Por Ti Seguirei... (2.9)
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Impacientes, pouco dormiram, a ruminar nos planos e nas estratégias para colher os latinos como se fossem gatos pachorrentos, espreguiçados ao sol.
Quando o galo saudou a primeira luz já Kalae revolvia em surdina. E tão cedo despertaram, que ainda cheirava a comida quando os líderes celtas regressaram à sala da casa do senhorio, para prepararem a operação. Atiçaram as brasas subsistentes da fogueira que aquecera a ceia, iluminando novamente o espaço. Entre bocejos, iniciaram a troca de impressões, enquanto debicavam alguma fruta e pão.
- Graças às suas campanhas de fracasso contra os nossos muros, e porque, também, embarcaram alguns para outras paragens, os romanos são agora em menor número. Mesmo assim, ainda devem andar por aí um punhado farto de centúrias. Nós somos cerca de 200 guerreiros prontos a lutar, incluindo algumas mulheres. No entanto, parece-me que podemos explorar alguns pontos em nosso proveito. Desde logo, o inimigo está fragmentado em várias posições: têm legionários nas duas galeras, no campo fortificado que construíram na margem do rio, e ocupam também a Citânia Marinha, onde controlam e oprimem os túrdulos; beneficiamos também da vantagem da surpresa; finalmente, contamos com o nosso espírito indomável, muito apreciado pelos deuses. O maior problema é não termos meios de atacar em força e de rompante o inimigo, porque o largo caudal do Durio nos atrasa o avanço, denunciando a nossa chegada. Não sei ainda como ultrapassar este problema…
- Frágua, e restantes senhores da sala, peço a palavra... – interpôs-se Aelcio, adiantando-se a todos nos comentários à apresentação de Frágua.
Algo atónitos, os mais velhos acabaram por mostrar curiosidade em conhecer os pensamentos do jovem intrépido.
– Porque não darmos ao inimigo aquilo que ele tanto espera?! Reparem: eles aguardam a passagem de um grupo celta que conspira contra os seus interesses; querem debelar essa ameaça; estão concentrados em matar pela raiz qualquer tentativa que arruíne os seus planos na Ibéria. Porque não dar-lhes a desejada “comitiva de Tongóbriga”, como se dá a minhoca no anzol aos peixes?! Distraindo-os assim, teremos então a oportunidade de atravessar o rio a montante e ir em socorro dos nossos vizinhos… e procurar libertar os guerreiros túrdulos para nos ajudarem a equilibrar um pouco as armas em contenda!
- Ora, se houvesse dúvidas quanto à tua identidade, desapareceriam de vez: és uma réplica, em crescimento, do teu irmão Alépio! – sentenciou Tongídio, para terminar com o ambiente de admiração.
- Julgo que estás prestes a ganhar as tuas vírias de adulto, sendo tempo de entregares a tua confraria de moços a outro líder. Mas, deixa-me adivinhar: por certo já magicaste como levaremos a cabo esse teu plano, não é verdade Aelcio?
- Claro, Rubínia! Tenho tudo concebido aqui por baixo das melenas encaracoladas! Vou contar-vos tudo… se me permitirem…
Em breve, e sem significativas alterações às propostas de mancebo brácaro, Frágua dava instruções aos seus kalaedónios, definindo posições, ações e apetrechos a reunir.
Raiava o rebordo do pai Sol nos cumes das montanhas, quando se volatilizavam os primeiros fumos exalados da incineração das vísceras e do sangue de um bode, em oferenda a Reva, pedindo a ajuda divina.
A máquina mística celta da guerra estava lançada. Algumas dezenas de guerreiros seguiram para Este, procurando a montante um melhor ponto de passagem do vão fluvial, outro grupo acorreu ao local onde se encontrava a galiota. O contingente maior dos elementos da força ibérica desceu furtivamente até às ruinas do porto de Kalae, aproveitando ainda a pouca claridade, mantendo-se aí ocultos entre as estruturas destruídas.
