Quinta-feira , 30 de Maio DE 2013

Por Ti Seguirei... (2.7)

 

http://jardimautoctone.blogspot.pt/2012/04/douro-internacional-patrimonio-natural.html

 

Ainda com Tongóbriga sob o alcance do olhar, Leuko saltou ao caminho, pregando um enorme susto a todos os que não o conheciam. Passara a noite pelos matagais em torno da urbe, exercitando a sua selvagem condição.

- Não temam! Este é o nosso mais bravo guerreiro. Tem sido precioso em todos os desenvolvimentos desta nossa expedição, e tem com ele um mistério que só os deuses poderão decifrar - acalmou Rubínia, enquanto se debruçou sobre o lobo e lhe fez uma saudação. O animal sentou-se à sua frente, encarando-a com serenidade, como que respondendo.

Sem perder o ar assutado, e sempre a tentar ter o bicho silvestre sob vigilância, os três servos comprimiam-se entre si, empurrando-se pelo caminho, aos repelões. Só aquietaram quando chegaram ao rio e puderam saltar para a galiota, arrumando os víveres que carregavam.

- Se o vento estiver de feição e ajudarem com os remos, amanhã, pelo rasgar da tarde, estareis a ver o grande mar do ocidente, onde termina o Mundo – apontou Físias para poente – Taer encarregar-se-á de traçar a viagem com a maior rapidez possível. Vai convosco, também, Hermineu, guerreiro experimentado da guarda deste ancoradouro. Chegaram-nos rumores de obstáculos e perigos na foz do Durio. Ainda não foi possível confirmar o que se passa. Assim, toda a ajuda será pouca e deveis manter-vos em alerta permanente. Pela noitinha, também faremos sinais de fogo, que serão enviados de posto em posto para ocidente, pelos povoados mais altaneiros, até chegarem ao alto da Peñaventosa, avisando os amigos que tenho em Kale. Tereis então reforço de tudo o que podereis precisar, antes de se fazerem ao mar.

- Nada descuras, nobre sogro! Não te preocupes, formamos um grupo temível, pronto para qualquer desventura. Até o velho Aleutério é um colosso, tal como o demonstrou frente ao urso!

O sorriso estampou-se nos rostos que recordavam o episódio, vivido ou escutado. Neste agradável convívio, embarcando os que se preparavam para abalar.

Os medrosos serviçais, aliviados com o afastamento do lobo branco, empurravam freneticamente o barco para as águas mais profundas do Taamaco. Quando Leuko uivou a despedida, caiu-lhes o sorriso de satisfação e correram a bom correr para o meio dos canaviais. A risada foi geral, misturando-se com os acenos da partida.

 

O Taamaco estava algo minguado por castigo do estio, porém, mantinha-se navegável e com alguma corrente. Lentamente, uma brisa acabou por aparecer, dando alguma folga aos braços encrespados dos que se fizeram aos remos.

Sem contratempos, e favorecidos pelo sopro de Nabia, pelo entardecer já deixavam o Taamaco, que os trouxera, benevolente, até ao Durio.

O caudal aquífero engrossou e as correntes ganharam movimento brusco e algo atabalhoado, alargando a superfície espelhada cingida pelo abraço entre os dois grandes rios. Atracaram à margem para providenciar algum sustento e descanso.

A noite não foi motivo para decisão de paragem a Taer. Pelo contrário, secundado sempre por dois companheiros, enquanto os restantes repousavam, manteve a embarcação a planar sobre o dorso fluvial. Com a aurora a romper por entre as montanhas que haviam deixado para trás, o timoneiro entregou, enfim, os comandos a Hermineu, buscando contentar o sono que já lhe pesava.

O cada vez maior afastamento entre margens fazia adivinhar a entrega doce do Durio ao mar salgado. Faltava pouco para que as paisagens se transmutassem e a navegação começasse a ser ainda mais exigente.

Acordaram Taer. Retemperado de energias, alongou-se num espreguiçar contemplativo da manhã adiantada e quente. Retomou o leme e deu algumas indicações aos companheiros, nos panos do vento e nos remos. A barca incutiu deslocação precipitada. Ansiavam pelo desconhecido horizonte.

