Por Ti Seguirei... (51º episódio)
Os romanos cobriam várias dezenas de milhas todos os dias, imprimindo um ritmo de perseguição às jornadas. Assentavam com o ocaso e movimentavam-se logo que surgia a luz matinal. Pausas curtas durante os dias possibilitavam alguma recuperação do fôlego. Apesar de parcas e muito resumidas, as paragens serviam imediatamente para a tagarelice e para retomar o vício, latente e dilatadamente incutido, dos jogos e apostas.
Esta febre pela exposição à sorte e ao azar dava azo, por vezes, a pequenos atrasos provocados por zaragatas, rapidamente tratadas com punições duras e exemplares aos prevaricadores e desordeiros. As chibatadas, aplicadas no local e momento da ocorrência, obrigavam à delonga do corpo militar respectivo, o qual, por essa razão, era igualmente alvo de castigo colectivo, quando chegados ao poiso nocturno.
Porém as Legiões nunca adiavam o arranque por estes motivos menores e, tal como previsto, punham as caligae à estrada.
Quem já estava praticamente sobre Ribasdânia era Talauto e o grupo que liderava. Aproximavam-se por Sudoeste.
Ainda afastados do destino, começaram por encontrar um posto de atalaia avançado, designada por Jou. Daí em diante proliferavam as patrulhas das suas forças, com quem trocavam saudações, alegremente.
Um pouco mais à frente, numa arriba sobre campos de castanheiros, passaram por um povoado que distava apenas a um curto galope da fortaleza para onde se dirigiam. Ai depararam-se com a presença dos aliados Turdulos, Cónios e Turdetanos. Cerca de 3.000 guerreiros disponibilizados por estes povos do Sul, que reforçavam as defesas dos magros muros do lugar, deitando mão a todo o tipo de materiais que recolhiam.
Ficaram também a saber que, como não havia espaço em Ribasdânia para receber todos os povos ibéricos, Alépio optara por criar uma desmultiplicação dos efectivos, criando um sistema de defesa assente em vários redutos satélites e de apoio à praça-forte principal.
Quando ouviram os relatos da estratégia, Gurri sorriu com a genialidade do amigo brácaro: mesmo com parcos recursos e tempo, sabia sempre tirar o melhor proveito perante as situações com que era confrontado.
A paisagem era dominadora dos sentidos. Transição entre o planalto, quente e sufocante, cativo entre as barreiras de granito que buscavam os céus, e as encostas desses altares de vertigem e aura, progressivamente mais frias e mais despidas da exuberante vegetação que abundava nos sopés, a região apossava-se da atenção do mais distraído, do mais insensível ou do mais introvertido. Com a paleta de múltiplos estádios geológicos e intemperados génios climáticos, aquelas terras, tão extremas entre o quente e o frio, sempre beneficiaram dos favores dos deuses. Talvez fossem mesmo os jardins por eles muito apreciados. Por isso, bafejadas pelo sopro da fecundidade e da prosperidade, para Homens e outros seres, vegetais e animais. Naquele solo qualquer semente germinava; naquele solo qualquer minério emergia; naquele solo qualquer um ou qualquer coisa podia vingar e ter sucesso de vida.
Assim, deslumbrados, assomaram às portas de Ribasdânia. A imponência da obra vetã era comparável à omnipresença dos contrafortes do monte Padrelas, que servia de fundo a todo aquele grandioso cenário dominado pelo granito, e que furava as manchas verdes de árvores seculares e arbustos rasteiros.
A fortaleza era simples; somente o necessário para a função. Compunha-se de uma só cinta de muro, porém alto e com várias braçadas de largura, suficientes para resistirem longamente ao embate de projécteis enviados de catapultas. Possuía 3 portas, muito estreitas, nas quais só passavam ou um cavaleiro, à vez, ou dois indivíduos, lado a lado. A ladeá-las, e também espalhadas pela circunferência defensiva, um conjunto de torres reforçava a vigia. As pedras da cerca, visíveis, eram de grande volume e demonstravam um aparelhamento perfeito.