Como Frágua ordenara, Krispo juntou uns quantos companheiros para levar um tronco de castanheiro derribado e seco há muito, esventrado pela longa vigilância dos tempos, até à borda da água. O madeiro, assim carcomido, era leve e, sobretudo, flutuava bem, correspondendo na perfeição à genialidade de Aelcio.
Ao sinal de Tongídio empurraram a galiota, pilotada por Taer e Aleutério, transportando também uns quantos jovens brácaros da fraternidade de moços, para formar o grupo “esperado”. Em simultâneo, Tongídio, Rubínia e os restantes da comitiva, estribados ao tronco de castanheiro através de cordas, e camuflados pelos ramos e limos que anteriormente tapavam a galiota, seguiram arrastados por esta. No bucho escavado do lenho levavam lanças, machados e falcatas em grande quantidade. A árvore renascia para novo destino…
A Levante, dentro de toscas barcas de pesca, um corpo avançado de celtas atravessava o Durio, numa das suas cinturas mais estreitas. Contornariam o alto do Pelar por Sul, para desembocarem em Citânia Marinha sem serem detetados.
Por sua vez, do outro lado do rio, os romanos preparavam-se para retirar os prisioneiros da galera e levá-los para a extração de minério, começando a reuni-los no convés. Como de costume, após os libertarem das correntes das vigas do porão, procediam à contagem, enquanto os iam agrilhoando novamente, agora, nas cordas de marcha. Entretidos nesses trabalhos, e sempre divertidos com a humilhação e a agressão sobre os escravos nativos, os jocosos vigias latinos só se aperceberam da embarcação celta já esta se adiantara no caudal do Durio, deslocando-se velozmente, numa aproximação que dava a entender que iriam tentar a passagem, escapando à interceção.
A agitação foi medonha entre os romanos. Aos gritos, os centuriões convocaram os subalternos, dando ordens de reação. Na galé maior, como se fossem fardos, atiraram com os cativos túrdulos de volta para a galeria funda dos remos. Aí ficaram retidos, embora soltos de amarras.
Ao toque de trombeta, os legionários formaram às portas do acampamento fortificado. De modo disciplinado, duas centúrias embarcaram na galera grande desguarnecida, enquanto um grupo menor revelava uma terceira embarcação, de tamanho reduzido, simulada entre as duas galeras maiores e a ramagem frondosa da orla ribeirinha, e se lançava na vanguarda do encalce do barco ibero. O isco funcionava.
No ponto favorável das correntes, Aleutério cortou a corda que rebocava o tronco, ficando este à deriva e ao sabor da direção das águas. Taer deixou que a galé pequena do inimigo se aproximasse um pouco para, depois, guinar a galiota diretamente para a margem Norte, simulando a fuga desesperada para terra.
Como pumas prestes a abocanhar as presas, os legionários retesavam os músculos, imprimindo potência aos remos, conseguindo reduzir rapidamente a distância que os separava dos perseguidos. De tal modo que, da amurada, se estreavam as tentativas de lançamento de dardos.
Como previsto, os da galiota atingiram a zona portuária de Kalae, aportando na foz de um pequeno riacho que corria do cimo do povoado, emaranhando-se pelo refúgio das ruínas. Os romanos aportaram quase de imediato. Inicialmente hesitantes em avançar para lugar inseguro, ao verificaram que a galera grande chegaria em breve com reforços, lançaram-se na perseguição.
Frágua fora explícito para os seus guerreiros: a missão consistia em atrair o inimigo para o interior dos destroços, procurando dispersá-los com combates em pequenos grupos, de ataque e fuga, sempre a recuar. Quando escutassem o sinal sonoro do chifre, deveriam desistir dos embates e desaparecer nos matagais, e aí aguardar por novo sinal, para reagrupamento.
