Por Ti Seguirei... (63º episódio)

 

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Assentava a poeira e amainava o vento da fúria que movia em espiral de morte o Homem contra si próprio. O dia esvaia-se precocemente, como se cansado de tanta faina na horrenda colheita de vidas, tomadas pela ceifa da cisma, do capricho do poder, do frio virtuosismo do orgulho.

O tempo passara depressa, esgotara-se para muitos e não deixava fastio ou qualquer sensação de contagem ou medida para os ainda empertigados no desfecho da escaramuça.

Alépio mandou recuar os guerreiros para distância de segurança e criou trincheiras básicas, de improviso, ainda com a luz remanescente daquele Sol testemunha que se espreguiçava, também moribundo, no horizonte. Acampavam para precaver a chegada da noite; aguardavam por desenvolvimentos entre os de Roma ou então pela manhã, para retomarem as hostilidades. A ironia do destino determinara que os cercados cambiassem para condição de ofensiva, atinados em exaurir o inimigo, no aperto de correia de metal asfixiante. Dali, os do Lácio ou saiam para o retorno à pátria sob a bandeira da rendição ou se exilavam de vez algures pelos territórios do Elizium.

 

No reduto romano, as fogueiras mantinham-se atiçadas ao rubro, com todo o fulgor, forçando a iluminação de toda a área, como brecha resistente à noite, de resguardo a qualquer iniciativa ibera. Com o crepitar da lenha verde, ouvia-se também grande algazarra provinda do centro do acantonamento. As disputas verbais cresciam e multiplicavam-se pelo éter estrelado. Estava evidente o litígio e a marcação de posições entre os pares.

Fábio ousava confrontar o Estado-Maior, opondo-se à continuação da guerra, a qual concebia como decidida e apenas razão de morte inútil para muitos dos seus camaradas. Quintus Scipius, com alguma tolerância com o Tribuno, permitia a discussão mas não abandonava a sua determinação cega e decisão em esmagar os bárbaros. A complacência com o desafio do jovem oficial apenas se devia ao estatuto granjeado por Fábio, o único vencedor perante os iberos, até então. Os restantes generais e outras altas patentes permaneciam quietos e mudos, pois sabiam que não beneficiavam da mesma sorte do Tribuno.

Amanhã, contra-atacaremos os selvagens, e não se fala mais neste assunto!!!! Fábio, prepara os teus aposentos e repousa bastante, porque amanhã liderarás a sortida! A minha paciência esgotou-se; cumpram as ordens!!!” Impôs-se o Cônsul com tal ira que quase não resgatava voz suficiente para as últimas palavras, irrompendo em tosse seca. “Vinho, vinho!!!

Já afastado e convencido dos fundamentos que defendia o, até antão, mais fiel e fiável subalterno do comandante máximo conferenciou com outros oficiais, procurando demovê-los de seguirem as instruções emanadas pelo Cônsul. Exortava-os a tentarem uma saída honrada das adversas circunstâncias. Fábio defendia a sua posição com as perdas sucessivas que fizeram ruir todo o poder inicial, encontrando-se agora o exército romano em inferioridade, a todos os níveis da logística e da estratégia. Quintus assim o provocara, Quintus assim o quisera, Quintus assim o continuava a insistir!... Em suma, Quintus deveria ser destituído do comando. Sim, destituído! Não se tratava de uma blasfémia à sagrada honra da Legião, ou uma traição ao povo romano ou mesmo um acto cobarde; era apenas uma conclusão de senso e de razão. Na verdade, uma saída táctica: evitar males maiores, entregar o campo de batalha ao inimigo e retirar dignamente com os homens sobrantes. O Senado determinaria depois se retomariam ou não a conquista da Ibéria.

Os pares escutaram mas não se comprometeram. Para eles, atentar contra o superior hierárquico era um acto condenável e punível. O pudor militar não lhes facilitava tal ousadia. Deixaram Fábio isolado, contudo sem o denunciar. Talvez tivessem uma réstia de esperança que ele, de uma forma ou de outra, acabasse por resolver a situação.

A alvorada agonizava a angústia de Fábio. Não dormira, dividido entre cumprir as ordens, enobrecendo em absoluto o código militar, cuja regra sempre subscrevera implacavelmente, e a oposição à decisão do seu superior, por saber que não era mais do que a ostentação da extrema arrogância e vaidade déspota de um louco, que levaria a um verdadeiro suicídio colectivo. Pela primeira vez, sentiu-se só e impotente.

Quando arribou à tenda de comando, chegava também Quintus Scipius, adornado pelo seu séquito de bajuladores.

Então?! Já tens as ordens Fábio: madruga sobre o inimigo! É hoje que eles vão sentir a gládio a entranhar-se na ousadia. Forma e avança sobre os bárbaros. Nós secundamos-te, com tropas de auxílio.

O Tribuno nem ensaiou réplica. Sem dizer palavra, tomou outra direção e foi dando instruções aos seus oficiais subalternos. Ordenou a reunião dos legionários, a sua disposição em formação de combate, preparados para a aproximação lenta e de recontro à força ibérica.

Do outro lado da contenda, Alépio também já organizava os guerreiros. Colocou os robustos montanheses ao centro, ladeados, em alternância, por colunas de combatentes provenientes do Sul, mais altos e ágeis. Nas laterais dispunha a sua maior vantagem: duas alas de cavalaria, chefiadas, uma por Talauto e outra por Gurri. À retaguarda, colocara os arqueiros.

