Caminho Português de Santiago: Diário - dia 1

 

Caminho de Santiago - Valença do Minho – Compostela; Julho 2012

Diário / Crónica

 

 

Porto, Valença, Tui - Porriño; 13 de Julho de 2012

1º dia

 

Pelas 6h57 do dia 13 de Julho de 2012 entrava, enfim, na composição de Metro, que me levaria à estação de Campanhã. Chegado aí, encontrei-me com o Luís Miguel e embarcamos no comboio internacional para a Galiza. Partimos pelas 7h55 e arribamos a Valença do Minho cerca de 2 horas depois.

Em Valença colocamos o primeiro carimbo na credencial de peregrino e iniciamos a missão que nos trouxera ali.

Avançamos um pouco ainda em terras lusas, até atravessarmos a ponte internacional e entrarmos em Espanha. Na ponte começamos os registos fotográficos e acabei por perder o meu chapéu de aba larga. Não chegou a internacionalizar-se! “Perdíamos” também 1 hora. Estávamos próximos das 11h30, espanholas.

Se em Portugal a chuva ameaçou mas não perturbou, logo que entrados em Tuí, começou o aguaceiro, que nos iria acompanhar todo o dia. Tratou-se imediatamente de colocar os impermeáveis, cobrindo o corpo e a mochila.

Com as paisagens acinzentadas e cobertas pela borrasca, mergulhamos nas entranhas de Tuí, tomando contacto com os diferentes instrumentos de indicação do caminho – as vieiras, os marcos e as setas pintadas a amarelo. Atravessamos o casco velho da cidade e alcançamos os primeiros troços rurais do caminho, trocando o cimento e o betão pelas pedras e terra, bem mais próximas do mais antigo assentamento do caminho, serventia de muitas gerações e povos e que, agora, seguíamos também: a via romana XIX.

Acabamos igualmente por conhecer outras vias de comunicação que estariam sempre presentes no percurso, quer pelo seu uso ocasional, quer pelo seu cruzamento constante. Refiro-me à estrada nacional N-550, o caminho-de-ferro e, com menos frequência, a auto-estrada.

A chuva fez-se persistente, pelo que, após uns 10 km percorridos, quando paramos para almoçar junto à Igreja de Santa Columba de Ribadellouro, a humidade já deixava as suas marcas.

Reforçadas as energias e trocadas as camisolas, retomamos. Passamos mais uma ponte medieval e chegamos àquela que é a pior parte do caminho: a Zona Industrial de Las Gándaras de Budiño. São alguns km a subir e descer passeios, ladeados por fábricas e parques industriais e com muito movimento de camiões. Algo deprimente.

À pressão da chuva somava-se uma extensão ampla de estrada nacional, com as mesmas condições desagradáveis da Zona Industrial. Parámos para animar um pouco com uma cerveja e tomou-se, então, a decisão de não cumprir o previsto – avançar até Redondela – mas antes ficar por Porríño.

Os níveis de entusiasmo decaíram um pouco com os contratempos desta fase inicial da jornada. O Luís ressentia-se de um joelho e ganhou bolhas nos pés, pela pouca drenagem da água pluvial nas meias e botas. Entendeu que, por segurança e precaução para os dias seguintes, não deveria avançar mais.

Tínhamos planeado juntos a empreitada e projetado realizá-la e finalizá-la em conjunto. Por isso, reformulou-se toda organização do espaço a vencer pelo tempo disponível. De acordo com a implantação dos albergues no trajeto, recalculamos os percursos diários, por forma a recuperarmos as perdas do dia e tentarmos chegar a Compostela no dia 16, pela hora da missa: 12h.

Ficamos no Albergue de Porriño, com 24 km cumpridos (quando se previa fazer 34/36 km). Ficamos também algo apreensivos, sobretudo na expectativa de recuperação do Luís para o dia seguinte. Se durante o repouso noturno não conseguisse corrigir o desgaste que havia acumulado, dificilmente seguiria viagem. Mas, o Luís foi um herói, vencendo a adversidade. Apesar de algum sacrifício - mas já bem melhor­ -, no dia seguinte arrancou para uma etapa de 32 km!

Porriño acolheu-nos com grande simpatia, e num albergue com excelentes condições, dentro da austeridade que os carateriza. Com um banho, a reformulação dos planos e muita esperança na melhoria das circunstâncias, ficamos mais animados.

Tive, então, a “malvadez” de convencer o Luís a calcorrear mais umas largas centenas de metros no reconhecimento da localidade. Jantamos uma pratada de zorza (carne em vinha de alhos) com batatas fritas, plena de calorias, sal e melhor disposição. No supermercado garantimos alguns bens para o dia seguinte.

Fomos descansar. A roupa estava a secar em espaço próprio, as botas/sapatilhas recheadas de jornais para secar a água acumulada da molha, e nós a ocupar um beliche de uma longa camarata, quase cheia, com portugueses, espanhóis e gente de outras nacionalidades.

E é no contacto com estes companheiros de fado, desconhecidos, na sobriedade do albergue, e nos registos da memória das vicissitudes e das emoções vividas durante o dia, recuperados no silêncio da penumbra, que atingimos aquilo que para mim são os entendimentos e os sentimentos associados à peregrinação. Percebemos a alegria do caminho – o já percorrido e o que há a percorrer -, o despojar de tudo o que é acessório, reduzindo a nossa existência material ao essencial, a importância do apoio de conhecidos e desconhecidos, a camaradagem, a amizade, o sentimento de fazer parte de algo simples mas bom e de bem. E, sobretudo, a partilha coletiva não só das condições possíveis, desprovidas do conforto habitual, mas também a partilha do indivíduo com tantos outros com que se cruza.

Descansamos, e antes da alvorada já nos erguíamos e arrumávamos os pertences nas mochilas.

O Luís reagia bem e predispunha-se a continuar. Fiquei feliz por conseguirmos manter o projeto; fiquei orgulhoso pelo companheiro de vontade tenaz e que não desistia, mesmo que tal significasse algum padecimento.

Com a luz tímida que inaugura o novo dia, saímos com destino a Pontevedra.

 

Andarilhus

XXV : VII : MMXII

publicado por ANDARILHUS às 08:10