Com a mestria náutica do egípcio, pareciam alados sobre as águas. E curva a curva do indeciso rio, avançaram rapidamente para a meta mais próxima. Uma estranha brisa já tomava posse das narinas. Para alguns, uma novidade o odor da maresia.

Entusiasmados, deram rijo nos remos e, quando já faziam as derradeiras dobras do curso, preparando-se para entrar no estuário do dilatado Durio, uns quantos indivíduos apareceram na arriba direita, saídos dos arbustos frondosos, acenando quase em desespero. Contudo, não emitiam qualquer som. Pelos sinais, chamavam-nos para a margem, apontando uma pequena cunha da orla. Atónitos, os que navegavam estacaram os esforços, deixando apenas a embarcação deslizar, iniciando a entrada no troço final.

De supetão, Aleutério, que vigiava à proa, atirou-se a um remo e desatou a manobrar para que o barco invertesse o rumo que levava, e avisando de pronto os companheiros, em tom baixo:

- Os Romanos! Os Romanos! Rápido ajudem-me a rodar ou vamos ser massacrados!

Aleutério foi o primeiro a ver uma crescente mancha azulada, fundida com o céu, que revelava o grande mar ocidental através dos contornos vincados na planura progressiva do horizonte. Na grandiosa imagem que surgia aos poucos, também o surpreendeu, em contraluz e em relevo, a presença de duas galeras romanas – que do seu passado costeiro, tão bem conhecia -, as quais estavam fundeadas na margem sul, próximo do que seria a antecâmara do términus do Durio.

Alertados, todos rapidamente compreenderam o que aterrava o amigo, acorrendo a ajudar na manobra. Taer fechou as velas o mais destro que pode. Guinaram então para o local indicado pelos estranhos que gesticulavam, orando por não terem sido notados nas atalaias latinas.

 

Assim que atracaram, logo um conjunto de guerreiros muito jovens, mal entrados na puberdade, acorreram com longas e farfalhudas ramagens, destinadas a cobrir a embarcação, com o intuito de a dissimular entre a vegetação marginal. Ainda recuaram quando viram um valente lobo branco a saltar do seu interior. Mas, ao gesto de tranquilidade de Runaekoi, retomaram a empreitada.

Tanto os da expedição, como aqueles que surgiram em seu auxílio, recolheram para espaço arborizado.

- Sou Tongídio, de Tanábriga. Comigo viajam a minha mulher, Rubínia, alguns conterrâneos e outros amigos. Temos uma missão e agradecemos-vos por a mesma não ter já terminado por aqui… Mas, afinal quem sois e a que tribo pertenceis?

- Eu sou Aelcio, líder desta fraternidade de moços que buscam a passagem da idade infantil para a idade adulta, vivendo em pequenos grupos, durante longas jornadas, pela natureza silvestre, aprendendo e experimentando as vivências da maturidade, sobretudo a caça e a guerra.

- Entendo: todos os jovens dos clãs celtas, iberos, passam por essa fase de iniciação, onde ganham as vírias da maturidade e de guerreiro. Foi uma sorte que as vossas andanças vos trouxessem por aqui, neste momento.

- Tongídio, não foi o acaso que marcou este encontro; pelo contrário, sabemos bem quem sois e ao que ides. É uma graça divina poder conhecer os grandes heróis e muito amigos de meu irmão, com quem partilharam aventuras celebradas por toda a Ibéria. Alépio é meu mentor e irmão mais velho. Quando soube da desgraça que ocorreu em Sagunto, decidi deixar Brácara e partir no vosso encalço. Imaginava que teríeis planos para resgatar os compatriotas. Ontem, pernoitamos no cabeço do Monte Castro, e vimos os sinais de fogo, interpretando-os: “prestar apoio a uma embarcação que chegaria de Tongóbriga; navegar para Sul; missão pela Ibéria”. Só poderiam ser os grandes guerreiros, de quem tanto ouvira falar. Arrancamos imediatamente para Kale, para vos encontrar. Foi então que soubemos que há aliados dos Romanos que também decifraram a mensagem dos sinais de fogo, e que o inimigo tem um assentamento que controla a saída do Durio, e vos esperam também.

- Parece-me que estás com a iniciação bem avançada, Aelcio – sorriu Rubínia – É também uma honra conhecer alguém da estirpe do, também, nosso irmão, Alépio. Agora, não percamos o tempo, que é precioso, e busquemos o caminho para Kale. Aí teremos todo o saber sobre o que se passa com estes Romanos.

