A recusa de Lázaro [por desgosto...]

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Retirado de: https://www.inovavida.com.br/licoes-sobre-a-morte-e-ressurreicao-de-lazaro/

 

Avançavam as horas e não havia argumento que o movesse… - Levanta-te e sai! – replicara, com doçura, Aquela Voz.

- Para quê!?... – entoou o eco grotesco de dentro do sepulcro. – … para ressuscitar no meio de hipócritas, intrujões, calculistas, vigaristas, burlões de sentimentos, manhosos, sonsos… gente que vai ao templo, ora, dedica-se a Deus, e depois, pensando que Ele não está atento, faz o contrário de tudo o que se comprometera, como qualquer vulgar impostor

E de novo, a Voz Tranquila insistiu: - Vem Lázaro, regressa ao sopro da vida que te devolvo! Vem para junto dos teus irmãos, que aqui te esperam. Espreita, vê os que anseiam por sentir novamente o calor no teu corpo

- Querem de volta o ingénuo, para escarnecer, manipular, zombar, ludibriar?! Terei mesmo de dar a outra face, o pouco que resta do meu próprio respeito, as últimas réstias da minha personalidade, do meu caráter?! – crescia o tom, mas diminuía o eco espesso das palavras, denunciando um aproximar da saída da gruta mortuária.

Acontecera o milagre a Lázaro, mas, ao êxtase da multidão que assistia, sucedeu-se uma perturbação inusitada de ainda maior estupefação: o ressuscitado insurgia-se em negação quanto a voltar à vida… Deus oferecia-lhe a maior preciosidade do Mundo; o desgraçado teimava em recusar a dádiva!

Envolto nas ligaduras de linho, surgiu alvo sob o arco da entrada do sepulcro. Já não emanava o cheiro da putrefação inicial e mantinha-se numa postura vigorosa. Apontou para a multidão, com o braço envolto no tecido:

- Ali vejo quem - qual aprendiz do teatro romano - encenou ser quem não é, para conquistar a minha confiança. Enredou-me, e logo que deitou garras à presa, despiu a túnica do embuste, mostrando-se na sua real falta de virtude. Vingou o seu esquema e abandonou-me. Mas o sabor de vitória é pouco duradouro para esta gente predadora: passei a ser apenas mais um troféu, na sua imensa prateleira. O gozo está sempre em continuar a enganar novas vitimas…

- Mas, Lázaro, todos pecamos… - Tentou, com ternura, antecipar-se a Voz.

- Logo ao lado, feito da mesma argamassa, outro que se dizia com fome de atenção e cuidado. Quanto mais lhe prestava auxilio e companhia, mais ele fingia o que o afligia, para depois troçar satisfeito quando se escondia e procurava os prazeres da vida!

Fez uma pausa, para continuar logo de seguida: - Também próximos, outros que vivem de esquemas, para conseguirem dinheiro fácil, de todos nós, e sustentarem assim os seus vícios…

Encostou-se ao arco. Já com o corpo mais curvado e a cabeça pendente para o solo: - Eu só queria uma vida simples, justa com o divino e com os meus semelhantes, respeitando as leis dos Céus, da Natureza e do Homem. Trabalhar, formar uma casa, cuidar dos outros, participar na comunidade. E, nesta retidão, julgava-me digno de receber em reciprocidade o Bem fazer. Aos poucos, apenas me embrulharam, lentamente, nesta mortalha. Roubaram-me os sonhos; desisti de tudo o que me dava alguma alegria e gosto.

- … Lázaro, na nossa compaixão e amor pelos outros, devemos perdoar. É este o maior ensinamento que o Pai nos quer transmitir! Há sempre uma oportunidade para todos. Vem! Sai e abraça os teus amigos! Tens um novo recomeço pela frente, por glória do Pai!

- Não posso… Não consigo… Percebi que estava a ficar como eles, fraco, corrompido e com maus intuitos. Apanhei-me a mentir a mim mesmo; a convencer-me que o Homem é mesmo assim: sempre em despique, em conquista, sem honra e sem limites do bom senso e do bem querer… Senti-me desprezível e morri, primeiro por dentro e finalmente no corpo.

- E o milagre? A ressurreição? O exemplo para estes que aguardam? Vais contrariar a obra de Deus? – perguntou serenamente a Plácida Voz.

- Não quero ofender a Deus ou a Ti. Porém, declino a nova vida que me ofereces. Para mim, o milagre é a morte. E, através dela, não ser mais um a perdurar uma existência que conspurca a Vida e a Natureza. Talvez, algures no tempo, venha a surgir uma geração que mude este destino fatídico e estabeleça os verdadeiros desígnios do Ser Humano. Aí sim, devem ser encontrados os exemplos, pois o Reino de Deus descerá à sua origem, na Terra.

Lázaro, acenou em despedida e recuou para o interior da cripta, decidido a cumprir a sua morte. Pensava que, se o seu espírito tivesse de ressuscitar, então que reencarnasse noutra época, em tempos e lugares distintos daqueles que conhecia.

Compreensiva, a Voz, sempre no mesmo timbre pacífico e cordial, pediu que rolassem a pedra e selassem o túmulo de Lázaro. Afastou-se, arrastando consigo a multidão num silêncio de exéquias, enquanto sussurrava ainda com maior doçura: - Em breve estaremos juntos, meu querido amigo…

Jorge Pópulo

XIII : VI : MMXXI

 

publicado por ANDARILHUS às 18:10