Por Ti Seguirei... (60º episódio)
Quando entregaram o balanço das casualidades a Quintus, este, contrariamente à sua habitual exasperação, ficou mudo e tapou o rosto com as mãos. Com um gesto perceptível dispensou os serviçais e os ajudantes de campo e ficou só. A campanha complicava-se e ficava com uma aparência muito nefasta. Agora, não seria suficiente alcançar a vitória; tinha de provocar grande flagelo e marcar bem a derrota e a humilhação do opositor. A glória e a justificação de tão pesados insucessos e mortes dos seus apenas encontrariam encobrimento se a sorte do inimigo fosse bem pior.
Contava com Fábio para continuar a inverter os maus resultados por si alcançados. E seria mais cauteloso em novas manobras. Para evitar novos fracassos com os subterfúgios dos iberos, da próxima vez enviaria primeiro as forças dos aliados.
Acantonado em Ortas, Fábio Fúlvios ultimou os preparativos para avançar sobre Ribasdânia, ainda durante a madrugada seguinte. Previa fazer um ataque relâmpago, similar ao realizado na conquista do local onde se encontrava agora.
As tropas do Tribuno, em coluna exígua para poderem avançar pelos corredores estreitos da montanha, alcançaram o Santuário de Argerez ainda antes da aurora, colhendo de sobressalto algumas bolsas de iberos que se espalhavam pelo território. Um contingente assente no santuário ainda deu alguma resistência. Porém, com a visibilidade da envergadura exército inimigo, aportada pela luz matinal, acabaram por retirar-se, entregando o lugar aos Romanos.
Com a recolha dos grupos de guerreiros que promoviam o esforço de guerra pelo exterior, Ribasdânia ficou a transbordar de gente. As muralhas estavam totalmente ocupadas e o interior do recinto mantinha uns quantos milhares à espera de oportunidade para espreitar a aproximação do inimigo. A cada passo, alguém chocava com um correligionário.
Nestas condições de aperto em exíguo espaço, não só a quantidade de braços armados ficava longe de uma plena rentabilização, como poderia mesmo resultar em más consequências. Alépio sabia-o, mas aguardava algo. Ao contrário do que seria expectável não dava o sinal de ataque final, o que estranhava as gentes, tanto mais que infligira já duros golpes em Quintus. Afinal, o que faltava para se decidir? Poucos o sabiam…
Fábio Fulvius, logo que se abeirou do baluarte principal do inimigo percebeu bem as circunstâncias. Resolveu imprimir mais pressão sobre os bárbaros, abalando-lhes o esconderijo de refúgio e a moral.
O estio amadurecera bem as ervas de junça e panasco. Estavam secas como palha e, tal como as podia apreciar nos limites externos da cidadela, o Tribuno imaginou que também existissem no interior daquela, quanto mais não fosse, junto a muros e a ladear os caminhos de pé-posto. Por isso, mandou avançar as armas de arremesso à distância, colocar mechas incendiárias nas pontas dos dardos e montar projécteis com o mesmo efeito para as catapultas. O ataque iniciou-se de imediato.
Em breve o interior da área defendida fumegava, em consequência de um fogo rasteiro mas importunante que lavrava e alastrava um pouco por todo lado e acabava por abocanhar as madeiras de casas e outras estruturas. Os ocupantes do sítio quase não encontravam espaço para escapar ao calor e à queimadura. Atrapalhavam-se nos movimentos e com tamanha confusão que quase não conseguiam actuar contra o flagelo.
De cima dos muros, dividiam-se os olhares e a preocupação, quer para o lado de fora, quer para o lado de dentro. O descontrolo tomava posse dos ocupantes de Ribasdânia, com a fumaça irrespirável e as chamas intensas que chicoteavam as roupas e a pele. E se embora as pedras não ardessem, abafavam todavia ainda mais o calor, funcionando como as paredes de uma gigantesca forja.
“Tongídio leva o grupo de cavaleiros que permanecem por cá, antes que derretam, incinerados, os cavalos, e destrói aquelas malditas máquinas, que nos estão a arruinar os planos! Ainda não recebemos o sinal que aguardamos; por muito que custe, temos de nos manter dentro de muros!” Ordenou o comandante dos Iberos.
Tongídio não se fez rogado e, a encabeçar uma força com centenas dos seus Lusitanos, reforçados por Calaicos e Vetões, rapidamente saiu da fortaleza para levar a cabo uma surtida feroz contra os romanos.
Foi com facilidade que entraram nas linhas inimigas e se chegaram às balistas e catapultas. Enquanto uns formavam uma barreira e enfrentavam os legionários, outros desciam dos cavalos e com machados rompiam as cordas, tendões, peças e apetrechos dos engenhos. Após uma curta refrega com baixas consecutivas de ambos os lados, concluíram o pretendido, pondo as máquinas inactivas, para muito tempo.