 

Todos concordaram. Partilhadas as montadas disponíveis, apontaram ao alto da Peñaventosa, sempre a coberto na densa floresta que acompanhava o pronunciado declive.

Kale era o bastião do extremo Sul dos Calaicos, sob domínio do clã dos Brácaros. O rio largo travara a expansão do povo celta, estabelecendo por aí a fronteira mais afastada do seu território.

A custo, alguns com peso redobrado, os cavalos sofreram arduamente para vencer os socalcos acantilados que davam acesso alternativo e pouco crível ao lugar. A via principal encontrava-se sob a mirada ribeirinha do inimigo.

Aproximaram-se à entrada Norte. Aelcio apresentou-se à guarda, e as portas rangeram em abertura. O brácaro, que pertencia às elites aristocráticas do seu povo, fez seguir o séquito ao encontro do chefe máximo de Kale.

A cidadela era de pequena dimensão, mas de estruturas robustas, sobretudo defensivas, adaptada à sua função de fortaleza fronteiriça. O espaço interior estava compulsivamente desordenado num ziguezaguear rendilhado, fruto da construção desorientada de habitações, oficinas, currais e outras estruturas, assim promovida para potenciar a resistência perante eventuais invasores.

Do cabeço da Peñaventosa dominavam a paisagem sobre o rio e sobre a sua envolvência. Com uma rodeira de ligação ao Durio, Kale servia também de entreposto de escambo, aproveitando o seu porto, algo rudimentar, mas constituído por ancoradouro, de águas profundas, e edifícios de suporte aos negócios e aos viandantes. Este apêndice da cividade, desmurado, desenvolvia uma atividade intensa na circulação de mercadorias, quer pelo rio, quer pelas vias interiores que ligavam a Calécia e outras regiões da Ibéria. Porém, encontrava-se, agora, abandonado, perante a ameaça Romana.

Aquele agregado dos Brácaros era dirigido pelo omnipresente Frágua, guerreiro distinto pela força e pela sabedoria, que os anos acumulados lhe garantiam.

- Aelcio, presumo que te faças acompanhar pelos aguardados navegantes de Tongóbriga. Se interpretei bem a mensagem dos sinais que me trouxeram, estamos perante alguns dos mais ilustres entre os Iberos. É uma honra recebê-los no nosso povoado. Os deuses agraciam-nos com distinção generosa.

- Na subida do rio até a este morro do senhor dos ventos, Aelcio falou-me de ti, Frágua. Palavras de respeito e admiração, que devem ser bem merecidas. Terias sido de precioso auxílio em Ribasdânia[1], mas sei que cumpriste a tua parte por cá, demorando e resistindo à poderosa armada romana – cumprimentou, Tongídio.

- Sim, preparei-me para acorrer à grande batalha com umas centenas de calaicos da região, porém deparamo-nos com a investida de um exército romano, chegado em galeras, e que atacou de imediato, não só a nós, como também os nossos vizinhos Túrsulos Velhos, do outro lado do Durio. Destruíram o nosso porto, mas nunca conseguiram chegar cá arriba sem levar o que contar enquanto desciam frustrados pelo fracasso. Já os Túrdulos sucumbiram e estão sob o seu jugo.

- As embarcações romanas são colossais e parecem poderosas! Sou filha de comerciantes de longo curso, mas nunca vi tamanhos equipamentos para navegar e transportar! – admirou-se Rubínia.

- As galés que daqui vês são das mais simples e manobráveis em águas fluviais. Depois de conhecida a derrota contra a aliança ibera, em território vetão, os latinos abalaram com as embarcações de maior porte e com o grosso das tropas para, ao que tudo indica, irem reforçar Sagunto e as possessões a Leste. Por cá, deixaram algumas galeras com os respetivos efetivos e um campo fortificado na margem de lá. Neste momento, só cá permanecem duas galeras, mas há mais – não sabemos ao certo quantas são – que entram e saem do estuário do Durio, ocasionalmente, vigiando o rio e as costas marítimas próximas. Mas que anfitrião serei eu se vos mantiver aqui entre os umbrais da porta?! Entrai para a casa do senhorio; vinde descansar e conversar, enquanto comeis e bebeis.