Entraram – aclamados pelos guardas – e confrontaram-se com um recinto muito bem organizado e dotado de arsenais e oficinas próprias para a guerra. Apresentava dois níveis, em socalco, aparecendo os maiores edifícios no mais elevado. No inferior, dispunha-se um grande espaço aberto e desocupado de grandes estruturas e, encostado à muralha, chusmas de lanças e amontoados diversos de pedras, aguardavam por força de braço para procurarem alvo.
Pelo topo do muro e pelo espaço interior, milhares de guerreiros ocupavam-se com tarefas diversas ou simplesmente conversavam e davam tempo ao ócio. Outros tantos ou mesmo mais deambulavam pela zona circundante exterior, concentrados em trabalhos, cujo objectivo não se percebia muito bem. Desde logo, tinham devastado todo o arvoredo da parte descendente da encosta, para Este, limpavam e estacavam profundamente no terreno, espaçadamente, alguns dos troncos tombados. Outros traziam ramagens espessas de silvados, giestas, espinheiros e tojos, acumulando-as junto dos troncos.
Os recém-chegados dispersaram pela área. Talauto e os companheiros mais próximos dirigiram-se ao ponto elevado do lugar, onde se situava a sede do comando. Ainda subiam quando, correndo em sentido contrário, pelo estreito trilho, reconheceram Alépio, que gesticulava e gritava palavras, que mal se escutavam ou percebiam, mas facilmente se observava que eram de júbilo. Não demorou a abraçar os amigos.
- “Finalmente, como ansiava a vossa chegada! Vejo que o engodo e a fuga foram um sucesso. Quero saber tudo sobre a forma como ludibriaram os romanos! É bom ver-vos. Venham, lá em cima há comida e bebida, para reporem as energias…”
- “Calma Alépio, maior dos brácaros! Já te contaremos tudo: como o nosso líder conseguiu pasmar este velho vacceu, com a sua genialidade, e mais, como, depois de deixar 4 legiões para trás, ainda demos uns sopapos numa outra legião que andava oclusa pelo nosso território.”
- “Sim meu amigo, podes contar com Talauto por par nas tácticas e tramóias de guerra. Verás como também é inspirado pelos deuses da estratégia”. Disse Rubínia, para riso de todos.
- “Ainda passamos uns tempos complicados, sobretudo Rubínia e Zímio, mas partimos o toutiço aos romanos. Mas, adivinho que ainda ficarão em pior estado com o que tens aqui preparado para eles, hehehe!” Nova risada provocada pela intervenção de Tongídio.
- “Sim, sim, vou explicar-vos ao pormenor tudo aquilo que concebemos sobre a recepção e resistência ao invasor, em reunião de conselho com todos os povos. Por outro lado, as informações que tereis serão valiosas para afinar os planos. Vamos à casa do conselho, venham.”
Do alto do baluarte a vista era formidável. A Oeste, com derivação para Norte, o Padrelas crescia e desenhava o perfil da terra e do firmamento. Parecia intransponível; de Ribasdânia para cima o domínio do Homem terminava: para lá, nas alturas, abria-se o terreno sagrado da passagem do mundo conhecido para o mundo místico. A Este e a Sul, o inverso: o declive forte formava um dorso bravo, mas progressivo, de um relevo que parecia uma cascata de socalcos pejados de fragas e campos ondulados e que levava a um vale magnífico, ao fundo, contrastante, como se fosse um lago verdejante, harmonioso e regular, que se perdia de vista. Por aí qualquer um sonharia ter a sua fazenda, a sua casa, o seu senhorio; um vale de sonhados paços.
Sobre esse panorama, após os abraços e tantos afectos, os comentários e os risos, sentaram-se no exterior, em volta de uma grande mesa, talhada e formada por vários troncos afeiçoados de carvalho. Reunia-se o estado-maior das forças iberas.