As longas fileiras da frente dos dois exércitos desafiavam as medidas do vale e alteravam completamente a paisagem e a vida silvestre.

Enquanto Fábio dispunha de um contingente da grandeza de uma Legião - cerca de 5.000 legionários - restando na retaguarda mais uns 2.000, que asseguravam a protecção do Cônsul e dos oficiais menos destemidos ou dados ao combate directo, os Iberos apresentavam uma força esmagadora de um pouco mais de 10.000 efectivos, mantendo 2.000 cavaleiros, entre eles.

O Tribuno já ia derrotado quando deu sinal de progressão. Desta vez haviam encontrado não umas hordas de gentes selvagens, facilmente superáveis por lutarem, normalmente, como animais isolados, mas antes uma verdadeira organização, superiormente chefiada, que superara a visão e a estratégia do comando das forças da pátria latina.

Os trezentos passos que distavam de um bloco ao outro minguavam paulatinamente, apenas por iniciativa dos do Lácio. Alépio exigia contensão aos seus e, fora alguns casos de gente cuja fúria toldava os sentidos para as ordens ou a cautela, logrou manter os Iberos tão juntos como as pedras da firme Ribasdânia.

Uma chusma de flechas recebia as “Coortes” romanas, obrigando os soldados a suster os escudos sobre as cabeças, até se aproximarem o suficiente para confrontarem o inimigo.

O choque foi simultâneo a toda a linha. Entre os romanos, punha-se em prática as tradicionais manobras de ataque em formação, defendendo com o escudo e desviando a arma do oponente directo, para arremessar de imediato o gládio pelas nesgas desprotegidas do mesmo. Em semelhante função estavam incumbidos os possantes mancebos das terras altas da Ibéria, que sustinham a frente do embate, enquanto companheiros mais esguios aproveitavam para, com rapidez, atingirem os legionários envolvidos com outros adversários.

Apesar da diferença proporcional das forças beligerantes, Fábio conseguia manter as suas linhas concentradas e resistentes na batalha. Acudia aos locais que demonstravam fragilidades momentâneas e movimentava as tropas mais recuadas de acordo com as necessidades e a evolução do combate.

A maioria dos homens de que dispunha eram veteranos, muito experimentados e disciplinados nas manobras. Porém, a ala esquerda era composta também com alguma tropa mais jovem e com os aliados remanescentes: gauleses errantes, alguns arevacos, titos e belos e outros mercenários por conta própria. A falta de prática de uns e a pouca convicção de outros provocavam um défice de empenho e solidez desse ramo. Começou a verificar-se que enquanto o centro e a direita da Legião avançava, pouco, mas avançava, a esquerda parecia estagnar e até recuar.

A situação não passou despercebida ao olhar de lince de Alépio. Enviou a cavalaria mais próxima forçar ainda mais a pressão. Em pouco tempo, o flanco esquerdo romano vacilava ainda mais. Procurando a ruptura total, o chefe Brácaro deu indicações a Gurri para levar os seus esquadrões de cavalaria da ala oposta em reforço dos de Talauto.

O Tribuno via o desmoronar do exército a partir daquele vértice, mas não ficou expectante. Ele próprio assumiu a liderança de uma carga de apoio, com o sobrante da sua cavalaria. A magreza dos efectivos montados – apenas duas parcas centenas – pouco ajudou, obrigando Fábio a outras decisões. Sempre em movimento, fez a sinalética necessária para balancear o mar de gente, de modo a concentrar e colocar as tropas das linhas recuadas em escora ao flanco enfraquecido, desequilibrando o volume harmónico do bloco formado pelo exército romano.

Alépio respondeu ao exercício táctico, convocando a cavalaria – aproveitando a grande vantagem da mobilidade – e remetendo-a contra o flanco contrário do inimigo, agora mais leve e despovoado de homens de apoio, na retaguarda. A pressão crítica cambiou irremediavelmente de ala, deixando o Tribuno numa grande contrariedade e indecisão.

A batalha arrastava-se pela manhã, exigindo uma grande quantidade de vidas, de ambos os lados. O Sol nascia num derradeiro dia para muitos e previa-se uma tarde e um prolongar de tempos muito sofridos para outros.

Com a luz do dia quase no seu pleno, em virtude das vicissitudes, a massa compacta de fileiras de legionários já não se estendia num plano paralelamente aprumado. Começara a ceder nos flancos e formava já um semicírculo, apontando tendências para se fechar em circunferência e permitir o cerco do inimigo.

Fábio consciente do massacre maior que dai adviria, gritou com os homens do núcleo, obrigando-os a recuar e a estabelecer uma espécie de coluna cónica que os ligaria ao arraial onde aguardava Quintus. Pretendia libertar-se do abraço funesto dos iberos e retirar para as defesas, salvando o máximo possível das suas tropas.

Exigindo um acréscimo de garra aos legionários, inspirando-os e transmitindo-lhes confiança, deteve os intentos dos iberos e aproximou-se do último reduto. Sendo apoiado também pelas forças que aguardavam no acampamento, quando chegados ao alcance da sua intervenção.

 

Andarilhus

XIV : IX : MMXI

publicado por ANDARILHUS às 22:25