Augusto, o Transmontano
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O Augusto, meu tio, fez parte da geração que acolheu a revolução do mundo rural, participando na transição do “Mundo Antigo”, das ancestrais pequenas comunidades isoladas no meio das míticas e fragosas serras, para a vida moderna contemporânea.
Eu próprio, recordo-me de aldeias sem eletricidade pública ou doméstica. Então, os frigoríficos eram, ou poços de água fresca, ou arcas com sal para conserva; o mais próximo da televisão era o rádio a pilhas; as estradas eram caminhos de saibro ou carreiros pedregosos, tão bravios como as lugares que rompiam; as comunicações faziam-se de forma verbal, de boca em boca, de terra em terra, ou através de raros postos públicos de telefone (onde existiam), ou pela figura do carteiro; os vendedores ambulantes supriam o fornecimento de produtos não criados na terra e também traziam os recados e as novidades; os cantares de modinhas e os bailaricos preenchiam os eventos de diversão, enquanto a cultura passava de geração em geração através das tradições orais. Com este cenário, cada transmontano tinha de ser autossuficiente, autodidata, agricultor, engenheiro, médico, bombeiro, artista e tudo o mais o que a existência exigisse.
Mas, embora desprovido dos confortos e progressos dos grandes centros, o Homem transmontano era feliz porque vivia bem integrado num mundo criado por si e regido pelos seus próprios tempos, marcados pelo harmonioso convívio comunitário de entreajuda nos duros trabalhos, pelo espírito festivo de caráter religioso/pagão, pela comunhão de um credo comum e, sobretudo, pelo respeito por toda a criação, onde se incluía de forma natural, como mais um elemento do meio ambiente. O Homem era comunidade (povo), cristão, natureza e liberdade.
E se, em poucas décadas, tudo mudou com a abertura de melhores vias de comunicação, com o aparecimento de alfaias mecanizadas, com os automóveis, com a energia elétrica e com a generalização dos telefones e outros meios de telecomunicação, ou mesmo pela diáspora com a imigração, a geração do meu tio não perdeu, todavia, os velhos costumes e as suas idiossincrasias. Não se vergou à ideia soberba da supremacia humana sobre toda a existência, e continuou a sentir-se como mais um elo de equilíbrio da Natureza!
E é assim – entre muitas lembranças de episódios, sentimentos e saudades – que recordo o Augusto: genuíno, empático, senhor dos seus tempos (tempos com ciclos, muito ligados à luz solar, ao clima e ao calendário, que, sazonalmente, definiam os dias, os trabalhos e os descansos), pelos quais passava de modo sereno, inteiro, desapressado, como que querendo sorver, degustando, cada momento até ao tutano. Plácido e calmo, assim caminhava, assim se sentava e absorvia o horizonte do belo planalto transmontano, assim conversava, assim amanhava as burritas, assim se alimentava, assim fumava (ocasionalmente) um cigarro sem filtro, assim convivia em eventos e cerimónias comunitárias ou religiosas.
A esta harmonia e serenidade correspondia o trato afável, meigo, brincalhão, embora fosse também algo reservado, no sentido de dar mais importância ao escutar do que ao falar. Conhecia e era conhecido por centenas de pessoas, das múltiplas povoações de Valpaços e outros concelhos.
Mas, chegada a altura certa, era também um comunicador enérgico. Um festivaleiro! Com o seu vozeirão forte e grave, sempre em harmonia, cantava como ninguém e dominava a “gaita-de-beiços” (harmónica) como um verdadeiro artista, sendo essencial nas festas que corriam em Paradela, ditadas pelo calendário, ou simplesmente pela pândega.
O meu tio não era apenas um individuo, uma entidade isolada. O Augusto sempre foi fiel ao que dele descrevi acima porque, também, conjugava os seus múltiplos tempos com a Fátima, sua esposa e minha tia, e com os filhos (Amândio, Manuel, Paula e Agostinha), atributo este para dentro do qual gosto de me esgueirar…
Jorge Pópulo
XIII:XII:MMXXIII