 

Andarilhus

XXX : V : MMXIII



[1] Ver: “Por Ti Seguirei: de um amor singular a uma pátria de afectos.”

publicado por ANDARILHUS às 19:20
Quinta-feira , 09 de Maio DE 2013

O Pequeno Príncipe

 

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Era uma vez um menino,

Trigueiro, desenvolto.

Um pequeno príncipe, sem brasão…

Era curioso, gostava de saber.

Era… fino!

Como uma brava maré, envolvia, revolto,

A todos colhia, como flor, com o coração…

 

Era uma vez um ramo viçoso,

Que saiu desta rugosa árvore,

Renovando-a, adoçando-a…

Desenhou o riso em traço vigoroso,

Quebrou o gelo de mármore

Libertando a alegria… animando-a!

 

Era um a vez um ser bom,

Mesmo pequenino,

Um mago

Aprumado na virtude como um cedro…

 

Não era uma vez,

Já o é

E chama-se Pedro,

Pedro… de Santiago!

 

Andarilhus

I:V.MMXIII

 

publicado por ANDARILHUS às 21:19
Sexta-feira , 03 de Maio DE 2013

Por Ti Seguirei… 2.6

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Um pouco à frente e sobre um maciço rochoso elevado, Rubínia ansiava. Acocorada sobre uma fraga mais saliente, espreitava para as bandas onde imaginava os companheiros. Porém, eles surpreenderam-na, aparecendo da parte contrária. Em vez de fazerem um trajeto direto, preferiram subir o riacho, durante algum tempo, para evitar deixar marcas odoríficas que poderiam servir de rasto a uma eventual perseguição do predador gigante.

A mulher acorreu ao marido, concentrando-se nos farrapos do vestuário e da pele. As fibras engrenhadas e amarelecidas da couraça apresentavam lavores avermelhados das fugas do soro freático que sustenta a vida. Tongídio não sangrava muito, mas o perigo estava na possível infeção das feridas.

Todavia, não havia tempo a perder. Com as devidas precauções, retomaram a marcha para se distanciarem do perigo e galgarem o máximo de terreno até ao anoitecer. O resto da jornada decorreu sem mais sobressaltos.

As aves do crepúsculo sugeriam o assentamento e o repouso. O grupo tinha já o Durio à vista, e a escolha para a pernoita recaiu num espaço abrigado entre dois penedos que a natureza havia unido. Com a cobertura lítica e a única passagem bloqueada pela forte fogueira que formaram, sentiam-se a salvo de surpresas desagradáveis.

- Estamos todos gratos pela tua coragem, ancião! Não tivesses tu regressado, e alguns de nós não estaríamos aqui, agora, sob o cálido afago deste fogo.

A voz de Tongídio cruzava a atmosfera mal iluminada, pardacenta pelo fumo e pelos cambiantes alaranjados dos paus incandescentes.

- Não me agradeças a mim; o Leuko é que obrigou o urso a pôr-se a jeito. A funda foi só o passo final…

O lobo mantinha-se deitado, numa das laterais daquela quase caverna, mas sempre atento, com a cabeça entre as patas, pronto a erguer-se rapidamente. Acusou a fala de Aleutério, rodando ligeiramente os olhos na sua direção.

- Provaste possuir um braço certeiro e forte, de fazer inveja a qualquer jovem! Sabemos agora que podemos contar contigo, mesmo nas situações mais agressivas! – gracejou o caudilho, enquanto molhava o pano no unguento que a mulher preparara para aplicar nas feridas.

Rubínia mantinha-se calada, enquanto tentava reparar os longos rasgões da loriga do marido, balanceando uma agulha de marfim. Não fora a robustez da couraça de linho e as garras do urso teriam arrancado os ossos ao guerreiro.

- Quando chegarmos a Tongóbriga, em casa de meu pai, com a ajuda do tear, acabarei este remendo com outra perfeição. Até lá, meu marido, irás um pouco mais arejado! – sorriu.

Já descontraídos e mesmo a brincar com a difícil situação que haviam passado, relaxaram e descansaram. Confiaram a vigia à natureza de Leuko.