Confiante no sucesso da acção, o caudilho lusitano fez soar a ordem de retirada. Mas, a aparente fraca reacção dos adversários fora premeditada e a situação, progressivamente, complicara-se bastante. Os Romanos haviam reagido ao ataque como um pego de água onde entrara a pedra impelida por alguém: deixaram os Iberos mergulhar no seu caudal. Agora tinham-nos absolutamente cercados, como uma bolsa dentro de um alforge.
Das alturas de Ribasdânia, Alépio compreendeu a cilada, mas não teve como avisar os camaradas. Rubínia também viu os seus receios a concretizarem-se. Numa imensa clareira Tongídio e os resistentes defendiam-se duma grande alcateia de lobos do Lácio. Eram já muitos os corpos tombados na orla daquela circunferência. Aquela parcela da cavalaria ibérica cadenciava a morte profusamente pelo inimigo mas também se ia esvaindo de gente.
“Mulheres dos guerreiros que acolá morrem; camaradas daqueles amigos e irmãos! Quem comigo vem resgatar os nossos valorosos!!!!” Gritou Rubínia para a multidão que assistia à hecatombe e já quase se esquecera dos incêndios que os afligiam.
A resposta uníssona fez-se ouvir até ao campo de batalha.
Depois, Rubínia encarou Alépio e este, convencido por aquele olhar terrível que aguardava por uma resposta, acenou afirmativamente com a cabeça e deu ordens: “Sigam com Rubínia todos aqueles que ela escolher!”
O grupo de resgaste foi fácil de encontrar. Quase na totalidade formado por mulheres-guerreiro, saiu da fortaleza pela porta contrária ao cenário da batalha e apareceu de rompante sobre o inimigo por ambos os lados.
Atacaram a franja mais frágil e mais próxima dos legionários. Lograram romper um corredor até ao centro onde exasperavam os camaradas. Junto a Tongídio a acumulação de adversários abatidos atingia proporções míticas e ele continuava a brandir a falcata sobre os que o enfrentavam directamente ou em ajuda dos companheiros mais próximos, tolhendo os intentos e a vida dos atacantes, a cada golpe.
A chegada dos reforços guiados por Rubínia trouxe algum equilíbrio e permitiu o retraimento dos Romanos, com a surpresa. Porém, logo estes recuperaram o espírito e voltaram à carga massivamente. A pressão aumentava, empurrando os Iberos em recuo continuado até aos muros de Ribasdânia.
Rubínia e Tongídio, agora juntos, organizaram espontaneamente uma frente longa de oposição, evitando assim novo cerco fatal, enquanto retrocediam para posição de refúgio, sem virar as costas ao inimigo.
Alépio mandou retirar todos os guerreiros desse lado da muralha, permanecendo apenas todos aqueles armados de fundas ou de arcos. Assim que as duas facções beligerantes se aproximaram o suficiente, deu ordem para que atingissem os assaltantes. Desta forma, os sobreviventes da expedição ao exterior viram finalmente uma oportunidade para se acolherem à protecção dos muros da fortificação.
Os dardos e as bolas de fogo haviam parado, mas as tropas de Alépio tinham sofrido grande revés com a investida, perdendo efectivos preciosos e trazendo alguma descrença aos resistentes. Apesar do desastre, a reacção de Rubínia minimizara as perdas e mantivera o alento face à contrariedade.
Perante o impasse criado, Fábio interrompeu o combate por alguns momentos, dando atenção sobretudo à recolha e amparo dos soldados feridos, enquanto debatia com os seus assistentes de campo o rumo da batalha. A reconstrução dos aparelhos de guerra destruídos era impossível em tempo útil. Restava-lhe progredir de forma tradicional sobre a fortaleza: arqueiros, protecções aos homens do assalto, escadas e subida aos muros, forçar o arrombamento de portas.
No interior de Ribasdânia, dominado o fogo e após algum descanso do confronto, os ânimos melhoravam e já se ouviam algumas graçolas sobre os Romanos e os seus aliados Arévacos.
Apesar de se fazer sentir ainda alguma neblina fumegante no local, uma forte coluna de fumo precipitou-se no horizonte, em baixo no vale e na área mais recuada do arraial inimigo. Informaram o comandante que, então, verificava o estado físico dos seus amigos, confirmando mais um conjunto de lanhos e pequenas perfurações no tronco e braços de Tongídio, o qual se ria enquanto a mulher lhe cosia algumas costuras.
“Finalmente! Agora sim, vamos dar a sova final nestes invasores e mandá-los para casa humilhados e esfarrapados ou para o além! Reunião de chefes, imediatamente, e os guerreiros que se aprumem para o dia glorioso de hoje!”
Andarilhus
V : IX : MMXI