O primeiro a dirigir-se à assembleia foi Talauto. Relatou os acontecimentos de Obila, as ocorrências de Freixieiro e o êxito e a refrega vitoriosa com o inimigo em Lijós. Alegrou e admirou os presentes com as descrições das manobras de fuga da capital vetã e resgate de Rubínia e Zimio; entristeceu-os porém, quando lhes deu notícia da captura e deporte das populações civis para Sagunto, levadas a cabo pelos romanos.
Talamo ficou inicialmente indignado com a atitude de Alúbias, mas logo entendeu o dilema com que se debatera. Inclusivamente, aproveitou para conduzir Pardo como seu representante e chefe de Freixieiro.
Talauto continuou: - “Julgo que teremos, no máximo, 3 dias até ficarmos enxameados de romanos. No tempo que nos resta até então, há que verificar e terminar o sistema defensivo e debater bem as tácticas que vamos adoptar. A tarefa apresenta-se deveras grandiosa e certamente ficará de memória para as próximas gerações. Presumo que iremos enfrentar mais de 20.000 legionários e ainda não sabemos ao certo o posicionamento dos arevacos. O nosso número de guerreiros deve ser consideravelmente menor…”
- “Quanto a isso – e poderás verificar mais tarde – está tudo acautelado. Alépio é um poço de criatividade. Julgo que seria até capaz de engendrar um artifício que levasse os romanos a morderem a própria cauda.
Os povos aliados, de todos os pontos da Ibéria, enviaram contingentes, pequenos exércitos, de acordo com a sua disponibilidade e risco perante o invasor. Exactamente por esse motivo, o grosso das tropas é oriunda dos vetões, calaicos e lusitanos.
Agora já basta de me ouvirem. Como a maioria das ideias e a organização das forças são de autoria deste ilustre brácaro, sugiro que escutemos de sua voz o que já está pronto e o que ainda se prepara”. Adiantou-se o líder vetão, entusiasmado e dirigindo-se ao filho.
Alépio pediu aos ajudantes que aproximassem, sobre um pequeno carro de mão, uma larga pedra de lousa, aprumada na vertical por duas varas de salgueiro. Sobre a superfície lítica negra, bem polida, sobressaiam uns finos sulcos, gravados a cinzel, e destacados por pintura de ocre. Os que já conheciam o artefacto, sorriram; os restantes, aguardavam, intrigados, pela revelação da sua função.
Alépio centrou a ardósia face à assistência e começou a explicar:
- “Caros camaradas e amigos, este é o mapa desta região. Já tinha visto destas figurações entre os marinheiros de Cartago e fenícios. Chamam-lhes também cartas e usam-nas sobretudo para navegar, modelando as costas dos territórios que visitam. Eles têm os mapas representados em papiro ou pele exemplarmente curtida. Nós, por cá, não temos essas matérias nobres e porque precisamos de algo bem resistente, aplicamos a ideia à nossa condição: a pedra antiga.
Bati toda a área e apontei observações, depois apliquei-as em forma de desenho, ficando – como podem verificar – um modelo do relevo e principais características – caminhos, canais de água, bosques, potenciais pontos onde concentrar resistência, entre outros – do território, e que servirá para estudar e explicar a estratégia que devemos seguir, em conjunto, bem sincronizados.
Reparem – apontou - : aqui temos o Padrelas de fundo, a encosta a Este, o alto de Ribasdãnia e os diferentes cabeços em torno desta, os cursos de água e este tracejado são os trilhos que ligam os diferentes lugares e povoados. Conseguem visualizar a realidade a partir desta imagem?”
De uma maneira geral, estavam enquadrados no esquema proposto por Alépio. Então, este pegou num caco branco de uma matéria que, em consistência, parecia o barro e retomou a comunicação: -“Com este pedaço, aglomerado de cal e argila, vou mostrar-lhes a actual colocação das nossas hostes, aquela que julgo que irá ser a colocação, o avanço do inimigo e as medidas que proponho tomarmos para o repelir e para o vencer!”
(continua)
Andarilhus
XIV : VII : MMXI