 

Após o alvor, a manhã formou-se límpida e com Sol propício e de bons augúrios. Não muito longe, o ondular das margens de ombros largos do rio dominava a paisagem. A próxima etapa seria passar o magnífico Durio. Em Freixieiro[1] havia sido fácil, pela estreitura do curso; ali o caudal era bem mais alargado. Era impossível lançar ponte sobre tão longo vão de água.

Acompanharam a margem na direção de Poente, em busca de um dos poucos pontos de passagem. Normalmente, estes locais surgiam da sedentarização de grupos de pessoas muito pobres e básicas nos modos de vida. Refugiavam-se em grutas ou mesmo pequenas e insalubres construções em madeira bruta, acumulando troncos ligeiros e muita ramagem, viviam da caça, recolha silvestre e da generosidade com que o rio lhes enchia as redes de peixe. Conseguiam igualmente algum proveito, em moeda ou em géneros, com a passagem de forasteiros entre margens.

A delegação de Tanábriga cumpria já uma distância maior do que a que pretendiam como enfiamento mais direto para Tongóbriga, quando encontrarem finalmente um desses núcleos de gente que, isolados, ainda mantinham uma existência muito bravia, mostrando-se fugidios ao contacto com estranhos.

Aproximaram-se calmamente, para não correrem o risco de provocarem reações indesejáveis. Já a alcançar o centro do conjunto dos oito toscos abrigos erguidos numa orientação de quarto crescente da Lua, confrontado o braço fluvial, e a cerca de vinte passadas do limite da margem, Rubínia retirou um largo pão de bolota do alforge e mostrou-o, em oferta.

Os locais, até aí desconfiados e sempre de armas em riste, alguns escondidos no mato que circundava o aglomerado, descontraíram um pouco, e aquele que parecia ser o chefe da comunidade aproximou-se da visitante para recolher o pão. Depois, recuou sem virar costas e entregou a dádiva a uma mulher com guedelha encardida e pele enlodada, pouco vestida pela míngua pele de gamo que lhe tapava parte do tronco e cintura, esta também imunda e repleta de escamas e restos de vísceras de peixe. O cheiro tresandava a boa distância. Aliás, o fedor estava espalhado por todo o espaço.

Após o primeiro contacto, Tongídio, sem descer da montada, gesticulou ao que vinham: apontou para uma jangada, que ia bulindo suavemente ao ritmo da silenciosa ondulação que chegava ao limiar do curso de água, e fez sinal de quererem atravessar o Durio. Mostrou outro pão e uma cabaça de cerveja, assim como umas moedas de bronze.

O interlocutor acenou afirmativamente com a cabeça, grunhiu uns sons estranhos para o meio do matagal, e de lá saíram quatro juvenis quase nus, embora com aparência mais asseada. As brincadeiras no rio garantiam um mínimo de higiene.

Firmado o negócio, os forasteiros subiram para a embarcação, um emaranhado de troncos unidos por cordas entrelaçadas, de tal modo imperfeito e irregular, semeado de buracos e arestas vivas, que foi com grande dificuldade que conseguiram carregar os cavalos. Por fim, Runaekoi, que havia ficada para último, como segurança a qualquer eventualidade, saltou para o amontoado de madeira, e a jangada partiu, impelida por longos paus e remos, manobrados pelos jovens barqueiros.

Transposto o obstáculo aquático, despediram-se dos alegres gaiatos e tomaram o rumo pretendido. Se os deuses fossem coniventes, pelo final do dia estariam em casa de Físias.

A primeira etapa do percurso restante foi dura de vencer. Seguiram para Norte acompanhando, em sentido contrário, o curso vertiginoso do rio Ovilino (como lhe chamavam as populações nativas, inspirados na divindade com o mesmo nome), ascendendo ao dorso da montanha até ao ponto onde desembocaram num trilho que levava, de forma quase plana, a Tongóbriga. Em breve encontrariam o repouso e o sustento.

 

Físias não cabia em si de contente quando a comitiva se apresentou em frente à abertura que interrompia o alinhamento dos muros de meio corpo que circundavam a sua área habitacional.

- Que alegria! Minha Filha, Rubínia… E Tongídio! Todos os dias faço uma libação a Larouco para que vos traga até mim e por cá fiquem… Bem sei que é uma ideia tola de um velho casmurro, mas o que me move é um sentimento muito forte. – sorriu.