Assim aconteceu. O grupo latino menor viu-se confrontado com turbilhões de celtas, trocando algumas hostilidades, mas obrigados a esperar os camaradas que já deitavam a prancha para passar da galera para a margem. Reunidos os blocos, as quase três centenas de legionários acometeram, formados em linhas coesas e com passada certa. Contudo, retomada a liça, logo os iberos obstaram à organização latina, forçando-os a abandonar a formação e instigando-os em combates intermitentes, em vagas de assaltos e retiradas.
Do outro lado do rio, os romanos de reserva estavam atentos ao desenrolar da batalha. Mesmo os que se deram conta, não estranharam, nem acusaram qualquer preocupação à aproximação e ao encosto de um tronco de castanheiro ao casco da galera maior. Nem mesmo os túrdulos, que iam espreitando pelos orifícios por onde atravessavam os cabos dos remos.
- Ei, amigos. Ei, aqui… - sussurrou baixinho Runaekoi, levantando um pouco a ramagem que o escondia.
Apanhados de surpresa, os cativos arregalaram os olhos quando se aperceberam que a árvore transportava várias pessoas, disfarçadas com a cobertura de lama e que se confundiam com a tonalidade da casca, destacando-se apenas a claridade dos olhos e da dentição.
- … Escutem: estamos aqui para vos libertar. Vamos passar-vos armas e depois subiremos à galera para vos soltar. Conseguem ver daí quantos soldados estão de guarda à embarcação? – continuou Runaekoi, em tom abafado.
- São onze… concentram-se quase todos na proa; três estão na torre. – respondeu um deles.
As armas, envoltas em panos, passaram para as mãos dos túrdulos sem qualquer ruído.
- Agora levantem e segurem estes remos na horizontal para que subamos com ligeireza.- apontou Tongídio.
Com agilidade, ficaram elevados ao nível da cobertura da embarcação. Olharam para o interior e confirmaram a situação. Com alguns gestos e poucas palavras do caudilho, deixaram-se escorregar e descer para o convés.
Caturnino, lesto, girou a funda e amassou a cabeça do guarda da prancha de embarque. Atirou com o corpo e com a prancha borda fora. Debruçado, cortou as amarras que subjugavam o barco ao cais adaptado, para depois, chegar-se aos ferrolhos dos alçapões em grade, que encerravam a saída dos aprisionados, ensaiando golpes de machado, moendo-os até à desintegração.
Entretanto, Runaekoi concentrou-se nos legionários da torre, anulando um à distância com a pontaria certeira de um dardo, e não deixando os restantes passar a espaço de maior manobra, retendo-os na estreiteza das escadas, em combate apertado.
Tongídio, Rubínia e Hermineu adiantaram-se sobre os soldados que observavam a outra margem em descanso sobre a amurada da proa. Os três primeiros golpes retalharam os três infelizes que se viraram sem oportunidade de reação. Rubínia atingiu ainda outro, algo hesitante quando confrontou com uma mulher.
Tongídio apanhou um dos longos escudos romanos, rodou-o na horizontal e projetou-se contra dois dos inimigos, atirando-os para as águas do Durio. Com um potente golpe, Hermineu fez voar o gládio contrário; no regresso do movimento da sua pesada falcata, desapareceu a mão do legionário e, a seguir, tombou o seu capacete, com a cabeça desmembrada do tronco. Os opositores de Runaekoi, ao assistirem à sorte dos camaradas, largaram as armas. Abençoados pelos deuses, acabaram também em mergulho no rio, embora debatendo-se com o peso da armadura.
- Rápido, movimentem esses remos; temos de nos afastar desta margem e ir em auxilio dos irmãos Kalaedónios, que estão a sacrificar-se por nós. – Lembrou, Rubínia, enquanto agitava, bem alto, o pano de burel preto.
Do outro lado, ouviu-se, ressoante, o ronco do chifre, em sinal. Após algumas baixas, perante um adversário mais numeroso, os guerreiros de Frágua refugiaram-se nos matagais, tendo cumprido a sua parte e deixando, agora, os romanos sem opositores.
Começava o segundo momento do plano brilhante de Aelcio.
Andarilhus
X : VI : MMXIII