Fado vadio

 

http://img.olhares.com/data/big/186/1863988.jpg

 

O cigarro amassado e requentado

Atrai as traças agitadas

Pela exígua gota de calor.

Aqueles olhos inexpressivos

Como postigos em fachada de rugas

Acendem-se

Ao ritmo das puxadas da nicotina.

 

Lembra (como em oração)

A embusteira industria

Que após anos da mesma série

O fez ceder ao sinal de cansaço,

Recorda (em penitência)

A meretriz vida

Que depois de anos de fuga humana

O fez tombar em solitário regaço…

 

E a rua deambula

Sob seu pés inchados

Pelos degraus, que todos procuramos,

Sob suas costas, deitadas

Pelos reveses, que todos encontramos.

E a rua deambula

Enquanto, lavado pela chuva

E encharcado pela cerveja,

Inventa um ombro amigo,

Companhia de cantiga carpideira.

 

Procurem-no na poeira de cobertores

Em muitos papeis

E bem embrulhado

Em cartões.

Procurem-no nos recantos

Escuros, frios, fugidios,

Apartado da cor,

Da alma, do amor.

Encontrem-no a chorar estrelas,

E a tocar odes de silêncio

Em violinos feitos de lixo.

Encontrem-no a afastar nuvens

Macias e brancas

Com mãos trémulas e sujas

Em busca do seu nome no céu…

 

E, quando com ele fado cruzares,

Dá-lhe um sorriso,

Talvez mesmo uma palavra,

Um aceno,

Sem medir, sem juízo

Como tu, ele é humano pleno

Como tu, ele precisa de um alento

Como tu ele espera por um vento

De fortuna

… que todos nós buscamos

Mas que nem todos nós topamos…

 

Aos sem-abrigo, de lar ou de coração.

 

Andarilhus

XVIII : XI : MMVIII

 

publicado por ANDARILHUS às 17:52