- Ora meu pai, nos bem o sabemos, Para já Tanábriga será a nossa morada. Quem sabe um dia… E apertou o pai num abraço.

Depois de se refrescarem e sacudirem a poeira acumulada no caminho, sem esquecerem de tratar do penso dos animais, introduziram-se na acolhedora moradia do mercador. No espaço maior da habitação, refastelados no conforto de uns magníficos tapetes orientais, adquiridos pelo anfitrião a um colega proveniente da longínqua cidade de Tiro, foi-lhes dado a saborear abundante e exótico alimento e bebida. Mais amainado no apetite, Tongídio revelou, então, ao sogro as circunstâncias na Ibéria e as razões que os levavam ali.

- Respeitado Físias, agora poderás compreender o que te vimos pedir: precisamos da tua preciosa ajuda para alcançarmos a costa Sul o mais rápido possível. Precisamos de um barco veloz que nos leve cerca do local onde terás permutado estes belos tapetes, que agora nos enfraquecem com a sua macieza e nos tornam tenros para os tempos que correm! – terminou risonho a sua apresentação, o caudilho.

- O barco de maior calagem está de viagem, para reabastecimento de produtos a Norte, junto dos novos amigos que contigo conheci. A única embarcação, com capacidade para trilhar os mares, que está no ancoradouro do Tamaco, é a pequena galera que usamos para transportar os artigos mais leves, como os panos, a qual designamos por “galiota”. Se não levar carga, transporta cerca de 15 pessoas e mantimentos, com ligeireza. Tem velas e 4 remos a cada ilharga. Mas o melhor e mais seguro, será esperar alguns dias; prevejo o regresso da galera maior em breve…

- Estamos grato pelo conselho e pela oferta, meu pai. Mas, não há tempo a perder. Temos de arriscar com a solução mais frágil e fazer-nos à viagem logo que esteja pronta para partir.

- Assim sendo, peço-vos que aguardeis um pouco após a alvorada. Durante a noite e início da manhã teremos a barca convenientemente apetrechada para se fazer ao mar, com todo o material que vos será necessário, sobretudo alimento e água potável. Agora comei e descansai serenamente. Vou dar instruções a Taer, e logo regressarei à vossa companhia.

Já algo dorido, quer pela fadiga do dia que desvanecia, quer pelo envelhecimento de um corpo marcado com muitas histórias de lida, Físias ergueu-se apoiado no seu fiel cajado e saiu em busca do criado.

Taer era um egípcio, cujo destino lhe aportou a fortuna de se cruzar com Físias. Este, tal como fizera com Zímio[2], libertara-o de uma vida de escravidão infantil, desviando-o de uma sorte atroz e de uma morte precoce. Comprara-o a um explorador de pedreiras cartaginês, trazendo o pequeno Taer para o seu serviço, entregando-lhe tarefas mais adequadas a uma criança, e deixando-o crescer em robustez e carácter.

 

Após uma noite pacífica, o disco solar impôs-se imponente, ainda a recordar a canícula tardia do estio.

Do patamar elevado onde se situava a casa paterna de Rubínia, enxergava-se todo o esplendor da Tongóbriga dos socalcos. Nível após nível, o casario emparelhava-se em altura, irrompendo como cogumelos de rocha entre o verde do ervado e as cores múltiplas pintalgadas nas flores, evidenciando-se os arbustos já em tons escarlates.

A flanquear a vereda que desenhava o serpenteado caminho que unia a rede de entradas nas plataformas aplainadas, inscritas na inclinação do relevo montanhoso, uma formação alinhada de castanheiros, nas duas faces da rodeira, guarnecia de abrigo e frescura os transeuntes. O piso rasgado na encosta granítica, que apresentava o reforço dos pontos mais areados com remendos de grandes e grosseiras lajes, descia até ao exterior, ultrapassando a porta central da forte muralha, ligando aos diferentes rumos da orientação.

A comitiva, guiada por Físias e alguns serventes, tomou a direção do areal onde estavam fundeados os barcos no rio Tamaco.

 

Andarilhus

III : V : MMXIII



[1] Ver: “Por Ti Seguirei: de um amor singular a uma pátria de afectos.”

[2] idem

publicado por ANDARILHUS às 07:57

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