Por Ti Seguirei... (2.11)

GaleraTriremeRom_600_01.jpg

http://www.areamilitar.net/DIRECTORIO/NAV.aspx?nn=98

 

Na margem Sul, a hoste guiada por Monda havia conseguido similar sucesso, aniquilando uns e aprisionando outros, das cerca de duas dezenas de legionários que patrulhavam a Citânia Marinha e a zona da fortificação romana. Leuko dera o seu contributo: com o medo provocado pela sua aparição, enregelando os pobres dos latinos, obstou a que não fossem totalmente dizimados, por optarem pela rendição.

Apesar do morticínio, não deixaram de celebrar e expressar o seu agradecimento aos deuses, através de uma longa procissão ritual de abates e oferendas de toda a espécie. Às emanações dos sacrifícios juntaram-se as exalações voláteis dos corpos cremados, entranhadas pelos odores adocicados do combustível vegetal e das flores que coloriam de vida as homenagens fúnebres. Por algum tempo, a forte e costumeira fragância a maresia daquelas paragens submeteu-se à ligação aspergida entre o mundo dos homens e o além dos deuses.

Reuniram-se na Citânia Marinha para comemorar e relançar os costumes diários, sobretudo daqueles que haviam passado uma longa temporada aprisionados e apartados dos seus parentes e haveres. O reencontro e a alegria marcaram o final da tarde, atrasando a majestosa soturnidade da noite.

Túrdulos e Kalaedónios selavam a aliança que os comprometia a combaterem juntos novos assaltos inimigos. O alto da Peñaventosa seria o último refúgio para ambos os povos, em caso de necessidade.

Entre festejos, a noite reservou alguns momentos para preparar a partida da comitiva ibera. O Grande Mar Ocidental estava tão perto, aguardando para ser descoberto e calcorreado, como rodeira, até ao domínio dos Cartagineses.

 

Ainda o próprio Sol espreguiçava em acordar, já Tongídio e os seus carreavam, buliçosos, a carga da viagem para os porões da galera romana maior. A galiota, conduzida por Hermineu, acompanhado pelos juvenis do grupo de Aelcio, regressava a Tongóbriga, para inteirar Físias acerca das últimas novidades.

Ao grupo inicial da missão, juntavam-se Taer, perito na navegação, Aelsio (depois de tanto desgastar a paciência a Tongídio, que o considerava ainda muito novo para a empreitada), e um conjunto alargado de Túrdulos (no qual se incluíam Monda e Noa), em agradecimento pelo auxílio recebido, e para estabelecerem contacto com as raízes originais da tribo, a Sul da Ibéria. Com a recruta suplementar de uns quantos Kalaedónios, conseguiram, assim, os braços necessários para instar movimento a um número de remos suficiente que garantissem o deslizar a embarcação sobre as águas. Com o sopro dos deuses, a grande vela central também ajudaria a incrementar velocidade. Assim o urgia o passar do tempo.

 

Concluídas as despedidas, Taer assumiu o manobrar da galera rumo ao ponto de diluição do Durio na infusão salgada.

A imensidão azul do mar abria-se como se fora um segundo céu. Não se conseguia definir um termo, e desaparecia no próprio firmamento. Seriam estes uma só coisa, um só elemento, um só céu, dobrado no horizonte pelo abraço de algum deus? Uma cortina que tapava a morada dos divinos? Haveria alguma frincha, lá junto à dobra, que desse para espreitar os lugares idílicos, divinos?

A admiração e o êxtase dançavam, cingidos, nos rostos daqueles que só conheciam as larguezas de planícies e planaltos, em terra firme. Terra essa que, afinal… tinha um fim. E era ali, onde estavam agora. Seguia-se tanta água, tanta água… Certamente, escorrera pelos rios até àquela zona mais baixa… Seria mais fundo do que o Durio ou o Taamaco? Teria fundo?! E as ondas, que fazem suster a respiração quando a galera se ergue no seu dorso e passa acariciada como pelo roçar do lombo de um gato mimalho?! São enormes e magníficas as obras dos deuses! O seu poder é imenso!

Praticamente todos os que encaravam as novas e estranhas formas do Mundo mantinham-se em silêncio transcendente, maravilhados, como se contemplassem uma visão do sagrado, pelo encantamento de um druida. Pelo contrário, Runaekoi sentia uma terrível comichão nos pés, e barafustava, manifestando, uma vez mais, a sua aversão à água. Aliás, o grande mar era ainda pior, os sobressaltos da ondulação provocavam-lhe enjoos. E não era só a ele; acontecia o mesmo a todos os inexperientes nas jornadas marítimas. Com o desenrolar da viagem, acabariam por se adaptar como o haviam feito quando aprenderam a cavalgar a galope.

