como poderiam os mortais tentar apaziguar o desagrado divino?!
Enganavam-se… O druida não desaparecera. Pelo contrário encarnava a voz medonha que se fazia escutar.
Lualto, por instantes, mudo, subia os degraus para o topo do oráculo. Todo ele aparecia numa chaga vermelha, tinto pelo sangue da imolação. Entrara na fossa e cobrira-se, manto, pele e cabelo, da tez da vida e da morte. Achegava-se lentamente, hirto, olhos esbugalhados e vítreos. Escorria a seiva da existência, criando uma pequena poça no local em que estacou e encarou a audiência, agora, ainda mais terrificada.
Encolheram-se, no que sobrava por encolher, quando o homem sagrado vociferou novamente, naquele tom amalgamado:
- Escutem-me! Sou Trebaruna, indigitada pelo concílio dos deuses para vos orientar e acompanhar. Sim, acompanhar! Devem partir em socorro dos que estão nas mãos dos ímpios, e tudo fazer para salvar a Ibéria, nestes tempos e no futuro. Pelo lobo, a minha encarnação natural, estarei convosco, para vos proteger. Através do apátrida, os deuses vos darão o melhor conselho e guia…
A voz retumbava frenética na boca de Lualto, apesar do seu corpo se conservar rigidamente imóvel. O povo, perante as profecias, olhou para Leuko e de imediato para Aleutério.
- … O lobo branco da Ibéria levará a falcata da justiça e a funda da vingança ao covil dos filhos da loba cinzenta[1]. Isto vos garanto: os predadores passarão a presas… Nós, deuses, estamos agradados com os nossos devotos, e seremos afáveis e cuidadosos com eles. Ide o quanto antes. O destino está propício!
O druida calou-se e, num repelão, saiu da alienação paralisante. Esgotado, tombou do altar, sem qualquer reação de proteção à queda. Tongídio, o mais próximo, lançou-se em frente e conseguiu amparar o gélido corpo de Luauto. Nos braços do guerreiro, este gaguejava e não conseguia articular palavra. Levaram-no, para se lavar e repousar. Quem o auxiliou percebeu que estava ainda mais leve do que já lhe conheciam do físico singelo. Trebaruna, para o bem de todos, havia-lhe consumido parte da vitalidade, tal era o desgaste de energia para a honra de acolher em si um deus.
O Sol descrevia o crescimento habitual na abóboda sagrada. Após uma curta refeição, Aegídio e a sua guarda pessoal partiram, sem mais tardança, ao encontro de Sonim. O plano estava em marcha, e ratificado pela esfera divina.
O chefe de Tanábriga, entretanto, comunicara as suas instruções: emissários iriam rasgar a Ibéria, levando aos amigos as revelações e a convocatória para se prepararem; a Tongídio estava determinada a missão de contactar o Grande General, Aníbal. O guerreiro recebera também plenos poderes para escolher a comitiva que o acompanharia em delegação.
Andarilhus
XXV : III : MMXIII
[1] A lenda da criação de Roma remete para os seus fundadores, Rómulo e Remo, os quais, ainda crianças de tenra idade, depois de abandonados, salvaram-se graças à proteção e amamentação de uma loba.