Taer manteve a embarcação alinhada e à vista da costa, com o rumo apontado ao Sul. Os dois primeiros dias foram difíceis. Os estômagos dos inusitados marinheiros, vazios, porque a vontade por alimento era nula, buscavam as entranhas para darem alguma matéria aos espasmos dos vómitos. Doíam de tanto esforço.

Para agravar o estado de agonia generalizado, a chuva regressava em força, alertando para o avanço da época do frio. O vento ganhava corpo, zurzindo na galera e bulindo as águas, muito agitando a sua superfície.

Todos os dias, Rubínia e Tongídio endereçavam as suas preces aos deuses de sua maior afeição, com especial devoção pelos amigos e compatriotas aprisionados sob jugo romano. Pediam, para aqueles, o amparo divino que assegurasse a proteção e a perseverança face às agruras, mantendo-os vivos até à chegada da falcata ibera, para os libertar do cárcere.

No silêncio da partilha dos seus pensamentos com o sagrado, Tongídio padecia de uma outra grande preocupação: o estado de graça em que se encontrava Rubínia. Com o ventre da mulher carregado por tanta esperança, sentia-se constrangido a redobrada atenção e alerta para qualquer perigo. Tanto mais que a empreitada a que se propunham era arriscadíssima, plena de balanços entre a vida e a morte.

Aleutério e Leuko, na companhia das duas mulheres túrdulas, serviam-se do abrigo de uma tenda improvisada, montada na ilharga da torre da embarcação.

Aelsio passava o tempo junto a Caturnino e Runaekoi. Expostos às águas dos céus, o jovem galaico convencia os guerreiros experimentados a atividades de treino militar. Ávido por aprender todos os movimentos com a falcata e a caetra, espicaçava os seniores a darem o seu melhor nas artes bélicas. Eram entusiasticamente observados por outros companheiros de viagem.

Passadas as dificuldades iniciais, o bom ambiente entre os presentes afastava a melancolia que o espaço exíguo do navio e o rigor climatérico tendiam em provocar, com o passar do tempo. As refeições começaram a entrar na normalidade da rotina e a agregar grupos, que aproveitavam para conversar. Dormir voltava a ser uma realidade natural.

Com o esforço revezado de todos os ocupantes nos remos, a galera seguia em forte cadência. O vento, apesar de arisco, também se apresentava de feição, enfunando a grande vela quadrada. Avançavam expeditos no carreiro das águas. Aqui e ali, uns peixes graúdos ladeavam a embarcação, como se fossem cães de companhia. Leuko, esticado na amurada, uivava-lhes, ao que respondiam com uma espécie de assobios estridentes. Eram uns bichos alegres e simpáticos.

- São golfinhos, Leuko. Conheço-os bem, da minha juventude, quando me dedicava ao mar… - sussurrou Aleutério, quase impercetível.

Monda deixou escapar um olhar de ternura sobre Aleutério, aquele estranho ancião. O próprio não reparou, mas Rubínia sim, e sorriu, como se aprovasse o enlevo do momento.

Taer dirigiu-se ao líder da expedição e deu-lhe a entender que se aproximavam do estuário do rio Tagono, local conhecido pelos mercadores como uma zona controlada pelos navios de guerra romanos. Numa das margens, os latinos haviam instalado um entreposto de apoio à armada. Uma pequena, mas bem preparada, fortificação.

- Para evitarmos encontros nefastos, será melhor confiar o curso da galera por paragens mais ao largo, e passar assim longe dos vigias inimigos. Deixaremos de ver terra, por um ou dois dias. – sugeriu Taer, com a cautela da sua experiência no transporte de mercadorias. Salvar as preciosas cargas exigia, por vezes, correrem outros riscos, como desorientarem-se na imensidão do mar e perderem-se irremediavelmente. Porém, as estrelas e as correntes acabavam por virem em socorro, transmitindo as indicações desejadas.

- Assim seja. Parece-me o mais certo. Não temos capacidade para enfrentar as forças romanas, sobretudo as treinadas para combates navais. – concordou Tongídio, e continuou: - Ainda temos mantimentos suficientes para vários dias. Afastemo-nos da costa, assim que consideres prudente, Taer.

À ordem do piloto, o leme rodou a embarcação para poente. A costa perdia-se de vista rapidamente. Já só com o mar no horizonte circundante, Taer corrigiu novamente o leme para Sul. Mantinham a mesma rota, embora sem a referência visual de terra. Acompanhar e ler os sinais naturais era agora fundamental.

 

Andarilhus

XIII : XI : MMXIV

 

 

publicado por ANDARILHUS às 18:50